A Intermediária do Mal
Lembrai-vos, meus amigos, de nunca menosprezar a
força do mal e nem da remissão do bem! (Do autor)
força do mal e nem da remissão do bem! (Do autor)
Era um tempo em que se acreditava que algumas pessoas tinham o poder de chamar os espíritos, de negociar com eles e de exigir que fizessem coisas pelos outros como ditar os números da loteria ou trazer um amor de volta – e olha que ainda dizem haver gente que faz isso. Esses ¨intermediários¨ cobravam, é claro, pelos serviços prestados e ficavam, muitas vezes, tremendamente ricos com essas práticas. Dona Alzira era uma delas. Juntamente com os dois filhos, montou tenda e ganhou destaque.
Sua fama cresceu assustadoramente, vindo de empresários a políticos buscar seus conselhos e a interferência do oculto para a realização dos seus propósitos, que não eram poucos. Dona Alzira em breve passou de um casebre na periferia para mansão em avenida nobre de altas palmeiras imperiais.
Ganhou respeito, mas nunca pôde circular nos círculos da classe alta. Tinha poder e dinheiro, porém, embora muitos dos poderosos a consultassem, escondiam isso de público, pois não cairia bem nos seus notáveis currículos. Dona Alzira fazia e desfazia, ao fim de cada reza, se é que se pode chamar assim, sempre rogava: ¨Se Aquele do bem não cumprir, apelo ao outro para que o faça!¨. Certo é que diziam que sempre funcionava com aquela mania dela de acender uma vela a Deus e outra para a oposição.
Um dia acordou sobressaltada à noite. No quarto escuro, divisou a silhueta de uma grotesca figura à sua frente. Trêmula, pegou dos óculos e acendeu o abajur. Diante dela estava uma horrenda forma peluda ruiva. Olhos enormes e amarelos, chifres colossais e com uma voz cavernosa disse-lhe:
- Vim cobrar minha parte dos trabalhos.
Pálida e com o coração quase à boca, restou-lhe como saída lançar-se aos pés da criatura e rogar pelo seu perdão:
- Por favor, não me leve agora. Deixe-me viver um pouco mais... Agora que a vida está tão boa...
A criatura concordou, mas com a condição de que a frase final fosse mudada:
- Vai rogar somente para mim, ou te torturarei todos os dias. – E sumiu no ar deixando para trás um odor de podridão.
Dona Alzira, tentando ludibriar as trevas, começou a rezar com força para um Deus que traíra deliberadamente. Mal começara e chicotes invisíveis soaram no ar fazendo com que seu corpo quedasse em sangue. Passou a clamar somente pelo outro ao final de cada solicitação. Com o tempo, ainda tentava tornar a rezar para o lado bom, mas nisso os chicotes tornavam a macerá-la.
Ficou ainda mais rica e poderosa, mas veio o peso da idade e terminou louca em um hospício. Ninguém sabia explicar as estranhas marcas de surra que atazanam a velhinha toda a noite, embora sempre afirmasse:
- Arrependi-me, sei que vou morrer, mas se tiver algum jeito de escapar do inferno vou tentar enquanto viver...