A Vingança Rubra

A noite parecia engolir tudo ao seu redor, como os braços de um demônio negro a envolvendo. As árvores retorcidas, tão negras e temidas, curvadas ao chão, resignadas em sua solidão. Quando a primeira gota gelada da chuva lhe caiu entre os olhos, ela despertou. Sentiu o torpor de um corpo machucado, diversos arranhões e vergões se espalhavam como rosas putrefatas em sua pele clara. Suas vestes foram arrancadas com violência, e a capa vermelha tecida pela sua avó, fora completamente destruída, reduzida a meros farrapos desfiados. Tudo parecia nebuloso, sua mente começava a organizar os pensamentos, que gritavam desordenados entre si, imagens desconexas apareciam em um rompante, embrulhando o seu estômago. Quando vomitou apenas água, notou que estava com fome. Arrastou-se por alguns quilômetros, sentindo que alguns ossos poderiam estar fraturados, limpou o sangue em um riacho de águas turvas, na tentativa de espantar animais atraídos pelo cheiro adocicado do seu sangue. Cobrindo as partes de seu corpo ela caminhou, sem saber ao certo por onde seguir, desejando que alguma alma a encontra-se por sorte. Por fim, avistou um pequeno casebre, escondido por entre a vegetação, pelas janelas uma fraca luz de velas bruxuleava. Bateu na porta de madeira velha, donde uma velha senhora curvada lhe atendeu, a olhou com surpresa, com seus grandes olhos cansados.

- Pobre menina, o que ouve com você? – perguntou a velhinha consternada ao ver a menina seminua.

Mas antes de formular qualquer resposta, murmurou algo incompreensível e viu-se despencar ao chão, absorvida pelo cansaço. E novamente caiu em um sono, sem sonhos...

Despertou com o cheiro de comida que fumegava em um caldeirão, a velhinha entretida com os seus afazeres, mexia metodicamente o conteúdo do mesmo, cantarolando uma canção que ela desconhecia. Ela se virou, notando o despertar de menina, com uma concha de madeira serviu a sopa em um prato fundo, entregando-a jovem.

- Que bom que despertou, menina. – a velha tentava parecer simpática, sorrindo com seus grandes dentes amarelos e incompletos – tome isso deve lhe dar força, e minha sopa especial. Vamos coma...

Ela não se recordava das últimas horas de agonia ou do que havia comido anteriormente, mas sentia um buraco fundo no estômago. Comeu com avidez, sugando até o caldo que sobrara no fundo da tigela.

- Posso saber o seu nome? – arriscou-se a perguntar a velhinha curiosa.

- Acho... Que é Agatha... – levou às mãos as temporãs, forçando-se a lembrar de algo – obrigado senhora bondosa, por me acolher a sua humilde casa.

- Ah, não a de que. – limpou as mãos de dedos finos e ossudos em um avental engordurado - Poucas pessoas aparecem por essas bandas, é sempre bom ter visitas, sabe...

Agatha movimentou-se na cama, gemendo ainda de dor. A velha a impediu.

- Não se mexa, esta muito ferida. Tomei a liberdade de colocar ataduras em seus ferimentos, e acho que ainda esta com uma costela quebrada... Mas, Posso saber o que houve com você? – perguntou novamente de forma cautelosa.

- Não me lembro. Não me lembro de nada, senhora... – em um rompante de memória, surge a figura fantasmagórica, com grandes olhos cor de ébano que a absorviam para o fundo de suas pupilas negras.

- Ah, em algum momento as memórias retornam, são como parentes distantes dos quais não gostamos que nos venham visitar, sempre em horas inoportunas – as palavras da velha não pareciam fazer muito sentido para Agatha, que apenas a observava – bem, deixe-me voltar para os meus afazeres...

Enquanto a senhora retornava a suas atividades diárias, Agatha permaneceu em repouso, permitindo que seu corpo se curasse imediatamente. Por dias a mulher se ocupava com a sua presença, mas ainda lhe parecia solitária demais, com aquele olhar entristecido e perdido em memórias de outrora. Então, compadecida da solidão de senhora, disposta a ouvir todas as suas histórias, das quais ela contava com alegria.

- Tenho um filho, bem mais velho que você. Sinac sempre teve a alma livre, um viajante desbravador e um hábil caçador. Sabia que uma vez ele matou três lobos selvagens de uma única vez, usa um manto feito do pelo destas bestas até hoje... – as palavras lobo, despertaram algo em sua memória, incompreensível, mas que lhe trouxe um medo que se arrastava do fundo de sua alma, em busca da superfície.

- O que foi parece estar com medo, não disse nada de mais...

- Não é nada, apenas uma sensação estranha, nada mais. Por favor, continue...

