Eram três e meia da madrugada, Caroline arrumava sua cama, cansada, pensando quanto tempo mais agüentaria esperar que seu esposo retornasse à casa. Seu trabalho exigia longas viagens, e a bela mulher de trinta anos, que jurara o amar para sempre, pensava se para sempre talvez não fosse tempo de mais.
          Fechou a janela do seu quarto, não tanto pela chuva, que caía preguiçosamente, mas pelos sons externos que de tempos em tempos lhe confudiam fazendo parecer o Ford de Marcos estacionando em sua garagem.
          Às quatro e quinze daquela mesma noite, finalmente, o seu carro chegara à casa. Atordoada e confusa, levantou-se tropegamente, alcançando enfim a porta de entrada e o recepcionando com um abraço aliviado. Ele parecia feliz, extásiado. Certamente havia fechado um bom contrato para a banda que empresariava. Entretanto, ela perguntava-se se era mesmo necessário que ele estivesse em todos os shows, abandonando-a daquela forma.
          Apesar da alegria inicial, parecia bastante cansado, vestia uma jaqueta de couro, uma calça jeans larga, a barba estava por fazer, mas, diferente do seu humor habitual, principalmente depois de dez horas de viagem, parecia irreconhecivelmente sorridente.
          Sairam da garagem, que era acoplada à casa, passaram pela cozinha e entraram na sala de estar. Com a mão, ele lhe indicou uma cadeira e ela se sentou, observando admirada a sua expressão de contentamento.
-Oh, meu amor, você não acreditaria se eu lhe contasse o que aconteceu!
-Você conseguiu um bom contrato para a banda ou... Pedro não é mais o vocalista? - Os dois riram com a costumeira implicância de Caroline com Pedro, que fazia parte da banda com que Marcos trabalhava e que era o fiel esteriótipo de um jovem músico inconsequênte.
-Não, Caroline, não, algo muito melhor... Esqueça a banda, esqueça tudo isso, eu vou mudar sua vida, meu amor, vou te dar tudo o que você merece...
-Marcos... O que mais você poderia me dar? Se você passasse menos tempo viajando, já seria o céu para mim... - DIsse ela fitando-o um tanto perplexa.
-Não vou mais viajar,Carolzinha... Vamos passar todo o tempo juntos agora... - Suspirou longamente - Algo nessa viagem, enquanto eu dirigia para cá, mudou minha vida, meu amor... Só posso me indagar se você virá comigo...
-Ir? Ir para onde, Marcos? - Disse ela, zangadiça.
-Querida, eu descobri que a vida pode ser muito maior do que a gente imaginava... Basta que você confie em mim...
-Oh, meu Deus, Marcos! - A sensibilidade de Caroline aflorou subitamente, detestava quando se drogava. Falava coisas sem sentido e chegava a assustá-la com os seus delírios.
-Não, Carol, pare! Está tudo bem, meu amor, acredite em mim! - Ele sorria exultante -. Eu sei que as minhas viagens te preocupam, sei que você se sente só - ela assentiu baixando os olhos -, mas, agora está tudo bem...
-Mas, Marcos, o que está acontecendo, então? - Perguntou, envergonhando-se pelas suas precoces lágrimas que denunciavam a sua fraqueza perante o marido.
-Caroline, eu preciso que você venha comigo... Nós seremos felizes! Abandone a sua familia, o seu trabalho, nada se compara a lá, meu amor...
     Caroline levantou-se da mesa, horrorizada, sabia que o marido havia se drogado e certamente era culpa de Pedro, que o influenciava da pior forma possivel.
-Chega, Marcos! Eu não vou mais agüentar isso! Está me ouvindo?! Você não tem mais vinte anos, e eu não aceito esse tipo de brincadeira ridícula! - A mulher suave e delicada deu lugar a uma outra que não suportaria mais um relacionamento pela metade, um relacionamento tal qual teria se namorasse um garoto com a metade da idade de Marcos.
-Oh, minha flor, você acha mesmo que eu estou brincando? - Disse ele, sorrindo irônicamente.
          Caroline permaneceu em pé, observando Marcos, desconfiada, pensando se teria forças para perdoá-lo dessa vez. Esperava que fosse carinhoso quando retornasse das suas longas viagens, e não que a aborrecesse com suas brincadeiras insensíveis.
-Pedro?! - Gritou Marcos, virando-se para a porta da garagem, a porta do Ford se abriu e alguém caminhava em direção à cozinha - Feche os olhos, meu amor... Por favor. - Disse ele sorrindo.
     Da porta, vinha caminhando o jovem Pedro, com marcas de cortes na face, as roupas rasgadas, ensangüentadas, as pernas tortas, deformadas pelos ossos quebrados e o mesmo sorriso bestial de sempre.
-O... O que é isso? - Perguntou ela aturtida. Segurando-se no encosto da cadeira e observando o cadáver do jovem músico movimentar-se tal como se estivesse amarrado por arame farpado.
Caroline correu para a porta do seu quarto, aterrorizada, procurando por algum lugar onde pudesse se esconder, enquanto Pedro e Marcos a miravam divertidos.
Então, Marcos levantou-se e se aproximou lascivamente de sua esposa, parou alguns centimetros a sua frente e levantou a sua camisa suavemente, expondo um buraco que ia da base do seu peito até o umbigo.
-Venha... Venha comigo, Carol... Pegue um faca, querida... Ponha-a no peito... E... Vamos ser felizes, querida... Longe daqui... Ande logo... Morra também, meu amor...

