A cruz e o canino - Capítulo 9: Baal-Zebub

Santa Fé – 1980

Antônio acordou com o terço na mão, só conseguiu dormir depois de rezar o terço inteiro, mas pelo menos não foi mais perturbado durante a noite.

Quando entrou na cozinha, o bispo, que acordava muito cedo, e normalmente já estava trabalhando a essa hora, o esperava sentado à mesa. Antônio se sentou e perguntou:

-Alguma coisa aconteceu?

-Sim. Há uma pessoa suspeita de possessão. Um padre exorcista foi chamado, o padre Pedro, e você vai com ele para auxiliá-lo. Eu sei que você o conheceu no Vaticano, e acho que você é uma pessoa preparada o suficiente para ir com ele, e será uma boa experiência para você.

Bateram à porta. O bispo abriu e o padre exorcista entrou e cumprimentou o bispo. Ele estava vestindo uma batina e carregava uma maleta. Sentou-se à mesa e comeu pão. Antônio o fitava, e ele retribuiu o olhar. O exorcista olhava atento para Antônio, mas, de repente, sua expressão tensa foi substituída pela de surpresa.

-Antônio! Quanto tempo! Você mora aqui, eu tinha me esquecido. Já caçou algum vampiro? - disse Pedro, quando finalmente reconheceu seu ex-aluno.

-Não cacei nenhum ainda, mas o bispo me encaminhou para ir ao exorcismo com você.

-Ainda não sei se será um exorcismo. Veremos se é realmente um possesso, mas será um prazer te ter como auxiliar.

-O prazer é todo meu.

-E a vida depois que virou padre?

-Tranquila, mas não monótona. Estou aqui morando com o bispo, e não tem um dia que eu fique parado, sempre tem algum serviço a ser feito.

-Isso é bom, servir a Deus. E Júlia?

-De vez em quando ainda sonho com ela, mas estou superando isso. Com o tempo passa, já não tenho mais aquela duvida que tinha antes, aquele receio. - disse Antônio, não muito confiante, e Pedro não engoliu muito, mas deixou passar.

-Está preparado para hoje?

-Na verdade, não tenho a mínima ideia do que acontecerá lá.

-Não se preocupe. Te explicarei tudo no carro.

Os dois padres terminaram o desjejum e foram para o carro de Antônio: o Opala que um dia foi de José Maria.

A casa não distava muito da igreja, e logo chegaram a ela, era uma casa grande e bela, várias janelas na fachada, e imensas portas na frente, num estilo meio vetusto, talvez um pouco barroco. Entraram nela e viram um imagem de Nossa Senhora numa mesinha logo na entrada. A casa toda era cheia de imagens: quadros e miniaturas de igrejas, imagens de santos e da Sagrada Família, crucifixos, e havia uma bíblia aberta numa mesa na sala.

O padre exorcista conversou com a família do suposto possesso, e foi decidido verificar se era de fato um energúmeno. Pedro pegou um copo, encheu-o de água e a benzeu, e instruiu ao pai que levasse a água benta para o filho beber porque, se o filho fosse realmente um possesso, não suportaria beber daquela água. O pai levou o copo com água para o rapaz, que não recebeu-o muito bem.

-Não quero. - disse o menino, relutante.

-Mas filho, você tem que beber água, se não morrerá.

-Eu já bebi, pai.

-Beba alguns goles apenas, para molhar a garganta, faz tempo que você não bebe água.

-Eu estou bem. Não quero água.

-Beba. Água faz bem.

-Não! Isso é água benta!

-Como você sabe? Eu não te disse isso.

-Eu ouvi vocês conversando.

-A gente não comentou sobre isso aqui em cima. E qual é o problema com a água?

-Nenhum, apenas não quero beber.

-Fá-te-á bem beber água. Você não pode ficar sem beber, se não há de se desidratar.

O pai deixou o copo no criado-mudo e saiu do quarto, para onde os outros esperavam-no. O exorcista disse que tinha quase certeza que se tratava realmente de um possesso, mas esperaria para vê-lo tomar a água benta.

Duas horas se passaram, e nada de o jovem beber a água. O padre disse:

-Já está bom, já consegui o que eu queria. Reúnam as pessoas, peguem os terços e vamos para o quarto.

O padre entrou sozinho no quarto, primeiro, e foi falar com o menino:

-Bom dia, filho.

-Bom dia.

-Você sabe o que está acontecendo?

-Sei.

-Como você se sente?

-Mal. Isso não é bom para mim nem para ninguém. Eu errei e me desviei do plano de Deus.

-E você está disposto a mudar?

-Sim.

-Sabe que será difícil?

-Sim

-Sabe que você não conseguirá sozinho e precisará da ajuda de Deus?

-Sim

-Está disposto a seguir o que eu vou lhe recomendar?

-Estou.

-E como você sabia que aquela água era benta?

-Que água? - o menino parecia surpreso ao ver o copo d'água sobre o móvel.

O padre chamou as outras pessoas para dentro do quarto, e elas começaram a rezar o terço. Pedro fechou os olhos e começou a rezar, enquanto Antônio vigiava o jovem.

-Ave Maria, gratia plena... - rezou Pedro, em latim, e enfim terminou: - Amen.

O menino fechou os olhos e começou a tremer. O padre exorcista abriu a pálpebra do menino, seus olhos estavam completamente brancos.

-In nomine Iesu, exorcizo te. In nomine Iesu, dic nomen tuum. In nomine Iesu, si es hic, manifesta te. - disse o padre, com autoridade.

