O Conto do Inventor

Por Ramon Bacelar

- ...e viveram felizes para sempre.

- Conta outra vovô!

-Huummm...Acho que...

-Que tal amanhã garotinho? Sua caminha está impaciente e o Homem de Areia...

A voz límpida e melodiosa da nova criada inundou a sala com a suavidade de uma corredeira de água clara, no mesmo instante que o “relógio do vovô”, com seu corpo de carvalho selecionado e pêndulo de prata, soava meia noite.

À frente das cadeiras as brasas da lareira agonizavam, manchando a escuridão com os últimos resquícios de claridade, tímidas mas suficientemente intensas para delinear a beleza etérea, quase irreal, da criada: cabelos loiros partidos que jorravam pelo torso bem delineado e tocavam a pele marmórea, o nariz fino e os lábios carnudos que pareciam esculpidos do mais fino e raro rubi.

-Mais uma vovô, só mais uma...Juro!

O velho olhou para o neto com um misto de piedade e compaixão, enquanto a criada arrumava em um velho baú quinquilharias a serem armazenadas no sótão.

-Está bem, mas só se me prometer que a partir de amanhã vai dormir na primeira chamada...Não é mesmo Virginie?

O tímido sorriso de satisfação desenhado nos lábios da criada retornou ao velho como a confirmação de uma imediata sintonia e identificação: uma sólida harmonia secreta composta de amor, carinho e dedicação.

-Juro!...Mas eu quero uma daquelas!!!!!

-Daquelas?- O tom era mais de curiosidade.

-Aquelas vovô...que dão meedo...de terroooorrr!!!

As palavras inocentes do neto invadiram o velho como um anestésico de efeito instantâneo, um pêndulo hipnótico que petrificou suas retinas e possuiu seus sentidos.

Resgatado do devaneio por uma fagulha da lareira, começou:

-Era uma vez...

O neto, de olhos esbugalhados e ouvidos abertos, observou:

-Outro conto de fada?

O velho, pensativo e aparentemente intrigado pela pergunta:

-Não...não, acho que é um...acho que é um conto de fadas real, de mentirinha mas... “real”. Vou começar de outra forma.

-Não entendi porque é de “verdade verdadeira” e de mentirinha ...Hummm...vai, conta logo!!!

“Há muitos anos atrás nesta região, talvez há mais de meio século, nas proximidades do Rio dos Segredos, não muito distante da Igreja dos Penitentes, viveu um excêntrico e curioso inventor de origem desconhecida, conhecido não somente por seu bom humor e natureza, mas também pelas suas invenções e travessuras.

De seus pais e parentes nada sabiam, mas tão logo se instalou, despertou a simpatia, comoção e uma peculiar irritação com um invento curioso. Na praça principal foi erguida uma imensa estrutura retangular em madeira e latão, batizada como O Lúdico Labirinto Sem Centro. Na noite da véspera de natal, espantados e curiosos com o invento, os moradores abandonaram as obrigações e preparativos para a data santa e como crianças ansiosas à espera de um circo, entraram no labirinto quase ao mesmo tempo. O inventor, escorado em uma macieira de braços cruzados, não se conteve e soltou uma estrondosa e pouco respeitosa gargalhada quando vislumbrou a saída dos curiosos moradores por onde tinham entrado: bocas abertas, testas suadas, mãos trêmulas, olhos esbugalhados; ninguém do lado de fora soube explicar nem arrancar uma palavra dos curiosos e do inventor sobre a aventura, mas para o bom observador, incluindo um padre que não parava de rezar e fazer o nome do pai, não era difícil perceber nas faces um curioso maravilhamento e irritabilidade: da misteriosa aventura lúdica que tanto os encantou nada se concluiu, porém da irritação...Não está com sono netinho? Bom... Então vou continuar.

Mal a gargalhada ecoou e os curiosos cercaram o inventor com caras de poucos amigos (mas não sem uma pontinha de encanto) e o pressionou com perguntas sobre o estranho invento e a aventura, mas dele nada conseguiram além de mais chacotas e gozações, chacotas estas que aumentaram quando perguntaram, profundamente irritados, como ele pôde ser tão irresponsável e desumano, a ponto de tê-los deixado vagando no labirinto por vários dias sem água, comida e como se não bastasse na véspera do natal, privando várias crianças pobres dos doces e presentes. O inventor, murmurando uma canção natalina com um sorriso maroto nos lábios, aponta o dedo para o relógio da praça e lhes explica que a loooonga aventura não tinha durado mais de dez minutos; sem saber como nem porque, trocando olhares abobalhados de bocas abertas, encaram o inventor e explodem em gritos e gargalhadas de surpresa e felicidade.