E assim a noite derramou-se em estrelas diamantes ao redor da lua cheia. A cada noite, uma sopa ainda mais saborosa lhe era servida, onde o paladar explodia ao experimentar a gama de sabores surpreendentes, e a sua força já havia sido completamente restabelecida. O inverno chegou, forrando a grama com um manto branco, tingindo a paisagem com flocos de gelo. Em uma noite, quando os ventos tornaram-se mais amenos, a senhora saiu para caçar, levando o machado nos ombros, andando lentamente, penetrando entre as árvores da floresta. Agatha observou o caldeirão fumegante, o cheiro adocicado lhe atiçou o paladar, fazendo-a salivar. Mexeu com uma pequena colher, o conteúdo do interior que borbulhava. O caldo pardo revelou o ingrediente secreto, quando um globo ocular murcho boiou em sua superfície, e a seguir um dedo humano sem a unha em sua base, levou as mãos nos lábios impedindo que o vômito saísse entre eles. Mas os ventos do norte sussurravam ao vento gélido, trazendo consigo a chuva, a porta abriu-se em um rompante e a figura de velha estava diante dela, segurando um saco sangrento nas costas.

- Vejo que descobriu meu ingrediente secreto... - Aquela expressão de bondade, desaparecera por completo – quantos mais novos, mais saborosos...

- Não se aproxime de mim, sua assassina! – afastou-se, pegando um dos facões próximos a mesa.

- Você não reclamou do sabor, saboreou cada um deles, até lambeu os dedos, o que há de errado nisso... – a velha caminhou lentamente, abandonando o saco indolentemente ao chão, deixando que uma pequena mão caísse entre a sua abertura.

Puxou o conteúdo, uma criança pequenina, com os lábios arroxeados e um fio preso ao pescoço. A colocou sobre a mesa, sem se importar com o olhar de horror de Aghata.

- Esse foi difícil de pegar, ficou se debatendo por muito tempo... – disse enquanto retirava as roupas da criança, jogando-as ao fogo.

O medo, o temível medo, que nos faz tão covardes quanto heróis, fez com que Agatha se lança-se sobre a velha, impedindo que ela iniciasse seu ritual, ao estripar a pobre criança. Súbito, quando deu por si, a faca estava enterrada sem seu peito, a velha ainda guinchou, expurgou um sangue enegrecido pelos lábios, debatendo-se, lutando contra a morte. Agatha ergueu as mãos, e observou o sangue que escorria entre elas, brilhante entre os seus dedos magros. Tomada por uma sensação prazerosa, lambeu o sangue que vertia delas, absorvendo o sabor adocicado da assassina de crianças.

Abruptamente, ouviu som de passos ao redor do casebre. Retirou a faca da ferida aberta da velha assassina, e partiu, enfrentando a neve que caia. Mergulhou entre as árvores, pedindo aos deuses que a ocultassem, daquilo que a perseguia, podia sentir os olhos dele nela, e o hálito quente em seus ouvidos, como um lobo a perseguir uma corça indefesa.

Parou em uma clareira, perdida, abandonada, a espera daquilo que a perseguia. E logo ele surgiu, emergindo das sombras, na pele de um lobo. Os olhos dele eram como ouro derretido, em um matiz de cor incomum. Usava um capuz que surgia em uma cabeça de lobo e cobria completamente o seu corpo, um homem alto de rosto curtido, com uma cicatriz funda riscava o olho direito, terminando em seus lábios. A barba espessa e negra lhe fornecia um aspecto ainda mais selvagem. Aquela imagem despertou a memória adormecida, um demônio rompeu em seu âmago, em busca de liberdade. E tudo enfim, parecia fazer sentido, todas as imagens reunidas; a dor, a violação, as mãos dele em seu corpo, a sufocando. Agarrando-se em seus cabelos louros, mordiscando os seus lábios, e no final, antes da inconsciência, o sorriso nos lábios dele, e o golpe final. Tudo lhe fora roubado, a inocência, a sua pureza, a sua liberdade, e o medo fora enterrado em sua alma. E assim tudo se conectou...

- Ora, ora o que temos aqui, a assassina de minha mãe – observou a faca sangrenta nas mãos da menina.

- Desgraçado... – ela murmurou, repetindo essas palavras freneticamente, alimentando-se do ódio que lhe dava força.

- Já deve saber quem eu sou, menina...- ele sorriu de forma debochada, divertindo-se com a raiva nos olhos da menina - sou o lobo mal, e você irá morrer!

Ele avançou sobre ela, correndo em sua direção, com as mãos em forma de garras prontas para rasgar a sua pele. Ela esperou até que seu ódio explodisse em si, e quando o lobo se aproximou perigosamente dela, fincou a faca abaixo dos seus braços, bem onde o seu pai lhe havia ensinado, um jeito rápido de matar porcos. Quando retirou a faca, ele tombou levando as mãos ao ferimento, de onde o sangue era violentamente expurgando. Observou o homem, que se dizia lobo, agonizar, com um olhar frio e cauteloso, e com um único golpe de misericórdia, direto em seu coração, ela o matou. O sangue vivo cobriu a neve como um manto rubro, deixando a neve cair em seu rosto, respirando os bons ares de sua vingança. E foi assim, que Agatha Rosso, obteve a sua vingança.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 14/09/2011
Reeditado em 14/09/2011
Código do texto: T3219968
Copyright © 2011. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.