O rapaz abriu os olhos e encarou o padre com um olhar demoníaco. Os vampiros tinham olhos demoníacos, mas os olhos deste possesso em nada se comparavam aos daqueles. Estes eram muito piores.

-Por que tanto rezam, tolos? Eu não estou possesso. Estão perdendo o seu tempo. Podem parar.

As pessoas apenas começaram a rezar mais alto.

-Parem com isso! - gritou o menino. - Eu não estou possuído!

-Então beba a água benta.

-Não quero.

As pessoas estavam rezavam o terço cada vez mais alto.

-Beba! - ordenou mais uma vez Pedro.

O demônio pegou o copo e bebeu, mas começou a uivar de dor depois de findo o copo.

-In nomine Iesu, exorcizo te! In nomine Iesu, dic nomen tuum! In nomine Iesu, si es hic, manifesta te!

-Baal-Zebub!

-Crux sacra sit mihi lux, non draco sit mihi dux. Vade retro, Satana, nunquam suade mihi vana. Suntum mala quæ libas, ipse venena bibas.

O demônio pulou da cama em direção ao exorcista. Antônio se assustou, mas lembrou-se de que o padre lhe pedira que não intervisse, salvo quando diretamente ordenado.

-Seja maldito! Seu Deus não é de nada! Ele morreu na cruz! Eu o matei! Eu! Ele está morto! Mortinho! Em nada pode te ajudar! Você vai para o Inferno! Você e todos os que estão aqui! - e virou para Antônio. - Você! Padrezinho tolo! Morrerá se não sair daqui! Irá para o Inferno assim como a sua mulher! - Antônio sentiu um calafrio percorrendo sua espinha, mas continuou ali, parado.

-Antônio, pegeu aquele crucifixo na parede e traga-o aqui. - disse Pedro.

Antônio obedeceu, e, quando começou a andar, o possesso começou a fitá-lo, mas logo voltou a atazanar o exorcista quanto este voltou a rezar. Antônio posicionou-se em frente ao possesso, segurando a cruz, e Pedro disse:

-Ajoelhe! Prostre-se! Adore aquele que te criou! Aquele que é maior que você!

O possesso ajoelhou-se.

-Agora beije a cruz, demônio!

O possesso se recusou.

-Em nome de Jesus, beije a cruz! - Ordenou o exorcista.

O possesso beijou a cruz, e levantou guinchando. O padre começou outra oração de exorcismo, e logo o demônio disse:

-Vou embora, já não aguento mais.

Os objetos que estavam em cima da mesa se ergueram e uma corrente de ar abriu a porta e invadiu o quarto, arrastando as coisas pela janela.

-Acabou? - perguntou o menino.

-Sim, filho. Agora reze uma Ave-Maria.

-Eu não sei rezar.

-Então eu rezo por você.

-Não precisa, estou bem.

O padre rezou uma Ave-Maria, e o rapaz entrou em transe novamente, e o demônio se manifestou outra vez.

O exorcista disse a Antônio que aspergisse água benta no possesso, enquanto ele rezava e ordenava que o demônio saísse.

O menino ergueu-se no ar, e foi em direção ao padre, e o ergueu consigo.

-Vou te levar para o Inferno comigo.

-Vade retro, Satana.

Pedro foi jogado sobre a mesa, mas logo comçou a rezar e Antônio aspergiu água benta no energúmeno.

As orações continuaram até de noite, até por volta das 22h, quando o demônio enfim deixou o corpo. O padre estava rezando uma oração de exorcismo, e o possesso começou a se debater e gritar, e, enfim, deixou o corpo. O céu ficou preto e o silêncio que se fez foi quebrado pelo estrondo de um relâmpago, que caiu sobre a casa. O menino acordou, rezou um Pai-Nosso e uma Ave-Maria e tomouum pouco de água benta, a mando do padre.

Pedro pediu para ficar um pouco a sós com o possesso, mas que os familiares continuassem rezandodolado de fora, e, quando eles saíram, falou para o rapaz:

-Não se meta mais com o Diabo. Ele não é bom para você, aliás, para ninguém. Vá à missa, participe mais na igreja, reze ao acordar e antes de dormir e, o mais importante, viva sempre na lei de Deus.

O menino agredeceu e lhe disse que a experiência de ter o diabo no corpo foi horrível, mas agora ele se sentia mais forte e mais perto de Deus, e que aquele incidente tinha lhe servido de lição para seguir sempre no bom caminho. O padre abençoou o menino e o deixou no quarto, e foi falar com a família para ficarem de olho nele, para que ele fosse bom agora, e seguisse no caminho da retidão.

Os dois padres estavam no Opala, voltando para a catedral, calados. Pedro estava exausto por causa do exorcismo, e Antônio, pensativo. Ficaram o percurso inteiro em silêncio, mas, ao parar no porta da casa do bispo, antes de saírem do carro, Antônio falou para Pedro:

-Que que os vampiros tivessem uma chance para voltar atrás, como quem é possuído.

-Está preocupado com Júlia? - perguntou Pedro, que estava abrindo a porta, mas interrompeu o movimento para falar com Antônio, que abaixou a cabeça com aquela pergunta, mas nada falou. Pedro continuou, não precisava de resposta.

-Ela já estava morta. Não era mais ela naquela hora. Quanto a isso ela não tem que responder por nada, só pelas coisas que fez em vida, como qualquer um de nós.

Uma lágrima escorreu pelo rosto de Antônio, que não disse mais nada, apenas saiu do carro e foi dormir em sua cama.

Jacobina
Enviado por Jacobina em 04/10/2011
Código do texto: T3258250
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