A essa travessura seguiram-se muitas outras e quanto mais nosso inventor conquistava a simpatia e admiração dos moradores, seus inventos se tornavam mais excêntricos, engenhosos e enigmáticos: do Olho Que Nada Vê pouco, ou nada se sabia, mas a julgar pelas lágrimas e expressões dos moradores podia-se concluir do sucesso da demonstração, enquanto que O Abismo Trêmulo das Formas Orgânicas e O Triste Lamento da Cruz Fragmentada provocaram arrepios, rigidez cadavérica, calorosos debates e até manchetes nos jornais das capitais; isso sem mencionar as explosões de sonoras gargalhadas e contorções estomacais geradas pelo peculiar Meditações Sardônicas de uma Dentadura sem Boca e o engenhoso O Berro Estapafúrdio do Silêncio Absoluto; mas quando nos últimos estágios da construção do Reciclador de Lágrimas e nas demonstrações finais do, digamos, contraditório, Desajustador Irracional de Paradoxos Lógicos e o polêmico A Junção Des...”

O velho, notando um olhar distante e aparentemente desinteressado na face do neto, interrompe a narrativa:

-Não está gostando querido? Acho que não está entendendo muito hein?

-O pobrezinho deve estar morrendo de sono.-Observa Virginie enquanto tira poeira do baú- Sua caminha está impaciente e o Homem de...

-Não, não estou com sono...Estou gostando mas...

-Sim, está complicada para você; amanhã eu conto outra, agora levante e vamos para a cam...

-Não, não vovô! Mas é que...

-Sim?-Interrompe o velho impaciente.

-Cadê... o meedooo? O terrooorrr?

Virginie, absorta na limpeza, não atenta ao fato da súbita palidez comatosa que finca garras na face do velho após ouvir mais uma vez as palavras do neto: gotas de suor desbravando sulcos e rugas na testa e bochecha, fundindo-se a lágrimas e filetes de saliva pegajosa escorrendo da língua de uma caricatura de boca espasmódica, como um autômato epiléptico.

Vovô? Acorda vovô.

O Silêncio do Silêncio.

-Vovô!!!!

-S-sim...ahhhh sim.

Aparentemente recobrado do sonho desperto continuou:

“Bom... do final da demonstração da Junção Desencontrada seguiu-se um longo período de reclusão. Nas casas, tabernas, escola e até, comenta-se, no confessionário da igreja o assunto não era outro senão o estranho e inexplicável afastamento do inventor do convívio social: estaria ele adoentado ou simplesmente viajando? Teria, como das outras vezes, se afastado para reconstruir, após a fracassada demonstração inicial, o promissor Orquidário Flamejante ou aperfeiçoando, com novas bases e rebites, o intrigante Planetário Perpendicular? O mais provável era que estivesse tentando adensar a superfície do Sonho Fugaz da Miragem Eterna com o intuito de lhe conceder alguma utilidade prática sem sacrificar a harmonia das formas, e o delicado equilíbrio do fluxo contínuo das metamorfoses, transmutações e ilusões temporárias, tarefa que consumiria paciência, dedicação e tempo, muito tempo.”

-Vovô o que é fugaz? Fluxo? Matemurf..mm...me....m-e-t-a-m-o-r-f-o-s-e, a professora me falou...

-Hummm...estou me exaltando com as palavras.-“Exagerei no artifício” pensou-Desculpe querido, vou tentar simplificar e encurtar.

“Passados seis meses, após tentativas frustradas de localização, os moradores acostumaram-se à ideia que o inventor tinha sumido da mesma maneira que surgiu: como mero vapor puufffff...Mas em uma tarde de domingo, no fundo do primeiro andar de sua casa que dava para o Rio dos Segredos, um berro exaltado porém bastante familiar se fez ser ouvido pelas crianças e lavadeiras que esfregavam suas roupas na beirada do rio: nosso inventor não apenas estava vivo, firme e forte, como, a julgar pelo grito tão familiar, tinha finalizado mais uma invenção. A notícia logo se espalhou pelos quatro cantos e de súbito uma aglomeração de curiosos se fez presente ao redor de sua casa e em meio a gritos e perguntas, eis que da janela do seu laboratório no primeiro andar, despenca nas cabeças dos curiosos uma saraivada de berros e estridências de êxtase e satisfação no mesmo instante que o inventor, escorado no parapeito de braços estendidos berra aos quatro ventos: Enfim, enfim!, Eureka! Eureka!!!!!

