O Sinal e a Flor Violeta
E aquele homem sentado no alto da colina contemplava tudo. Tudo ele percebia, ele captava todas as coisas na flamante indiferença, na incendiada serenidade. Havia rumores de fatalidade nos insólitos acontecimentos que se sucediam em ritmada lentidão naquele desfile do inexplicável, naquela peça teatral absolutamente ilógica e não-mentalizável, criação sentenciosa e absurda do Sobrenatural. Quem saberia dizer em meridiana claridade qual a real significação daquela constelação de mistérios que aquele homem contemplava e percebia em plenitude sentado sobre o verde campo do alto da colina.
E o homem triste e tranqüilo, de sério semblante, que observava ao redor da colina viu que aquela ave era estranha, que não se recordava de alguma vez tê-la visto. E ouviu que o nunca visto pássaro cantou, e seu canto era terrível e harmonioso, de sublime melancolia, de dor incompreensível, embriagado de loucura. E a ave executou seu vôo por sobre a colina e seu vôo era lento, e uma brisa fria e arrepiante partiu de suas asas e tocou o rosto do homem que olhava. Mas os olhos da ave não viram o homem, porém estavam voltados para o vasto horizonte. E lá no horizonte imerso no ocaso que vinha, vivia uma mata, uma longa e funda mata de escuro e não-visto verde. Mas o verde era verde demais, era um verde-escuro violento e dramático, e o homem olhando a ave voltou seus olhos para a mata do verde em demasia e percebeu que a mata era anormal. Era anormal porque ela não tinha fim. Possuía princípio, mas não tinha fim... E por entre as árvores grotescamente elevadas, realmente altas demais, movimentavam-se seres que o homem observador não soube distinguir; contudo, lá estavam eles, e aqueles seres incompreensíveis dançavam por entre as árvores exageradamente altas. Dançavam uma dança frenética, bizarra, nunca-vista e demoníaca! Mas de repente a dança cessou por completo, foi inquietante a forma como a dança se deteve, e ao término da dança seguiu-se uma insuportável expectativa por toda aquela região que ao final da tarde mergulhava no crepúsculo canhestramente luminoso, de luminosidades amarelas, lilases e vermelhas.
E lentamente, de maneira extremamente lenta e grave, anomalamente lenta e grave, um felino gigantesco e não-conhecido saiu da mata, e aquele felino rugiu como uma tragédia de Tchaikovsky.Mas não era um rugido comum, era um rugido como um trovão, idêntico ao trovão, que ribombou longamente, que retumbou em assombros por todas as atmosferas onde o céu permanecia azul, de um azul quase violeta, de um violeta que anunciava pelos horizontes e se propagava anômalo por toda a abóbada celeste, ainda que fosse a coloração violeta muito mais vívida, ou mórbida, ao longo dos infinitos horizontes. E o homem ouvindo o rugido abismal do imenso felino que retornara à mata sem fim, notou que o urro realmente era um trovão. Não havia mais duvida que era um trovão, e aquele homem ainda sentado sobre o verde prado daquela liberta colina, indiferente, triste e sereno divisou um relâmpago, um calmo e longo e muito ramificado relâmpago, que refulgiu majestático no violeta profundo do céu. Mas o relâmpago não era normal, e não o era porque não acabava nunca, pois durante angustiantes minutos ele brilhou nos espaços, o raio ia se prolongando aos poucos e foi, e foi e não se findava jamais, e sua cauda titânica, assustadoramente assimétrica e ramificada, cresceu ao incomensurável.
Porém, num instante, o relâmpago atingiu seu término, e ele anunciava a tempestade. Mas não havia nenhuma nuvem nos céus. Nenhuma, mas o homem viu alguma coisa através daquela lua que surgiu do nada, porque a noite lentamente avançava, devagar como uma marcha fúnebre, rastejante, mas quem pode impedir de a noite chegar? Quem aplacaria a fúria impassível da noite? Mas ainda era dia, aquele dia azul-violeta que beijava os lábios noturnos. E o homem sentado imperturbável por sobre a fantástica colina em sua serena tristeza a tudo observava sem esboçar qualquer reação. E veio o vento, o vento que dormia nos confins do longínquo despertou do sono e soprou. Mas não era um sopro comum, era um sopro nervoso e enervante. Era enervante e incomum porque provinha de todos os lados, de todos os cantos da rosa-dos-ventos, e era frio, e era quente, era um bafejo e uma lufada. Mas o homem pensou que o vento nasceu da cauda do raio, porém ele ventava de todos os lados. E enquanto o vento ventava em vendavais canhestros, uma nuvem pequenina e estranha, pequenina e escura cruzou como uma flecha os céus violetados, no entanto, era só uma nuvem, quase nimbo, que cruzou e passou e se foi e ficou olhando o homem, sozinho no canto da esfera que anoitecia.
Sucedeu-se que o vento não cessava, e vinha de todas as regiões do universo. Foi quando nasceu uma flor. Nasceu e cresceu em poucos minutos exatamente no alto da colina, bem ao lado do homem que ali fitava todas as coisas na suprema melancolia. E foi nessa tranqüila melancolia que a flor foi se abrindo. Abriram-se e despertaram suas pétalas violetas e a flor era imensa. E a corola da flor era rubra, rubra de fogo, profundamente incendiada, de um rubro sanguinolento, de um rubro marcial. E ocorreu que o vento insano soprou delicado nas pétalas da flor que era fixada somente em uma haste nascida direta da terra, da grama, sem caule, nem folha. Era uma flor soberba e soberana. E o vento demente espargiu seu aroma por todas as atmosferas e o aroma era belo. Era um incenso resplendente e sublime. Agora vogava divino o cheiro da flor de coração fulvo por todo o espaço, pelo céu cada vez mais e mais violeta, mas o homem ainda via o trovão que reverberava, e teve a impressão que viria outro relâmpago ou outro rugido ou outra ave de terrível canto, porém somente cheirou o cheiro dos anjos, que era o incenso da flor disseminado pelo alucinado vento que era um vento sem fim e que vinha de todos os lados.
E o homem olhou para o céu e sentiu melhor o etéreo aroma, e o etéreo aroma convidava ao amor, e o homem que tudo via fechou os olhos para melhor sentir o perfume celeste e sentiu-se livre e convidado ao amor. E desejou amar livremente sob a influência do aroma da eternidade. Porém ao abrir outra vez os olhos, olhou para a flor e ela ainda ali permanecia da exata maneira de antes, contudo crescera mais. Mas a flor não sorriu. Não, a flor não sorriu, era severamente séria, mantinha-se augustamente grave. E o homem sentado no belo campo do alto da romântica colina que tudo contemplava permaneceu impassível e tampouco não sorriu em sua escura tranqüilidade. Pois a flor não havia sorrido, a flor violeta não estava brincando, ela estava ligada íntima e indissociavelmente a tudo o que ocorria naquela estranha região e não podia sorrir, pois a região da colina onde ainda permanece o homem e observa tudo é uma sentença. E as sentenças são graves, sentenças não sorriem. E o homem lá ainda está, e a flor cresce, e conforme cresce, suas pétalas alastram um terrível e terno aroma que desenha uma palavra nos céus, e a palavra é “Alerta”.