ESTAÇÃO PARAÍSO
O súbito apito da locomotiva me fez despertar assustado. Era como se a máquina quisesse me expulsar após a chegada ao destino final, dizendo: “Dê o fora daqui, não posso fazer mais nada por você.” De fato, as letras entalhadas na superfície enrugada de uma tábua retangular, presa num poste de madeira no lado de fora não deixavam dúvidas: “Estação Paraíso”.
Ao que parece, o sono me acompanhara durante toda a viagem. Não havia mais ninguém no meu vagão, nem mesmo um atendente ou algo do tipo. A me fazer companhia, apenas o vão escancarado da porta metálica oferecendo um convite mudo a quem quisesse entender.
Levantei-me buscando esticar o corpo, a sensação era de que cada músculo estava sendo espremido. A dor indicava que permaneci por muito tempo numa mesma posição. O estofado das poltronas, apesar de bastante antigo, era confortável e muito bem conservado, fato que certamente colaborara para que eu fosse absorvido por um sono profundo.
Estendi os braços a fim de alcançar as bagagens de mão que deveriam estar no compartimento acima do assento, mas o espaço estava tão vazio quanto o ambiente ao meu redor. Após pensar alguns instantes, cheguei à conclusão de que eu não estava tão certo de ter colocado alguma mala no local, minha memória andava meio confusa. Provavelmente, todos os meus pertences haviam sido despachados para o bagageiro principal do comboio. Na verdade, todos não, minha fiel companheira, a velha Nikon L-290, estava postada no banco ao lado do ocupado por mim. Era um antigo hábito capturar imagens ao longo das viagens, mas eu acho que nem cheguei a tirá-la da capa protetora dessa vez. Um novo apito apressou meus passos...
Ao descer do vagão, fui recebido por uma brisa cortante do início de noite. O tecido espesso do paletó não era páreo para o sopro gelado. Curiosamente, não havia mais sinal de nenhum passageiro, a estação estava completamente vazia. Maldição! Eu estava realmente muito lento, demorei tempo demais na cabine, agora não tinha ninguém com quem conversar ou pedir informação. Só me restava resgatar a bagagem e caminhar até a cidade, visto que as dependências locais da área de serviço ferroviário eram tão reduzidas que não comportavam nem mesmo um ponto de apoio. Só havia um elevado, formado por uma plataforma de madeira, com coisa de cinqüenta metros de comprimento, revestida por uma cobertura de telhas cerâmicas, com algumas peças faltantes. Mal dava para notar o tom avermelhado da tinta na estrutura, de tão velha que era a pintura.
A Estação Paraíso se resumia a esse ínfimo retângulo, no qual o vagão da primeira classe parava, assim deduzi, pois era justamente onde eu estava. Os eventuais passageiros dos demais elementos do trem provavelmente desciam ao longo do caminho de ferro, entre os cascalhos da via e sem qualquer abrigo contra as intempéries do tempo.
Apressei o passo para chegar ao compartimento de carga, no intuito de buscar minhas malas, mas um novo apito ecoou e, antes que eu pudesse alcançar meu objetivo, o trem começou a se locomover. Gritei, gesticulei, implorei para que parassem. Mas os apelos foram ignorados sem quaisquer cerimônias. Tudo que me restou foi uma trilha de fumaça balançando ao vento, como um lenço acenando em despedida.
Fiquei na estação ferroviária somente com as roupas do corpo e a câmera fotográfica. E, para piorar minha situação, a noite gelada ainda guardava seus truques: pesadas gotas de uma chuva repentina começaram a espocar contra o telhado.
Agachei-me junto à pilastra central de sustentação, o lugar menos afetado pelas inúmeras rupturas na cobertura. Pensei em retratar a melancolia da situação, mas, pela primeira vez em minha vida, não tinha a menor vontade de guardas as imagens de um cenário. Na verdade, eu não fazia a menor idéia do que eu buscava naquele lugar. O pesar no coração entorpeceu meus sentidos...
Mais uma vez fui tomado pelo susto. O tranco causado pelo peso do corpo pendendo para o lado me fez despertar de modo nada agradável. Pescoço, braços e pernas estavam mais doloridos do que antes. Pelo menos a chuva havia parado, e não era só essa a novidade. Percebi um par de olhos me encarando por detrás dos degraus da plataforma. Levantei-me rapidamente e fui de encontro ao estranho.
- Você, por favor, você.