***

-Ela acordou! Enfermeiro!
Caroline acordava em sua própria cama. Sentia gosto de bile na boca e a cabeça a girar. Marcos, Pedro, sangue.
-Onde estou, mãe?
-Querida, é melhor você se acalmar, está bem?... - Marta esperou alguns minutos, enquanto Caroline tomava água e depois continuou - A questão é que... Querido, será mesmo que posso contar a ela? - Perguntou, virando-se para o enfermeiro que media a presão de sua filha, ao que ele fez um movimento negativo com a cabeça.
-Não tenho tempo para besteiras - disse ela de forma mal-humorada -Carol, você se recorda que Marcos havia viajado, com a banda?
-Claro, mãe! Eu o estava esperando, a senhora sabe, essas viagens me deixam muito preocupada, eu devo ter passado mal, não? Sabia que estava chegando ao limite...
-Filha, você estava certa em se preocupar... Pelo menos desta vez. Eu sei que essa é pior notícia que eu poderia te dar, mas...
     A expressão no rosto de Caroline não denunciava as turbulências em sua mente. Um choque lhe atingiu o corpo, e as visões de Pedro e Marcos caminhando moribúndos em sua direção, sangrando e sorrindo como se tivessem encontrado na morte o paraíso, vieram-lhe subitamente.
-Quem estava com ele no carro, mãe? - Tentou estancar o desespero que a manipulava por dentro. Marta olhou-a confusa, não compreendendo como a filha sabia que o acidente se passara no carro.
-Pedro, querida...
          Pedro raramente viajava no carro de Marcos, estava sempre com a banda, da qual era vocalista. Seria uma coincidência improvável se sonhasse que os dois haviam sofrido um acidente e acordando, descobrisse que aquilo realmente acontecera. A não ser, pensou, que soubera do acontecido e acabara sonhando.
-Mãe, quando eu desmaiei? - Sua mãe observou-a perplexa, sua voz era de uma tranqüilidade anormal para quem acabara de perder o ser amado.
-Ahm... Acho que você desmaiou logo quando eu cheguei, Caroline... Eu entrei pelo portão, você achou que fosse Marcos, eram quatro e pouco da manhã, e quando eu lhe disse que tinha uma notícia ruim para lhe dar...
Caroline levantou-se abruptamente, deixando a mãe falando consigo mesma. O relógio na parede marcava cinco e vinte da manhã e ela sabia exatamente o que fazer. Não sonhara um sonho comum, era Pedro quem estivera com ela aquela noite.
          Vestia uma camisola roxa e tirou uma mecha de cabelo da face pálida, enquanto encaminhava-se para a cozinha, com a mãe e o enfermeiro seguindo-a, preocupados, logo atrás.
Abriu a gaveta das facas e escolheu a maior que vira. Com um suspiro encorajador, selou o seu caminho para onde fosse que Marcos estivesse. Certamente não era o céu.
          Segurando a faca com as duas mãos, mirou o próprio peito, mas fora segurada pelo enfermeiro. Entretanto, como estivesse certa do que desejava, golpeou a si mesma, e então, convencida do seu gesto, caiu no chão, desfalecida, o rosto descontraído, quase sinistro, e o peito jorrando sangue incontrolávelmente.

***


          Marcos chegava em casa de uma longa viagem. Podia imaginar o quanto Caroline deveria estar preocupada, e tudo o que desejava era abraçá-la e passar algum tempo em sua companhia. Apesar do cansaço, sentia-se feliz em retornar para casa.
     Fechou o portão da garagem e abriu com certa dificuldade a porta da cozinha. Ao adentrar no comôdo, observou um objeto disforme jogado perto da gaveteira. Ligou a lâmpada e não pôde crêr nos seus olhos.
-Oh, meu Deus! Caroline! Acorde... DEUS! - Gritou Marcos, ao ascender a luz do cômodo e encontrar sua esposa caída ao lado da mesa, uma expressão descontraída no rosto, quase sinistra e o peito jorrando incontrolavelmente sangue. O relógio marcava quatro e quinze da manhã e na cabeceira de sua cama, os remédios contra a esquizofrênia de Caroline não haviam sido tomados aquela noite.

F W
Enviado por F W em 13/10/2011
Reeditado em 13/10/2011
Código do texto: T3273802