Lá estava ele, um homem de trinta ou trinta e cinco anos, sentado na areia úmida, confuso, as ondas batendo a cinco metros de distância dali, e uma brisa oceânica lhe atingindo violentamente a face.
Onde estou? O que faço aqui? Aos poucos, pensamentos, lembranças e a consciência da situação insólita na qual encontrava-se, atingiram-lhe sem cerimônia. Aturdido, fechou os olhos forçosamente, não apenas para brecar o estado anormal da sua mente, mas também, para impedir que o vento carregado de areia atingisse-lhe os olhos.
Droga!, onde estou? A calça jeans, que tanto estimava como sendo a única que apreciava vestir, a camisa social azul, estavam agora enxarcadas e sujas, como se tivesse andado de muito longe a carregar algo pesado.
          Olhou ao redor, abobalhado. A faixa de areia tinha entre 20 e 30 metros, e adiante, mata e mais mata para todos os lados. Como havia chegado ali, afinal?
Tossiu copiosamente - sua garganta doia, doia -, cuspiu uma saliva salgada, azeda, também sangue e álcool. Havia bebido. E muito. Apoiou-se na mão esquerda, tentando levantar-se, inúltimente. Com os olhos semicerrados, virou-se para o mar, e tal qual foi sua surpresa ao ver aquele objeto amorfo abandonado ao seu lado.
Coração batendo. Tosses violentas de sangue. O peito pegando fogo. Como doía. Um cavalo. Um cavalo marrom e preto, os olhos fechados, o corpo estendido ao seu lado. Era um homem sentado ao lado de um animal enorme, numa praia aparentemente deserta, os dois, animal e ser humano, ambos perdidos.
          Logo, percebera que o outro estava morto. Uma expressão de dor no rosto desfalecido. Incomodado, o homem levantou-se, ficou de frente para o bicho, e atingiu-lhe em cheio com um chute na cara, depois outro, e outro... Mais violento... Com o calcanhar... Toma demônio... Demônio...
Gargalhou, obervando a cabeça disforme do animal. Triturada. Sentou-se sobre o seu corpo, e observou o mar. O vento cada vez mais forte à medida que a noite se tornava mais sombria e experiente, lhe atingia o corpo de uma só vez. Desviu os olhos para observar algo que atingia sorrateiramente os seus pés. Sangue, vindo do abdomêm do pobre animal.
          Jogou o seu imenso corpo para o outro lado e viu, um enorme ferimento do lado que estivera em contato com a areia, agora, tinginda de vermelho. Um sorriso irônico completou o seu rosto barbudo e aparentemente feliz.
Sabia por que estava ali? Talvez. Mas, por que um homem estaria num lugar deserto, ao lado de um animal morto, que provavelmente fora ele o assassino, inconsciente, cuspindo alcóol e sangue, se não tivesse feito uma grande merda em algum outro lugar? Deixe estar, pensou. Deixe estar...
     Fora então, que vislumbrou alguns vultos se movendo à distância. Saiam da mata, aproximando-se rapidamente de si. Não sabia se devia temê-los. À princípio não havia nada que o incriminasse. Provem a minha culpa, pensou. Mas o sangue, o cavalo... E a fome! O que dizer dessa fome que sentia! Até desejou que o alcançassem... Sentia os seus cheiros, sentia até o batimento dos seus corações... Se não fosse o mar e as suas ondas insistentes, sentiria o sangue viajando descansadamente pelas suas veias.
          Mas lá vinham eles, e impunham tochas. Ele sorriu divertido. Sentia-se tal qual na idade média, o que poderiam fazer, afinal? E finalmente o alcançaram, mas não o atacaram diretamente. Rondavam-no desconfiados, observando o pobre animal disforme. O sangue do cavalo jorrava tal qual como se desejasse culpá-lo, unindo-se ao mar num filete arroxeado que o divertia bastante.
-Vampiro! - Gritou uma das mulheres. Mas ninguém parecia muito certo sobre o que dizia ou sentia. Aquela era uma situação atípica, lúgrube certamente.
          Como estivessem convictos da sua vileza, os primeiros golpes foram desferidos. O homem caiu na areia, seu rosto parcialmente desfigurado.  Seu sangue misturou-se ao do eqüino, eram ambos vítimas da noite, do medo, da fome, do sangue... Quando estava prestes a cair no vale da inconsciência, sentiu pequenas ferroadas pelo corpo. Pareciam beijos, ou carícias... Ao virar-se para o lado, vira que eles estavam prostados ao redor do cavalo, e esforçavam-se para virá-lo e expor o seu abdomem sangrento.
          Sim, tudo lhe fazia sentigo agora. Era um homem ao lado de um cavalo, e toxas ilumivam a ambos. Quando termiram, as pessoas afastaram-se, deixando-o a sua própria sorte. A morte parecia revolver-se com as ondas, sem contudo alcançá-lo. Então, como sentisse ainda muita fome, esforçou-se para levantar-se e cair em cima do cavalo, alimentando-se do resto de sangue deixado pelos vampiros que há algumas horas atrás o haviam condenado.


                                    
A Travesti Endemoniada

                                 
F W
Enviado por F W em 29/09/2011
Reeditado em 03/10/2011
Código do texto: T3248004
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