Nunca Mais - A Lenda do Corvo Maldito
"Pasmei de ouvir este raro pássaro falar tão claro,
Inda que pouco sentido tivessem palavras tais.
Mas deve ser concedido que ninguém terá havido
Que uma ave tenha tido pousada nos seus umbrais,
Ave ou bicho sobre o busto que há por sobre seus umbrais,
Com o nome "Nunca mais".
("O Corvo" - Edgar Allan Poe / tradução de Fernando Pessoa)
Em Dezembro de 1970, Vincent e Anne Burton, um casal vindo do Canadá, muda-se para os Estados Unidos, onde compraram uma mansão em Boston. Isso porque, há poucas semanas, ocorrera uma tragédia na família da moça, Anne, que perdera, então, sua mãe e suas duas irmãs. Assim, o casal decidiu abandonar as tristes memórias, e partir para uma vida nova, em um lugar novo, antes que o Natal começasse.
O casal chega então na mansão, onde o Sr. Davies, antigo dono da residência, já os aguarda na porta.
- Seja bem-vindo novamente, Sr. Burton! - cumprimentou-o calorosamente o robusto Sr. Davies. - Agora, sim, está tudo pronto e impecável, como o senhor queria. E sua esposa ficará muito satisfeita. - Davies se curvou para a linda moça loira, que retribuiu o gesto com um sorriso.
- Ótimo, ótimo! - respondeu um entusiasmado Vincent Burton, com os olhos brilhando através das lentes de seus óculos. - Vamos entrar logo para finalizarmos o negócio.
Os três entram na mansão, que já estava completamente mobiliada e reformada. A Sra. Burton dirige-se ao andar de cima, em seu quarto, para desfazer sua última mala de pertences pessoais. Enquanto isso, o Sr. Davies entra com o Sr. Burton no escritório, e fecha a porta, com o rosto sério, pedindo para ambos se sentarem para uma conversa.
- Bom, Sr. Burton, eu receio nunca ter lhe dito o motivo pelo qual essa mansão ficou tantas décadas abandonada, antes de ser reformada para que eu a vendesse para o senhor. - o Sr. Davies falava em tom baixo, mas claro, pausadamente, escolhendo bem cada palavra para usar.
- Sim, é verdade! E confesso que sempre estive muito curioso quanto a isso. Não consigo imaginar o porquê dessa adorável mansão nunca ter sido vendida, nem mesmo habitada, durante tanto tempo. - a expressão em seu rosto deixava clara a sua curiosidade.
- Compreendo. Devo dizer-lhe, então, toda a verdade. Mas antes, devo lhe pedir perdão por ocultar por tanto tempo a verdade, e dizer que entenderei perfeitamente se o senhor decidir cancelar nosso negócio, e que estarei disposto a recompensá-lo pela minha falta de responsabilidade. - a seriedade com que o Sr. Davies falou essas palavras, fez Vincent olhá-lo assustado e interrogativamente.
- Pois agora é que não entendo mesmo! Por que diabos eu desistiria do negócio? O que houve, Sr. Davies, por favor, me diga! - exclamou Burton já com impaciência.
- Bom, Sr. Burton, eu herdei essa casa na década de 1950, quando meu pai faleceu, mas ela tem sido passada de geração em geração desde meados de 1830. É um lugar realmente antigo. - ele fez uma pausa, pensativo, e continuou. - O fato é que, meus ancestrais tomaram posse da propriedade na década de 1830. Antes disso, ela pertenceu a um casal que morreu precocemente, sem deixar herdeiros. Então, o governo leiloou a mansão, e meus antigos parentes a compraram. - o Sr. Davies fez, novamente, uma pausa, abaixando a cabeça.
- É uma história bem interessante, mas receio não ter entendido ainda, Sr. Davies. - Vincent continuava a olhá-lo impaciente, porém curioso.
