Catividade

“Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer.”

Fernando Pessoa

Por Ramon Bacelar

[PAPAI! PAPAI!]

[PAPAI! PAPAI!]

CLAAACK. CLAANG, CLAANG.

A rudeza metálica das pesadas grades de ferro o libertou do seu torpor e novamente o arremessou em sua gélida realidade de culpa e metal.

CLAANG.

Uma última estridência feriu seus tímpanos e reavivou sua covarde e desmemoriada memória para aquilo que não poderia..., o que não deveria acontecer.

Aconteceu.

Sentou-se de cabeça baixa absorvendo a monotonia monocromática de sua catividade metálica e com nervosos espasmos de mãos e pés, avaliava as possibilidades e cercava a verdade para encará-la de frente: se sentia cativo por dentro e por fora e no relógio de sua existência os ponteiros denunciavam a Hora Final.

-FORA!

Era como se o seu tedioso universo monocromático fosse invadido por uma igualmente monótona epidemia sonora, fatalista e impediosa, pertubando sua momentânea existência sonambúlica com quatro impiedosas letras e uma exclamação.

[PAPAI! PAPAI!]

Outras letras e exclamações invadiram os abismos internos, atormentaram o espírito e num incessante martelar demoliram os últimos resquícios de auto-engano: a culpa pulsava e o último clamor, abundante em estridência e não carente de carência, no lento porém firme processo de enfraquecimento das defesas mentais, alcançou a memória de um passado recente e o alertou para as conseqüências do seu ato: a culpa pressionava.

Manchado por duas formas austeras que o escoltavam como sombras à procura de preenchimento, o chão de zinco absorvia os passos com a paciência de um sábio entediado, enquanto a aparente infinitude do corredor feria sua visão com a noção que o tormento perpétuo estava mais próximo que o almejado esquecimento e aniquilação absoluta: a Luz que não era a Luz.

PAPACLAAACKPAPAICLAAANGCLAAANGPAPA...

A epidemia sonora dos últimos minutos agora infestava sua mente a pressionando como uma represa enfurecida, questionando seus atos, alterando suas pulsações e transmutando suas veias em bulbos de lavas vulcânicas. Como entidades sádicas e famintas, dentro e fora, os sons o encurralavam e cavavam as bases de sua ruína mental e emocional enquanto as formas fantasmagóricas fundiam-se no chão de zinco como se para escurecer sua já negra existência. Intimidado pelas sombras, encurralado pela culpa, infectado pela cacofonia PAPA...abaixou a cabeça...emaranhou os sentidos....

***

Uma brancura obscenamente imaculada invadiu seu sentido de visão e o apazigou com sua mesmice repetitiva; acariciou-o com o toque sedoso do seu calor, mas no instante que sua mente foi inundada pela idéia de libertação e redenção, o devaneio imaculado foi manchado por duas formas negras que o olhavam de cima:estava deitado de costas com a intensa iluminação ferindo seus olhos.

Os carcereiros, como se para respeitar um último desejo do pobre diabo, aguardaram o retorno a consciência antes de disparar o medo em quatro letras e uma exclamação:

EM PÉ!

***

[PAPAI! PAPAI!]

Escoltado pelas sombras famintas, sentiu sua existência agonizar enquanto os ponteiros do relógio pareciam acelerar. Insistentes, quatro letras persistiam, insistiam, repetiam e a voz de sua consciência simplesmente... emudecia, ouvia, ouvia.

Ainda cativo das sombras, sentiu suas mãos serem invadidas pela realidade fria do braço da cadeira elétrica enquanto era preparado: capacete de aço, eletrodos, gel condutor, cinta de couro, chapas de aço...

Retornou o olhar para a sala circular e vislumbrou inúmeras cadeiras, mas não definiu seus ocupantes além de uma forma negra encapuzada na quinta cadeira da frente; ouviu passos distanciar, desintegrar e o relógio acelerar, sentiu o...

[PAPAI!]

[PAPAI! NÃO, NÃÃÃÃÕÕ...]

ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ

ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ

ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ

Baba, odor, sangue, fumaça, tremores...o maremoto interno provocado pela eletrocução o arremessou em um limbo desconhecido mas não o aniquilou, se fazia necessário mais uma bateria de choques: seu coração batia e a culpa pulsava, estava vivo por dentro e por fora.

No inferno da quase-morte sentiu a fumaça ácida de carne queimada corroer suas narinas, vislumbrou as cadeiras que não estavam vazias, cadeiras como a sua, cercando, vigiando, encurralando, “aguardando”...cujos ocupantes...: ele em distintos estágios da eletrocução: tremendo, queimando, enfumaçando, rezando, agonizando, se culpando.

[NÃÃÃÃÕÕ!!]

[NÃÃÃÃÕÕ!!!]

[PAPAI!!!!!]

Mais uma vez ouviu os passos distanciando, sua hora chegando, chegando...

ZZZZZZZ...

ZZ...

[NÃÃÃÃÕÕ!]

[PAPAI! PAPAI!! SOCORRO!! SOCORRO!!!]

Sentiu o corpo leve e dormente, mas por algum motivo se sentiu aliviado.

Aliviado.

Abriu os olhos.

Finalmente teve consciência que tinha saído do pesadelo de fumaça e metal mas o senso de culpa perdurava, assim como as vozes e a sensação de impotência: sentiu suas costas tocando a cama, olhou para os lados e visualizou uma fila de cadeiras, e quando sentiu as veias invadidas pela segunda dose do veneno letal da execução... a última coisa que identificou na quinta cadeira foi o pai da criança que ele assassinou.

Foi liberto.

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 10/10/2011
Código do texto: T3268922
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