A cruz e o canino - Capítulo 5: Liberdade
Roma / Santa Fé – 1974
Antônio estava sentado na janela do avião, preocupado com o que aconteceu e se lembrando da conversa com o diretor na noite anterior:
-O padre José maria faleceu.
-Não foi um vampiro, foi? - perguntou Antônio, depois de um momento de silêncio, para assimilar as coisas.
-Não. Não sei bem os detalhes, acho que ele teve um derrame. Ele tinha problemas de pressão alta, não?
-Não sei, para falar a verdade.
-O enterro será depois de amanhã. Você viajará pela manhã para o Brasil. Já comprei a sua passagem. Hoje é domingo, você voltará na quinta. - disse o diretor, contando os dedos mais simbolicamente que para efetuar o cálculo em si.
-E a cidade, ficará sem caçador de vampiros?
-O Vaticano enviará um provisório para lá até você se formar.
Antônio encostou a cabeça na poltrona do avião, estava cansado por não ter conseguido dormir à noite, ficara pensando em José Maria. Há dois anos atrás, quando o conheceu, ele era um pessoa que, embora tivesse mais de cinquenta anos, transparecia juventude e alegria. Era muito sério, mas nunca estava de mau-humor e estava sempre pronto para ajudar o bispo.
-Com licença. - disse uma jovem de vinte e poucos anos, de cabelos claros e olhos castanho-escuros. Era muito magra, mas bela, e era alta para uma mulher. Usava um vestido azul-claro na altura dos joelhos e calçava uma sapatilha.
Antônio levantou e deu passagem para a mulher, que se sentou na cadeira da janela, tirou um livro do bolso, junto com um par de óculos, e começou a ler.
Antônio retomou o seu assento e tentou ver a capa do livro com o canto do olho. A mulher, percebeu o interesse do rapaz e mostrou o Inferno, de Dante Alighieri. Começaram a conversar e, de repente, estavam discutindo sobre o Inferno, pois Dante escrevera um belo poema, mas o Inferno não é nada daquilo: um lugar físico por cujos portões você entra e depois pode sair. As almas não têm corpo material, então o Inferno não pode ser um lugar físico. A mulher disse que ela imaginava o Inferno simplesmente como a falta de Deus, já o padre disso que achava que o Inferno era apenas a decepção e o sofrimento eternos ao descobrir que se não é Deus, depois de passar a vida inteira agindo como se fosse.
-Eu acho que o homem só é livre quando pode renunciar a Deus e escolher o Inferno. - disse a mulher, séria.
-Isso é livre arbítrio, não liberdade. - respondeu o padre, paciente.
-Então você quer dizer que o homem só é livre se escolher Deus.
-Sim, factualmente.
-Claro que não. Como assim? “Você pode escolher Deus ou não, mas só será livre se escolhê-lo.”
-Quem é mais livre, um escritor, que passará o resto de sua vida escrevendo, ou um estudante, que pode ser o que quiser?
-O estudante, que pode fazer o que ele quiser, porque o escritor está preso à escrita.
-Não. O estudante pode ser o que ele quiser, mas ele ainda não é coisa alguma. O escritor já foi estudante, e já teve a liberdade de escolher ser escritor, mas, para ser livre para escrever, teve que renunciar a todo o resto.
A mulher nada dizia, apenas ouvia o homem falar, esperando uma brecha para atacar.
-O homem livre não é aquele que pode ter tudo, mas sim aquele que, de fato, tem algo. Quem tem tudo, nada tem; mas quem tem pouco, tem o suficiente. Um homem que tem só a sua mulher e lhe é fiel, tem o suficeinte; mas o homem que quer ter várias mulheres não tem nenhuma verdadeiramente. Com Deus é semelhante: quem tem Deus, tem tudo. O amor, a felicidade, mas tem que renunciar o Mal; mas quem não tem Deus apenas para ter o que quiser, em potência, não tem nada realizado, ele não tem nada e acha que tem tudo.
