A cruz e o canino - Capítulo 8: A tentação (Reescrito)

Santa Fé – 1980

Depois dos anos que passou no Vaticano, Antônio enfim se ordenou e voltou para o Brasil. Não era responsável por nenhuma paróquia, mas ajudava o bispo na catedral.

O bispo era uma pessoa muito séria quando o assunto era fé, jamais admitia desrespeitos de quaisquer tipo para com Deus, conquanto fosse, pessoalmente, um doce, sempre pronto para ajudar os outros com seus problemas, ou fortalecer a fé de alguém com seus ensinamentos.

Os casos de vampiros não eram muito frequentes, e, nesse meio tempo, Antônio ficava na catedral, ajudando o bispo com os deveres da catedral.

Antônio rezava missas, fazia confissões e realizava algumas tarefas domésticas, como arrumar as roupas do bispo, fazer compras e buscar pacotes. A vida era demasiado quieta, mas Antônio esperava paciente e humildemente a ação, até porque, se pudesse escolher, ele não deixaria ninguém se tornar um vampiro.

O padre andava por uma rua deserta, a noite era escura, sem lua, e as estrelas eram facilmente visíveis no céu, pois os postes estavam apagados. Ele suava frio, e um calafrio subiu-lhe a barriga e chegou até sua garganta, travando-a e fazendo o homem engolir em seco. Ele andava apressadamente, aquela rua não lhe trazia boas sensações. Começou a andar cada vez mais rápido, até que, quando deu conta de si, já estava correndo. Fechou os olhos por causa do mal-estar causado pelo lugar, mas, de repente, parou e virou paulatinamente.

Viu a casa em que morava antes de sua mulher morrer. Ela estava com as luzes acesas, e ele ouvia vozes vindas de dentro. Se aproximou da casa e olhou pela janela. Sentados à mesa de jantar estava uma família: um homem, uma mulher e uma criança. Eles tomavam sopa e bebiam café com leite. Antônio sorriu e se virou para ir embora, mas, quando deu o primeiro passo, ouviu um grito vindo do interior da casa. O padre se virou a tempo de ver um bicho agarrando a mulher. O monstro era feio, de pele pálida, era careca e tinha feições de cobra. Seu corpo era musculoso e tatuado, e tinha as asas azul-escuras nas costas. Ele segurava a mulher com uma se suas mãos e, com a outra, sugava-lhe a alma. Antônio arrombou a porta e entrou na casa, mas já era tarde, a mulher jazia no chão, e nem sinal do homem ou da criança.

Antônio se aproximou da mulher morta e viu que era Júlia. Começou a chorar e abraçou-a. Ouviu um barulho vindo da cozinha, um prato quebrando, e, ao olhar na direção do ruído, viu o homem. Era ele próprio, com um semblante desolado. A figura de si desapareceu como que fumaça, dando lugar à criança, que tinha o rosto desfigurado, um sorriso diabólico, era muito magro e tinha cabelo ralo. Olhou fixamente para Antônio e disse:

-Por que sofre? É por causa da mulher? Venha comigo, posso te dar o que você quiser: poder, riqueza, mulheres...

Antônio nada disse, tampouco olhou para o menino.

-Você acreditava n'Ele, e Ele deixou que isso acontecesse, permitiu que ela morresse. - continuou o menino.

-Mentira! Foi você, desgraçado! Por sua culpa ela está morta!

Antônio puxou a estaca do bolso e fincou-a no peito da criança, mas nada aconteceu a ela.

-Homem tolo! Por que usa isto contra mim, se nem ao menos tem fé? Você não pode me vencer, sou mais forte que você, sou mais forte que os homens. Eu posso te dar a mulher. Quer a mulher?

Júlia levantou-se, e andou na direção de Antônio, que estava paralisado. A mulher o abraçou e o beijou, e Antônio não sentia força alguma para se soltar dela, ficaria daquele jeito por toda a eternidade se pudesse, teria sua mulher de volta. Júlia o prendia com uma força que ele não sabia se era física ou sentimental. Ela parou de beijar-lhe, mas não o soltou. Tocou em seu rosto, e Antônio fechou os olhos. A mão da mulher foi descendo pelo seu rosto, passou pelo pescoço e parou sobre o peito. Antônio ainda estava de olhos fechados, incapaz de qualquer reação. A mulher tocou na cruz em seu peito e fechou a mão sobre ela. Antônio abriu os olhos e empurrou a mulher, que tinha um expressão mista de choro e raiva:

-Você me abandonou, - ela começou a dizer, aos soluços. - deixou que me matassem, não me salvou. Mas eu te perdoo. Venha comigo, eu te darei o meu amor e nós viveremos juntos por toda a eternidade.

Antônio olhou para a mulher, que chorava. Ele próprio também estava quase chorando. Era sua mulher à sua frente, ela tentava arrastá-lo para o Inferno, mas ainda era sua mulher. Antônio sabia da decisão que fizera, e que ela era definitiva, mas ver sua mulher a poucos metros dele o fazia se sentir inseguro quanto ao caminho que tomou, “mas”, pensou, “eu fiz essa escolha por causa dela, então por que eu sinto dúvidas quando a vejo? Ele pegou o cruxifixo em seu pescoço e o arrancou. O menino sorriu vitorioso, mas, para sua surpresa, Antônio não o largou. Uma mão segurava o cruxifixo e, com a outra, ergueu a estaca e começou a rezar.

“Crux sacra sit mihi lux,

Non Draco sit mihi dux,

Vade retro Satana!”

E enfiou a estaca no peito da mulher, que guinchou e o olhou com olhos demoníacos, olhos de vampiro, e sumiu. O menino, para quem Antônio olhava agora, começou a gritar, enquanto se dissolvia em sombras:

-Maldito seja você, Antônio! E maldito seja Deus! Um dia ainda voltarei, e você será meu! Não descansarei enquanto não tiver sua alma! - E foi engolido pelas próprias sombras.

Antônio acordou. Era noite, e ele estava suado. A luz do seu quarto estava acesa e o bispo, sentado, ao seu lado.

-Você o derrotou?

-Sim.

-Então você já aprendeu que não é sua força nem seu passado que vão interferir em sua luta, mas Deus. Certo?

Antônio assentiu com a cabeça e se acomodou para dormir de novo, e, quando se virou de lado, sentiu algo no seu bolso. Tirou um colar e o abriu. Dentro havia uma foto de mulher, era Júlia, que sorri para ele.

Tenho certeza que ela está bem, e que me apoiaria em minha escolha nessa luta, como está, lá no céu.

Fechou o colar e o guardou. O bispo apagou a luz e também foi dormir.

Jacobina
Enviado por Jacobina em 04/10/2011
Código do texto: T3257500
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.