Os Sete Signos do Mal
 

            Quando as crianças daquela região úmida e montanhosa começaram a sumir, logo apontaram o mascate Julius como legítimo culpado. Afinal, ele tinha um olho de vidro, andava mancando em uma das pernas, tinha o cheiro de quem não via banha há vários dias e uma aparência bizarra. Seus cabelos e barba ruivos remetiam ao fogaréu dos infernos. Sempre pitava um cachimbo que continha sete símbolos estranhos:
 
            - São Signos do mal. – Dizia o povo que também dizia muitas outras coisas. Andava em uma carroça pintada com chamas e outras pragas libertas da Caixa de Pandora.
 
            - Mas ele nem sempre está aqui quando elas somem. – Disse uma voz de razão logo calada por olhares vorazes que condenam sem a necessidade de se fazer justiça. O povaréu elege inimigos naturais, criaturas que não se encaixam nas normas, como seres preferenciais a serem massacrados nos tempos de fúria e medo. Aquela era uma época sombria, com leis confusas, com tumulto febril nas lideranças do povo e de uma guerra distante que levara os rapazes para os campos de luta e morte.
 
            Ninguém se entendia e o desaparecimento daquelas almas leves era mais um mosaico negro a acentuar os matizes pobres que enegreciam o lugar.
 
            - Justiça. – O povo em fúria exigia do Capitão da Lei. Esse, sem saída, gordo e farto de luxúrias febris, determinou uma caça sem trégua ao mascate pelas estradas do Ducado até que fosse encontrado: vivo ou morto.
 
            - Morto. – Queria o povo.
 
            Julius, alheio àquela ameaças, cantava sozinho à beira de um lago cercado de mato e podridão. O som de sua pequena viola batia nas árvores e rochedos terminando por subir muito alto. A pequena fogueira aquecia-lhe o corpo macilento e disforme. Bebendo vinho, não tardou a cair no sono. Despertou pouco depois sentido o incômodo de uma lança perfurando-lhe o pescoço. Foi brutalmente amarrado, açoitado e teve que caminhar carregando pesado tronco de madeira que atava-lhe as mãos por trás da nuca. Começaram a caminhar aos primeiros raios do sol e, por todas as vilas e choupanas que passavam, lhe eram lançadas cusparadas, ovos podres, dejetos de porcos e outras infâmias.
 
            - Morra! – Diziam sem pena ou dó.
 
            Chegando à sede do Ducado, o Capitão da Lei, sentado em um trono improvisado em praça pública, querendo transformar em festa a execução, fingindo ser justo, determinou que se apresentassem provas contra o réu. O povo ficou em silêncio e julgou ser uma afronta. Os soldados, no entanto, ao vasculhar a carroça, encontram muitas roupas de menina e bonecas:
 
            - É culpado. Queimem. Enforquem. Matem o infeliz. – Sem saber o porquê, ajoelhado diante do seu inquisidor, com o rosto sangrando de tanto apanhar, Julius não podia mais ficar em pé e caiu batendo seu rosto contra o chão. Desmaiou e isso trouxe-lhe uma breve paz. Não adiantaria explicar que as roupas pertenciam à sua filha que falecera vítima de febre tifóide. A multidão jamais poderia atinar que ele um dia tivesse esposa, que foi pai caloroso e que sofreu muito com a morte da filha.
 
            Quando despertou, já atado a uma estaca na praça central, cercado por lenha, palha, pelo cachimbo e a maioria dos seus apetrechos de vida, dentro daquilo que logo seria uma coluna de chamas, despejou lágrimas de dor e de solidão. A multidão não se apiedou. Os gritos ecoavam:
 
            - Morte! Morte! Morte!
 
            O Capitão da Lei ordenou e logo o carrasco corpulento ateou fogo aos pés do mascate. As chamas o devoraram rapidamente e seus gritos ecoaram tão alto que, a poucos quilômetros dali uma estranha e medonha criatura alada, ossuda, com garras poderosas, similar a um morcego do tamanho de um homem, não pode deixar de se interessar.
 
Deixando sua alcova para trás, repleta de pequenas ossadas, alçou vôo em direção à cidade. O povo, extasiado pela cena do homem em chamas, não pode perceber aquele vulto enorme desenhando um vôo solitário e distante. Nos dias que se seguiram novas vítimas continuaram a desaparecer. Uma delas, a filha de oito anos do Capitão da Lei que, em uma noite de desespero, enquanto chorava sobre o leito vazio, viu através da janela em frente dois olhos negros e vazios fitando-o do alto de uma árvore enquanto saboreava um crânio que até poucas horas antes pertencia a uma pequena menina de cabelos cacheados.
 
            Quando a criatura alçou vôo o Capitão da Lei ficou estático de assombro e medo. Após a morte do mascate, suas cinzas foram banidas pela região misturando-se à terra e à água e foi tal o vigor daquela sina maldita, que os rios começaram a secar, bem como as fontes e os poços. Cada cinza consumia toda energia em volta e o húmus da terra desapareceu matando plantações e pastos.
 
            O povo começou a abandonar a região em grupos cada vez maiores. A cidade morreu e, sem ter novas possibilidades de presa, de um ponto muito alto para ser visto, aquele parasita alado acompanhou a multidão aguardando que se assentassem em novas terras para novamente se servir, na calada da noite, das carnes quentes dos seus filhos e filhas...