A esses acontecimentos a cidade foi acometida por uma verdadeira epidemia de curiosidade e cochichos de pé de ouvido mas, tendo o inventor se isolado por completo, nada concluíram.

Coube a uma infeliz lavadeira, zombada pelas crianças e desprezada pelos rapazes pela sua extrema feiúra, a tarefa de bisbilhotar o laboratório quando de sua saída rumo à capital, comenta-se, para compra de rebites e fixadores para o novo invento em estágio de testes e aperfeiçoamento. Qual não foi a surpresa das amigas ao notarem quando de sua saída do laboratório, embriagada que estava em pulos e giros saltitantes como uma bailarina em êxtase, uma expressão de intensa satisfação e felicidade como nunca se viu na coitada. Encantadas e curiosas quanto ao comportamento da amiga, as colegas, assim como ela distantes da beleza e formosura, na saída do laboratório corriam, pulavam, sorriam e em um gesto de profunda comoção, ajoelharam-se em agradecimento por alguma misteriosa benção alcançada conhecida apenas pelo coração.

Tão logo as fofocas e bochichos alcançaram a praça principal, a casa do inventor, agora de portas e janelas escancaradas entregue a toda sorte de curiosidade e escrutínio, se viu invadida não apenas pelas mesmas lavadeiras mas também pelas mais bonitas e formosas damas da alta sociedade vindas da capital, inflamadas que estavam pela curiosidade e possibilidades do estranho invento. Porém...”

-Posso colocar estas enciclopédias em outro baú?-Interrompe a criada.

-Hã...sim, sim, desculpe, estava absorto na narrativa.

-É que são grandes e pode ficar pesado para carregá-lo até o sótão, além do...

-Sótão!!!!!!

A palavra escapou do velho com a fúria e a violência de uma represa arrebentada: boca petrificada, língua paralítica, lágrimas, saliva pegajosa: olhos nos olhos como manequins hipnotizados: uma harmonia secreta composta de hesitação, dúvida e medo: a paz que não era paz.

-D-desculpe... Se o senhor quiser as coloco no mesmo baú.

Silêncio.

-Está doente vovô?

Vazio.

-Vovô? Vovô!!!

Como um enfermo retornando de um coma induzido, levantou o pescoço e olhou para Virginie:

-Desculpe, me exaltei.

-Se o senhor quiser...

-Pode levar o baú. Onde eu estava querido?

“Sim...Com as damas da capital...da capital...da cap... da, da, da... Tsss, Tsss, Tsss, não, não, não... do modo como aconteceu...tão repentino, foi tudo tão estranho, tão, tão, tão ...

-Vovô??!!! Você está tão esquisito...

-Estava pensando alto AHAHAHAHAHA!!!!!, Sou uma aranha atrofiada, uma cobra atrofiada da língua paralítica, de saliva venenosa pegajosaatrofiada, atrofiada... Uma cobra contorcendo como as damas da cidade, como as damas contorcencomoasdamasdacidade, contorcendo, contorcen OOOPPAAA!!!, me ajuda a levantar, se não fosse a grade da lareira UHUHUHUHUHAAAHAHAHAHAHAH!!!!!

-Tão, tão esquis... Estou com medo vovô!! Pára! Pára!!! Páraaa!!!!

Silêncio.

Encostou a testa nos joelhos com os punhos cerrados nas têmporas, cerrou os lábios trêmulos , transpirou, levantou o pescoço.

Suspirou:

“D-desculpe querido, vovô é tão...Está tão cansado...tão velho. Hummmm ...deixa ver, sim!!!...Porém, com a visita de uma formosa da capital à casa do nosso inventor, seguiu-se um fato curioso e muito, muito estranho: quando de sua saída do laboratório, as amigas do lado de fora, até então sorridentes e matraqueiras como papagaios, caíram num repentino silêncio ao verem a amiga tremendo dos pés à cabeça com o punho na boca suando em bicas. Dela nada tiraram além de rouquidões ásperas e grunhidos reprimidos; mal acalmaram a coitada e eis que do laboratório surge outra dama pulando de lado de olhos virados e pescoço inclinado como um tronco atrofiado, enquanto outra, de língua contorcida no chão como uma cobra, andava de quatro como uma aranha embriagada, emitindo sons trêmulos afogados em saliva pegajosa”

-Uiiiiii que medo vovô!!!