- Vai entendê-la agora. Não foi uma morte comum a dos antigos donos desta casa, o casal que mencionei de 1830. Eram Arthur e Lenore Keaton. - Davies fez uma pausa, para lembrar da história, e prosseguiu. - Sabe-se que viviam felizes nesta casa, até que algo começou a perturbar a doce e angelical Lenore. Nunca foi descoberto o motivo de tal perturbação, mas boatos diziam que a linda moça tinha ataques de medo muito frequentes e sem causa aparente. Chegava a gritar por horas seguidas, e ameaçar jogar-se da janela do quarto para acabar com seu terror. A situação, claro, abalou também seu marido, Arthur Keaton. Então, depois de alguns dias sem ninguém ter visto mais o casal, nem movimento algum na mansão, um grupo de pessoas decidiu chamar a polícia para uma investigação na casa. As portas estavam trancadas, e ninguém atendia às batidas. Os policiais, então, arrombaram a porta principal e, quando chegaram à sala de estar, presenciaram um cenário horrível. Os corpos ensanguentados de Arthur e Lenore estavam juntos, de mãos dadas, estendidos no chão. E o mais sinistro: um corvo, pousado num busto de Atena sobre a porta, olhava fixamente para os corpos, com olhar maligno, até ter sua atenção desviada aos movimentos dos policiais, e sair voando pela vidraça. - o Sr. Davies fez uma pausa, observando o terror no olhar de Vincent, e continuou. - Sei o quanto isso pode lhe assustar, Sr. Burton. Mas o pior de toda a história, é que ela não parou na morte dos Keaton. A história repetiu-se ainda duas vezes com meus ancestrais que tomaram posse da mansão, embora, é claro, com diferenças consideráveis. Mas todas as três histórias tem coisas importantes em comum: o corvo, o sangue, e a morte. Daí em diante, Sr. Burton, as pessoas começaram a temer minha mansão, inclusive eu, passei a temê-la. E foi por isso que, depois dos três terríveis acontecimentos, a propriedade nunca mais foi ocupada. Minha mansão ganhou vida, como uma lenda: "aqueles que se instalarem na mansão sangrenta, serão vítimas do corvo maldito, e da morte.".
Durante alguns minutos, os dois ficaram em completo silêncio, encarando-se, e organizando os pensamentos.
- Bom, Sr. Davies, devo dizer que fiquei aturdido com toda essa história, realmente. Contudo, saiba que eu não costumo acreditar em lendas, mitos, crenças populares... Afinal, o senhor não tem certeza de como tudo aconteceu exatamente, tem? Quero dizer, sobre o corvo e tudo o mais.
- Não, Sr. Burton, é apenas uma lenda. São boatos. Mas eu confesso meu receio, e por isso senti-me no dever de contar tudo ao senhor, embora, novamente peço desculpas, atrasado.
Os dois encararam-se por mais algum tempo, até que Vincent levantou-se e disse:
- Certo, meu caro! Negócio fechado. Ficamos com a mansão. Agradeço toda a preocupação, mas insisto que é desnecessária. Lendas sempre foram lendas. Nunca se tornaram realidade. A realidade é essa maravilhosa mansão, comprada a um ótimo preço. - Vincent sorriu.
- Perfeito, então. Eu é que agradeço por tudo, Sr. Burton. E, precisando de qualquer auxílio, não hesite em me chamar. - despediu-se o Sr. Davies, saindo pela porta.
Desde a compra da mansão em Boston, a vida dos Burton havia prosperado muito. As trágicas lembranças do passado já estavam sendo esquecidas, pois uma nova era havia começado em suas vidas. Em pouco tempo, eles fizeram muitas amizades entre seus vizinhos, que os visitavam com frequência, inclusive o Sr. Davies e sua família. O natal eles comemoraram na casa do Sr. Davies, com sua família e alguns amigos. Foi uma linda e alegre noite. Tudo parecia perfeito, até que um dia, Anne desceu correndo os degraus da escada, vindo de encontro a seu marido na sala de estar:
- Vincent, Vincent!! O que é isso? - Anne estava desesperada, pálida e assombrada.
- Calma, querida, calma! O que houve? - socorreu-a Vincent.
- Essas... essas vozes! Eu ouvi, claramente eu ouvi! Di-diziam... mo-mo... morte! - Anne começou a chorar.
- Mas que vozes, querida? Não há voz alguma! Fique calma! - Vincent abraçou sua esposa, acalmando-a, enquanto pensava: "por que ela está agindo dessa forma, tão semelhante à Lenore Keaton? Eu nem cheguei a mencionar-lhe a história!".
Contudo, a situação repetiu-se muitas outras vezes. Três vezes por dia, às vezes até mais. Vincent chegou a conversar sobre isso com o Sr. Davies, que aconselhou-o imediatamente a tentar vender a casa, e sair de lá o quanto antes. Mas Vincent, ainda assim, não acreditava que os ataques de pânico de sua esposa tinham alguma relação com a lenda do corvo maldito. Era apenas uma coincidência. Ele fez com que Anne passasse a ter sessões diárias com um psicólogo renomado.