O menino – logo notei que se tratava de uma criança – ameaçou correr, mas alguma coisa em minha voz o fez desistir.
- Garoto, garoto, me espere, por favor.
Confesso que, ao chegar perto dele, fui tomado pelo desconforto, para não dizer repulsa. Trapos cobriam o corpo esquelético da criança. Sua cabeça alternava tufos de cabelos desgrenhados e sujos, com partes totalmente desprovidas de fio algum. A pele, ferida e marcada, era digna de pena, ao passo que os olhos grandes e arregalados pareciam suplicar por algo que eu não conseguia decifrar.
- Ei, menino. O que houve com você? Alguém te machucou?
Ele nada respondeu. Parecia que não estava disposto a revelar detalhes acerca de sua vida. Então, tentei quebrar o rigor da situação pedindo ajuda, talvez ele se sentisse mais à vontade ao se mostrar útil.
- Você sabe onde posso me hospedar na cidade?
- Todos os que chegam aqui, ficam lá – disse apontando para a parte sul da cidadezinha.
- Ora, muito bem. De que tipo de estabelecimento estamos falando? Um hotel? Pensão? Pousada?
- Lá é lá.
Apesar da resposta curta, o diálogo estava estabelecido.
- Entendo. Lá é lá. Como não poderia deixar de ser, não é mesmo? Então, você merece uma recompensa, deixe-me ver aqui nos bolsos...
- Não quero seu dinheiro, moço.
- Como disse?
- O senhor não tem nada que possa me servir.
Mesmo sem entender tamanha convicção, continuei a revirar os bolsos, em busca de alguma moeda, mas não havia nada. Foi quando a correia que prendia a câmera ao meu pescoço se soltou, levando a máquina ao chão.
- Mas que diabos!
Praguejando, abaixei-me para pegar o objeto e, quando ergui novamente a cabeça, notei que o menino desaparecera. Olhei em volta, mas não havia nem sinal dele. De qualquer forma, já estava mais do que na hora de deixar a estação. Pelo menos, antes de desaparecer, o rapazinho me prestou um favor. Tomei o caminho rumo ao sul.
Conforme eu andava, era invadido pela nítida impressão de que o povoado ficava a uma distância maior do que eu poderia supor. Acho que caminhei por uns quarenta minutos. Cheguei com os músculos em frangalhos, não sei o que teria sido de mim se as malas estivessem comigo.
Deduzi que o local recomendado pelo menino deveria ser o estabelecimento de frente para mim, logo após a única via calçada por pedras, pois não havia qualquer vestígio de movimentação em nenhum outro ponto. Tudo estava às escuras. A exceção era justamente a fraca iluminação que provinha do sobrado.
Caminhei até o local e, mal toquei na folha de madeira, a porta se abriu. No interior do recinto havia muito mais luminosidade do que a vista de fora sugeria. Por trás de uma espécie de balcão de recepção, um senhor de barbas e cabelos espessos e cinzentos acenava em minha direção. Do rosto do homem, só era possível decifrar seus olhos, pois os pelos tomavam todo o resto. E, por mais incrível que possa parecer, ele chamava meu nome.
- Aqui estão as suas chaves. Suba por essas escadas, dobre o corredor à direita, seu quarto fica na segunda porta.
- Como assim? Como o senhor me conhece?
- O senhor tem reserva – ele me disse, de forma áspera.
- Mas eu nem me identifiquei. Como o senhor sabe quem sou eu?
- Só há uma reserva para essa noite, a sua – o velho entrou por uma porta nos fundos do átrio, deixando as chaves sobre a tábua envernizada.
Completamente desconcertado pelo ocorrido, fiz a única coisa que poderia fazer naquelas circunstâncias: fui para o quarto. Um turbilhão de confusão tomava minha mente. Como era possível não me lembrar de absolutamente nada? Tentei, a todo custo, remodelar os fragmentos das lembranças que ainda me restavam, mas eu não conseguia, nem ao menos, me recordar da ocasião do embarque. Eu só sabia que havia um bom motivo, uma razão muito forte, para estar naquela cidade.
Não havia aparelho telefônico no quarto. Nem janelas. Nenhuma moldura enfeitava as paredes, a superfície era vazia e crua. Apenas a cama e uma mesinha de cabeceira preenchiam o ambiente. E, foi justamente quando olhei para o criado-mudo, que percebi o pedaço de papel de verso amarelado sobre o tampo de vidro.
- Uma fotografia!