-Isso não é verdade, liberdade não é querer tudo, é ser autêntico, mesmo que isso implique em não querer nada. A pessoa só é livre quando faz o que quer.
-Isso é livre arbítrio, se você quiser, você pode se destruir, mas você será eternamente condenado ao Inferno. A liberdade não é fazer o que quiser, mas ter o direito e o dever de fazer o bem. Você não é livre para matar alguém, pois a vida e a morte estão além do seu controle, mas Deus pode, pois a vida e a morte estão sob seu mando; da mesma forma, um bebê não é livre para pintar a Mona Lisa, pois as técnicas de pintura não são dominadas por ele, mas Leonardo da Vinci er alivre para pintar, pois ele dominava as técnicas, mas para isso ele teve que renunciar muitas coisas: ele não pôde ser rei da Itália, não pôde escrever a Divina Comédia, mas, por isso, foi livre para pintar a Mona Lisa.
A mulher pediu licença novamente e foi ao banheiro. Antônio ouviu um grito assustador e um forte estalo, mas isso não pareceu incomodar os outros passageiros. Uma senhora entrou no avião, pôs os óculos e apertou os olhos para ler o seu assento no cartão de embarque, e se virou para Antônio:
-Com licença, filho, meu lugar é esse, na janela.
-Mas... havia uma moça aqui.
-Eu não sei, mas esse é o meu assento. - reclamou a velha, e mostrou a passagem para Antônio. Ela estava certa.
A senhora se sentou na cadeira, e imediatamente começou a roncar. Antônio esperou que a mulher que conversara com ele aparecesse logo, o que não aconteceu, e ele decidiu que o melhor era não pensar mais nisso, então encostou a cabeça no assento, e adormeceu, como a senhora ao seu lado.
-Atenção, passageiros, logo pousaremos no Aeroporto Internacional de Santa Fé. - disse a aeromoça. - Pedimos que permaneçam sentados, com os cintos afivelados e a poltrona na posição vertical, até a parada total da aeronave. Agradecemos a preferência. Obrigada e volte sempre.
O avião parou e os passageiros se levantaram. Antônio pegou a bagagem e estava no corredor, no meio da fila de desembarque, quando passou pela comissária de bordo, jurou que viu de relance a mulher com quem conversara antes do voo, mas, ao se virar, lá estava apenas a comissária, como sempre esteve.
Antônio desceu do avião e pegou um táxi para a catedral. Quando chegou já era noite, mas o bispo o esperava na sala para o jantar.
-Boa noite, - disse o bispo, acolhedor. - bem-vindo de volta.
-Boa noite. - respondeu Antônio, colocando sua mochila e seu chapéu na mesinha da sala.
-Você deve estar com fome. Tem pão e sopa na mesa, va mos comer. - disse o bispo, se levantando da poltrona para cumprimentar Antônio.
Os dois se sentaram à mesa, e Antônio serviu sopa em ambos os pratos, e começaram a tomá-la.
-O enterro é amanhã, não é? - Perguntou Antônio, sem olhar para o bispo, sem saber se essa era uma boa hora para fazer esse tipo de pergunta.
-Sim. - disse o bispo, e viu a expressão de Antônio. - Não se preocupe, ele foi para junto de Deus, e foi como queria, de forma rápida, indolor... ele está bem, eu tenho certeza.
Antônio sorriu.
Antônio, deitado na cama, pensava no padre morto, e em como o conhecera, naquele dia em que sua mulher morreu e virou um vampiro. No começo não tinha esntendido quem era aquele homem que fincou a estaca no coração de sua mulher. Ela sofria, gritava e se contorcia, mas ainda era sua mulher, foi o que pensou Antônio, e aquele homem apareceu e achou que tinha o direito de decidir sobre a vida de Júlia; mas agora Antônio sabia que sua mulher não estava mais viva naquela hora. O rapaz rezou um terço e dormiu.