Depois de algumas semanas de sessões de psicologia, Anne estava muito melhor. Não foi encontrada nenhuma causa para seus ataques, que continuavam acontecendo, mas com muito menos frequência.
Num determinado dia, Vincent teve que ficar até mais tarde no trabalho, e não pôde comunicar-se com sua esposa. Chegou de noite em casa, por volta das onze horas. Foi até a Sala de Estar, não a encontrou. Foi à cozinha, e ela também não estava lá.
"Estará ela dormindo?" - pensa Vincent - "Ela teria me esperado chegar."
Vincent sobe os degraus da escada, então, em direção a seu quarto. Quando abre a porta, cai, aterrorizado, no chão. Lágrimas de horror escorrem em seu rosto. Anne, sua doce esposa, ensanguentada da cabeça aos pés, jazia na cama... morta. Tropeçando nos próprios pés, Vincent caminha até sua esposa, tremendo. Passa a mão em seus cabelos, repletos de sangue. E quando olha mais atentamente para seu peito, arregala os olhos, estupefato. Havia algo delicado sobre o peito de sua esposa defunta... uma pluma... negra... de um corvo!! O corvo maldito! Tão logo Vincent pegou a pluma, chorando de ódio e tristeza, ouviu ruídos distantes. Imaginou o que poderia ser, e decidiu enfrentar seu destino com dignidade. Beijou os olhos fechados de sua amada, e saiu do quarto, descendo as escadas para a sala de estar. Chegando no cômodo, ouviu claramente o som de batidas na porta.
- Com certeza não é alguma visita batendo à minha porta! - disse, em alto tom de voz, Vincent, abrindo a porta.
Viu somente a escuridão do Hall, e pensou ter visto formas brancas com o rosto de sua amada Anne. Fechou a porta, e passou os olhos por toda a sala de estar. Ouviu então batidas na janela. Caminhou decididamente até ela, as lágrimas já secas em seu rosto. Abriu a vidraça, e, como esperava, o corvo entrou voando em alta velocidade, e pousou numa prateleira sobre a porta.
- Seja bem-vindo novamente a esta câmara da morte, assassino de minha amada! - disse Vincent, gesticulando com ênfase. - Veio buscar-me? Levar-me para junto dela? Levar-me para planos celestiais... ou infernais? Ou veio devolver-me ela? Responda, pássaro maldito, não aumente minha agonia!
Disse o corvo, "Nunca mais".
- Interessante vocabulário, companheiro de minha desgraça. - Vincent continuou o diálogo, sentando-se numa poltrona de frente para o corvo, que o olhava fixamente do alto da porta. - Nunca mais... Nunca mais verei minha Anne? Nunca mais viverei? Nunca mais sentirei nada? Nunca mais me lembrarei? Me responda! - berrava Vincent, para, em seguida, encostar-se na poltrona, fechando os olhos. - Minha doce Anne! Tão jovem! Tão bela! Tão pura! Ela há de estar entre hostes celestiais! Diga-me, maldito, ela está?
Disse o corvo, "Nunca mais".
- Quem lhe ensinou essas palavras infernais? - perguntou Vincent, cheio de ódio. - Diga-me quem é seu mestre, diga-me qual é o seu objetivo nesta Terra! Por que você amaldiçoa esta casa? De onde vens tu?
Disse o corvo, "Nunca mais".
- Para o inferno, ave maldita! - Vincent levantou-se, furioso, fazendo gestos de expulsão para o corvo. - Retorne para as trevas, de onde veio! Mas deixe minha Anne aqui, deixe sua alma em paz! Leve-me com você, leve-me para outra dimensão, tira-me deste lugar, mate-me, destrua-me, mas coloque fim à minha agonia, eu lhe imploro! - exclamou Vincent, num último suspiro.
Caiu, então, morto, no chão.
Nunca foi realmente descoberta a causa das mortes do Sr. e da Sra. Burton, mas os boatos continuaram, e a lenda do corvo maldito ganhou mais vida.
"Aquele que morar na mansão sangrenta, será vítima do corvo maldito, e, nas sombras malignas projetadas pela ave, sua alma ficará presa, e libertar-se-á... nunca mais!".
* Conto baseado no poema "The Raven" (O Corvo) de Edgar Allan Poe.