A cruz e o canino - Capítulo 10: Você tem rezado?

Santa Fé – 1980

Antônio estava num quarto completamente escuro. Não via nada senão uma janela que dava para o exterior. Do lado de fora era dia, o sol brilhava sobre a grama, e as árvores dançavam sob o céu sem nuvens. Antônio seu um passo em direção à janela, mas uma mão o segurou. Ele olhou para trás assustado e viu Júlia, que agora segurava também o outro tornozelo.

-Fique comigo, meu amor. - disse a mulher. - Lembre-se de como fomos felizes juntos.

Antônio tentou das mais um passo, mas, cada vez que fazia esforço para se soltar, afundava mais.

-Venha ser feliz comigo. Não se esqueça de mim. Você disse que me amava e nunca me esqueceria.

Antônio se debatia, mas, quanto mais afundava, mais perdia as forças. Afundou a ponto de conseguir ver o que estava abaixo de si, um rio de fogo transladava um deserto, e várias pessoas estavam lá, sofriam, sentiam fome, dor, cansaço e tristeza. Não era mais Júlia que o segurava, mas sim um demônio, o “Senhor das moscas”, que estava naquele dia no cemitério.

-Júlia é muito gostosa! E agora eu a tenho para mim! Ela me faz companhia! É só minha!

Antônio perdeu as forças e deixou-se puxar pelo demônio. As sombras o combriram e ele ouviu a voz de Júlia:

-Eu te amo.

Antônio estava numa rua, à noite. No fim dela estava a catedral, e, sobre a catedral, uma pessoa, um demônio. O padre o via nitidamente, apesar da distância de umas centenas de metro. Era o mesmo demônio da outra vez, que sorria malignamente e encarava Antônio, o qual, por sua vez, piscou, e a imagem do demônio chuviscou. Deu alguns passos e piscou novamente. Quando abriu os olhos, o demônio estava a sua frente, podia ouvir-lhe a respiração e sentir-lhe o bafo. O demônio o encarava com aqueles olhos vermelhos, e disse:

-Você é meu.

Não havia nada, apenas o escuro. Uma figura ao longe, não tão longe, talvez perto, perto demais. Um demônio. Antônio corria, mas o demônio o alcançava, apesar de andar. Antônio se desesperava, tentando correr para longe, e o demônio apenas ria, ria compulsivamente.

-Homem tolo. Não pode fugir de mim. Você é fraco! Eu tenho Júlia. Você não tem nada. Você é sozinho. - e ria. - Pare de fugir. É inútil. Venha comigo. Eu tenho Júlia só para mim. Você a não quer? Venha. Venha! Você é fraco, muito fraco. Desista.

Antônio tentava fugir, inutilmente, mas não podia parar de correr. Não podia ceder àquele demônio.

O demônio alcançou Antônio, o segurou, puxou a estaca de madeira do seu bolso e, quando enfiou-a em seu coração, tudo escureceu.

-Você tem rezado?

-Sim, bispo. Rezo antes das refeições e nas missas.

-Apenas?

-Sim.

-Isso é pouco. Não é nem o obrigatório. Você tem que rezar no mínimo a liturgia das horas. Mas isso é o mínimo apenas. A verdadeira oração começa quando acaba a obrigação. Você precisa rezar para se fortalecer em Deus.

-Mas...

-Sem desculpas. Você tem que rezar, entregar seus problemas a Deus. Você verá como tudo vai melhorar.

-Sim, bispo.

Jacobina
Enviado por Jacobina em 06/10/2011
Código do texto: T3262024
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