Exclamei para mim mesmo, ao constatar algo tão familiar em meio ao caos. Mais do que isso, eu conhecia aqueles traços. Sim. Sem sombra de dúvidas, eu os conhecia.
Mesmo com a memória desfigurada, as linhas daquele rosto se mostravam claras para mim. Ainda que de forma indireta, eu havia colocado aquele homem na cadeia...
Eu tirava fotografias num parque, retratava o hábito noturno de alguns animais, quando minhas lentes captaram o que seria uma ocultação de cadáver. O indivíduo fotografado fora capturado, julgado e condenado. Tratava-se de um assassino em série.
Ele jurou vingança. Suas palavras ainda soam frescas em minhas lembranças, algo raro nas últimas horas. Havia uma mensagem no verso do retrato: “Cerimônia de passagem. Hoje. 3:33AM.” Então era isso. O maldito estava morto, e seria enterrado nessa cidade infeliz, por isso eu estava ali. Certamente, queria presenciar o sepultamento de um pesadelo. Era isso!
Olhei para o relógio em meu pulso, parado. Ganhei o corredor pensando no horário incomum marcado na fotografia, provavelmente seria um velório, não o enterro propriamente dito. Mas quando desci as escadas e cruzei os limites da recepção, constatei algo diferente...
Quatro pessoas erguiam um caixão de madeira enegrecida. O menino maltrapilho, o mesmo que eu havia encontrado na estação, se agarrava às pernas de uma delas, enquanto olhava diretamente para mim. Cabe dizer que o aspecto físico dos indivíduos não diferenciava muito do apresentado pela criança.
Já no lado de fora, percebi que havia uma multidão cercando a entrada da hospedaria, como se estivessem se preparando para um cortejo fúnebre. Aproximei-me do ataúde aberto, a fim de constatar minhas suspeitas.
Cercado pelo forro acolchoado de tonalidade violeta, jazia aquele que jurara me matar. O semblante plácido do cadáver escondia a natureza fria que o acompanhara durante a vida. Ele estava melhor assim, morto e impossibilitado de espalhar a dor e a morte novamente.
- Descanse em paz, miserável...
- Você!
Senti um calafrio percorrer minha nuca em direção aos pés. Virei lentamente a cabeça e só então notei que um daqueles homens, por mais absurda que fosse a possibilidade, era o dono da voz que me ameaçara há anos. Ele estava mudado, diferente do corpo que repousava na caixa de madeira, mas era o mesmo homem, sem qualquer possibilidade de erro. Não era um irmão ou outro parente, não sei explicar, mas uma estranha convicção dentro de mim dizia claramente que era o mesmo homem, o assassino que havia me jurado de morte.
De sua cabeça, fios de cabelo se desprendiam com o soprar do vento. Seu olhar parecia querer saltar do rosto mutilado. Dos dentes apodrecidos escorria uma gosma esverdeada, enquanto ele falava se dirigindo a mim.
- Você! Você é um homem morto!
A multidão urrou, aclamando as palavras ameaçadoras do infeliz. Não sei onde encontrei ímpeto para correr, pois as forças pareciam me faltar nas pernas. Abri espaço da melhor maneira que pude por entre os inúmeros braços que tentavam me agarrar. Eu não sabia como fugir, pois, para onde quer que eu olhasse havia um rosto desfigurado a me espreitar.
Continuei a correr, sem um plano traçado, para fora dos limites da cidade. Apesar dos meus temores, as pessoas não conseguiam acompanhar o ritmo acelerado que eu impunha na tentativa de escapatória, pelo contrário, elas se moviam lentamente, numa fila organizada e contínua.
Numa possibilidade inversa à experimentada anteriormente, a distância no sentido contrário parecia reduzir-se consideravelmente. Eu mal havia começado a correr, mas já era possível vislumbrar a velha plataforma ferroviária. A mesma placa, com letras tortas e enormes, apresentava a Estação Paraíso. A salvação estava logo adiante. A chaminé da locomotiva expelia uma nuvem de fumaça esbranquiçada no ar, as portas da primeira classe se abriam no platô de madeira. O apito soava anunciando a partida iminente.
- Não! Não! Esperem! Esperem, malditos!
Meu coração parecia querer saltar do peito. O ar se recusava a preencher meus pulmões. Não havia mais força, só a resistência, a vontade de querer viver. O clamor da turba estava às minhas costas. Como era possível?