“As lavadeiras, ainda que dominadas pelo espanto e curiosidade, observavam a cena não sem uma pontinha de regozijo e satisfação vingativa ao verem moças tão bonitas, ricas e formosas reduzidas a tamanho estado de ridicularidade e perturbação patética, damas estas que, com surpresa e assombro, observavam as lavadeiras embriagando-se em estados de profunda satisfação e felicidade, condição que segundo elas, lhes era de direito.

Nove meses passados, e dos boatos iniciais da ida à capital, começou-se a ventar a possibilidade de uma longa viagem a Europa para compra de matérias primas para seus inventos, até a idéia de sua morte.

A esta altura nossa cidade tinha se tornado um verdadeiro circo de mistério, exaltação e excentricidade: por todos os lados, em qualquer dia, hora e local, em todas as camadas sociais a estranha, digamos, epidemia comportamental, se fazia presente: belas, ricas ou pobres, desfaziam-se em lágrimas de dor e desespero como se acometidas por alguma estranha moléstia do espírito que lhes sugava a energia física, mental e emocional; as outras, de mendigas, lavadeiras, poetisas, às pobres gêmeas siamesas do comendador, afogavam-se em estados de êxtase, exaltação e profunda felicidade.

Tamanha a agitação e paradoxo de comportamento, que chegou a ser erguido na praça, não sem o protesto da oposição, um monumento que ficou conhecido como Ode ao Invento do Êxtase e Felicidade Perpétua, em resposta a uma série de livros e panfletos clandestinos intitulados A Metafísica da Infelicidade, Decadência e Melancolia: guia prático, cujo conteúdo... huummm... Lá vou eu de novo com meus exageros de invenção e artifício.... intrusões autorais, arroubos poéticos...Desculpe, estava pensando alto!! Lá vou eu de novo complicando o descomplicado amor... Vou tentar simplificar querido.

...e qual não foi o espanto no momento em que o filho de uma lavadeira, encontra uma dama boiando na beira do rio, inchada como um balão roxo; outra, um pêndulo humano, pendurada no tronco de uma mangueira com uma corda no pescoço. A mais bela das belas, com os pulsos cortados no confessionário da igreja, enquanto que a irmã, igualmente formosa e não menos bonita, sob os olhares alegres e curiosos das excluídas, se joga de cabeça do campanário da igre...não, não netinho... Vou te poupar destes detalhes.”

-Mas vovô, até que tive um medinho na parte “verdade verdadeira” quando você...você começou a ficar esquis...Deixa pra lá...o resto foi de mentirinha hihihi.

Vazio.

- Se estiver com frio eu pego um cobertor, mas vai... Suspende a cabeça, enxuga os olhos e termina logo, tô curioso!

Silêncio.

“Em meio ao caos, eis que surge na praça principal da mesma maneira como sumiu, nosso inventor montado em uma carroça atulhada de malas e caixotes, mas ao perguntar ao comendador o motivo de tamanho...”

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHH!!!!!!!

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!

AAAAAAAAAAAAAAAAAAAHHHHHHHHHHHH!!!!!!!!!!!!!!

O grito da criada despencou das escadas com a força e intensidade de uma tempestade de verão.

-Nãoooooo!!!!! Eu sabia!!!!!! A culpa...

Em uma explosão de desespero premonitório, o velho voa escada acima com o neto:

-A culpa é minha, minha!, Não, não!, Não tive culpa!! Eu, eu, eeuuu, NÃO!!!

Estendida abaixo da janela do sótão, uma forma de traços delicados soltava um último suspiro, antes de murchar como uma bexiga flácida de palidez cadavérica.

-Virginie!! Meu deus, meu deus!!!, Não tive culpa!!! Os curiosos, os bisbilhoteiros...não estava aperfeiçoado!!!-Tremia como um demônio eletrocutado, com o dedo apontado para um objeto escorado no parapeito da janela do sótão. - Est..este propagador de ilusões... Pai da Mentira... delínguaatrofiadadesalivapegajosa AHAHAHAHAHAHAHAH!!!...As damas da cidade...culpa, culpa, não, não... Esta... bestialidade de superfície corrompida não estava pronta... Eu, fui eu.. Eu criei est... Este ESPELHO CEGO!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

VOVÔ NÃAOOOOO!!!!!!!

Em um ato final de culpa e desespero, o Criador jogou-se da janela, e com o peito trespassado por reflexivas lâminas afiadas, foi mutilado da existência pela própria criação.

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 17/09/2011
Código do texto: T3224655
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