A cruz e o canino - Capítulo 6: José Maria
Santa Fé – 1974
Júlia estava sentada na escada do jardim, com um vestido salmãoo e um chapéu. Ela admirava as flores, mas, sob aquele pôr-do-sol, era ela quem merecia ser admirada. Antônio saiu da casa, e viu a mulher, com os olhos azuis brilhando, como que uma extensão do céu, que agora ficava alaranjado, e sentou ao lado dela.
A mulher olhou para ele e sorriu, e ele se deitou na grama. Ela repousou a cabeça sobre seu peito, e eles passaram a observar as nuvens.
-Olhe aquela, parece uma ovelha.
-Todas, de certa forma, parecem ovelhas.
-Aquela mais do que as outras.
-Aquela parece um cachorro.
-Para mim parece um tigre.
-Aquela parece um soldado com cabeça de porco, asas e rabo de peixe.
-O que você tem na cabeça? - perguntou a moça, rindo.
-Aquela parece... uma nuvem!
-Você não presta. - e subiu em Antônio, e os dois começaram a se beijar e a rolar pela grama. O chapéu foi dexado para trás, revelando os cabelos da moça, que brilhavam sedosos ao refletir os raios de sol.
Ela pegou a mão de Antônio que acariciava seu rosto e conduziu-a para baixo, e a repousou sobre seu seio esquerdo. Antônio beijava a mulher enquanto ela se despia do vestido, mas Antônio apenas sentia isso, pois estava de olhos fechados. Não... Estava cego. Antônio se levantou de súbito, assustado, esfregandoo os olhos e, enfim, conseguiu abri-los. Olhou para Júlia, que estava deitada na grama, semi-nua.
-Venha, amor.
-Espere. Há algo errado aqui.
-Venha, vamos fazer amor. Me devore. - disse ela, sedutora.
Antônio sentiu uma força puxando-o, e, quando deu por si, jazia sobre a grama, com sua mulher sobre si. Ela deitou sobre seu corpo e começou a beijá-lo, e ele sentiu como se perdesse a visão novamente. Nem pensava na possibilidade de se soltar, simplesmente se deixou ficar nos braços de Júlia: era muito mais fácil e cômodo, sem contar que era muito mais prazeroso. Sua visão ia embaçando, até que apagou completamente, e Antônio tambéu perdeu o controle de seus membros, mas podia sentir o toque de Júlia, os beijos, sua respiração, seu suor e... seus dentes!? Antônio abriu os olhos a tempo de ver um homem tirar Júlia com um chute. Era José Maria.
O padre sacou uma estaca de madeira e apoutou-a para Júlia. Antônio podia apenas olhar, pois estava paralisado, prostrado na grama. Júlia foi em direção ao padre, que tentou se defender, ineficazmente, e caiu no chão sangrando ao ataque da vampira, que foi na direção de Antônio, de cujos olhos escorriam lágrimas, e tirou a roupa ensanguentada antes de deitar-se novamente sobre o corpo do homem.
O coração de Antônio batia muito rápido, ele estava com que colado no chão, com o corpo nu de Júlia sobre o seu, mas ele conseguiu mover o pescoço, e viu o corpo de José Maria, que sangrava, e viu sua estaca, muito próxima. Antônio poderia alcançá-la, mas não conseguia mexer o corpo. Fechou os olhos e começou a rezar, e Júlia começou a falar em seu ouvido: “Desista, amor. Isso é inútil. Fique comigo, venha para mim. Eu te amo”.
Antônio ignorou a mulher e continuou rezando, até que conseguiu pegar a estaca, e a fincou no coração de Júlia, pelas costas.
A mulher deu um grito, e olhou para Antônio, chorando.
-Você me matou! Eu te amava, e apenas queria você, mas você fez isso comigo! Você traiu minha confiança!
Antônio, apesar das lágrimas, ignorou o que a mulher falava, pois sabia que era o demônio falando por ela, tentando seduzi-lo através dela. A mulher enfim desapareceu. Os movimentos de Antônio começaram a voltar, mas a sensação era diferente, ele se sentia mais disposto, mais forte, mais vivo. Era uma sensação boa, mas Antônio sabia que sensações boas nem sempre vinham de coisas boas. Ao fechar a boca, sentiu uma pontada em seu lábio inferior, e um fio de líquido escorreu em seu queixo. Ele levou a mão à boca e sentiu dois caninos alongados, e começoua a gritar, até que acordou em sua cama, ainda gritando.
Estava escuro, mas, pelas silhuetas, Antônio soube que estava no quarto. Olhou para todas as direções e não viu ninguém. O bispo bateu na porta, entrou no quarto e acendeu a luz.
-Tudo bem, Antônio?
-Agora tudo bem. Tive um pesadelo.
-Reze e durma. Rezar é sempre bom. Você rezou antes de dormir?
-Não.
-Reze. Boa noite.
Todos faziam silêncio enquanto o caixão era posto na cova e coberto com terra. Antônio por pouco não chorou, e só conseguia se lembrar do dia em que conheceu o defunto, uma das poucas lembranças que tinha dele.
O dia estava ensolarado, mas os rostos das pessoas, não. Antônio foi no carro do bispo até o aeroporto depois do enterro, para voltar para o Vaticano.
Antônio estava parado em frente ao seminário. Viaturas estacionadas e ambulâncias compunham a paisagem daquele prédio isolado por uma faixa.