Subi as escadas saltando os degraus de dois em dois, a rampa de acesso ao trem já havia sido recolhida, o comboio se movia. Nunca cinqüenta metros me pareceram tão distantes, o conjunto de tábuas que compunha o chão da plataforma parecia se multiplicar. O vagão, o meu vagão, deixava a estação.
- Não! Não!
Em desespero, saltei no espaço compreendido entre a porta semi-aberta e o platô da estação. Por algum milagre, consegui me agarrar a uma das alças de apoio. Meu corpo balançava como um pingente agarrado ao colosso de metal.
Inúmeras pessoas, todas atingidas por algum tipo de deformação, se aglomeravam ao longo da estrada de ferro. Elas gritavam, balançavam os braços, tentavam, de alguma forma, alcançar o trem.
Nunca ostentei muito vigor físico, tampouco fui adepto de práticas esportivas, mas sabia que se quisesse sobreviver, teria de multiplicar a força em meus músculos para converter a simples sustentação num impulso eficiente o bastante para me lançar para dentro do vagão. E assim eu fiz, não sei como, mas fiz.
Pouco a pouco, conforme eu puxava o ar, a situação parecia voltar ao normal. A primeira classe estava vazia, às escuras, mas havia segurança, salvação, afinal. A conexão com o vagão seguinte estava trancada, a porta não tinha maçaneta. Larguei o corpo sobre o estofado de couro da poltrona. Procurei esquecer os problemas por um instante, a vista pelo círculo envidraçado da janela me mostrava que a cidadezinha ficava para trás.
Minha cabeça pesava com marteladas doloridas. Na próxima estação, eu desceria e procuraria um telefone, um meio de me comunicar com o mundo real. Mas, por enquanto, eu deixaria o silêncio curar minha dor. O sono lavaria minha alma...
Acordei com o forte apito do trem. Estávamos parados. Não sei por quanto tempo dormi. O céu escuro mostrava que ainda era noite, ou que seria uma nova noite. A porta do vagão estava aberta, e não pensei duas vezes em descer.
A plataforma estava terrivelmente escura e vazia, tive vontade de retornar para o trem, porém, não tive tempo. Eu mal havia tocado o piso de madeira, quando senti um impacto me derrubando. A rampa de acesso se recolhia rapidamente. O comboio deixava a estação sem qualquer aviso.
Por alguns minutos, fiquei caído com o rosto no chão buscando explicações. E, pela primeira vez, minha mente parecia não querer conspirar contra mim mesmo.
As lembranças eram cristalinas como as águas de uma nascente. Eu estava numa estação ferroviária, fotografando o ir e vir cotidiano, quando senti uma presença às minhas costas. Era ele. O maldito que me perseguia. Não sei como nem quando, mas ele havia escapado da prisão e estava ali, com um olhar ameaçador no rosto e com a sede de sangue nas veias. Ele gritava: “Você é um homem morto. É um homem morto”.
Não deixei que ele tomasse a iniciativa e, antes que pudesse esboçar um ataque, me lancei sobre seu corpo. Despencamos da plataforma, indo de encontro aos trilhos. O assassino estava desacordado, com uma poça vermelha ao redor de sua cabeça.
Muitas pessoas gesticulavam e acenavam para mim, mas eu não conseguia ouvi-las, estava desnorteado, só percebi quando o apito estava próximo demais, então, veio o vazio e o esquecimento, mas agora tudo está tão claro...
Senti um toque nos ombros.
- Você!
- Sim. Eu sei.
Acompanhei aquele homem até a estalagem, na parte sul da cidade.
- O quarto está reservado para você – disse o recepcionista de pelos cinzentos.
- Eu sei.
Fui conduzido pelos dois até o quarto, o mesmo onde havia estado antes. Uma fotografia repousava sobre a mesa de cabeceira, e nela estava estampado o meu rosto. No verso, um lembrete que eu já sabia: “Cerimônia de passagem. Hoje. 03:33AM.” Eu não precisava de espelhos para entender que, como o de todos naquela cidade, meu rosto também estava mudado e, que em breve, eu levaria para algum lugar o meu corpo terreno que repousava num caixão. Depois disso, o quarto ficaria vago para outro retrato.
- Você – disse o homem que já não me causava pesadelos – você não quis me ouvir. Eu estava tentando te avisar. Você é um homem morto.
- Sim. Eu sei. Agora eu sei.
Se no quarto tivesse uma janela, seria possível enxergar, ao longe, uma plataforma ferroviária, e nela haveria uma placa dizendo a todos os que chegam: Estação Paraíso.