Meu Filho Maldito
Aqueles eram de certo os olhos mais belos que já vira. Embalava-o em seu colo, sentindo o seu perfume natural expandir-se pelo ambiente. Douglas estava deitado ao seu lado, dormia, sorrindo incoscientemente. "Nosso primeiro filho, sinto-me realizada".Sorriu também e sussurrando, cantou-lhe uma cantiga de ninar.
Como era de se supor, passaram-se os anos. Aquele primeiro momento, entretanto, repousava tranqüilamente em sua mente. Agora, seis anos depois, assistia-o correr pelo gramado e novamente, era-lhe impossivel conter um sorriso. Observava-o orgulhosa, os braçinhos pequenos, os cabelos castanhos esvoaçantes, herdara do pai o cabelo, mas os olhos, eram iguais aos da mãe!
Há cinco anos que largara o emprego. Tudo começara com um mal-estar, não sabia ainda a causa. Tudo era efeito, as causas encontravam-se submerssas. O tempo passou, e não sabia afinal o que lhe atormentava? O que a fizera estancar, paralisada? "Não, não pense nisso". Esforçava-se em se concentrar no jogo, afinal, seu filho era o seu maior presente, tudo não passava de besteiras, paranóias mentais. Sua mãe fora assim também...
De repente, fechou os olhos, baixou a cabeça, sentia-se confusa, sua pressão baixara rapidamente, seu coração se comprimira.
-Mãe! - Gritou Lucas ao passar em frente à pequena arquibancada da escola local.
Não o vira a tempo. Esqueceu-se de sorrir. Aquele pensamento era-lhe por demais forte, uma imagem tenebrosa lhe povoava a mente. "Meu anjinho". Um arrepio lhe perpassava agora o corpo. Ele percebera. Ele sabia. Esforçou-se por mudar a sua expressão. É só uma criança. Um anjo.
No carro, no caminho para casa, esforçou-se por compensar a sua distração de outrora. Sorria-lhe afálvamente e demonstrava-se muito interessada no que Lucas tinha a dizer. "É meu filho, não posso temê-lo, é o meu anjinho, ainda hoje lembro-me do seu cheiro, do seu sorriso, dos seus olhos quando ainda era bebê." Sorriu incoscientemente, tamborilando ansiosamente os dedos no volante. Estava irritada, nervosa. Tinha medo. Não podia fugir. Estava encurralada. Meu anjinho.
Ao chegar em casa, observou-o sair do carro e correr, abrindo a porta com um empurrão. "Papai?" Ouviu-o ainda a gritar. Estava gelada, seus pés não se moviam. Não queria entrar ali novamente, não depois de tudo o que passara na noite anterior. Mas afinal, ponderava agora, sempre soubera, sempre! O olhar, o modo como as mãos se moviam. Um anjinho? Jamais acreditara nisso, jamais! E agora...
-Papai! - Continuou ele a gritar. Resolveu-se por fim a entrar. Observou ao redor, a rua estava vazia, uma tempestade aproximava-se. Estava sozinha. Sozinha. Meu anjo. Meu anjo dos olhos mais belos.
O ar na casa estava abafado, sentiu seu corpo estremecer. Sua boca estava seca. Suava. Aproximou-se da sala. Estava vazia. "Douglas?", clamava mentalmente. Esforçava-se por manter-se calma. O céu tornava-se nublado, o dia escurecia. "Um anjo... Mas eu sempre soube, sempre... Douglas?!".
Seus passos eram passos de quem teme. Ouvia a cortina da cozinha balançar-se, era o vento, era o medo, era... Aproximou-se. O dia tornava-se mais escuro. Aproximou-se. "Meu anjo". Ali, fora ali que tudo acontecera. E era só o começo. Primeiro haviam sido os seus pais, depois Douglas e... Sentiu uma forte contração no estomâgo, apoiou-se na parede. "Não suportarei mais. Não posso mais. Não posso".
Lá estava, a cabeça apoiada na mesa, os olhos esbugalhados... Soluçou assustada. Meus Deus! Por quê? A pele agora tornava-se viscosa. O cheiro era intragável. E como podia sentar ao seu lado, como se nada tivesse se passado? Sim, lera sobre psicopatas, mas... Não!, era demasiado doloroso imaginar que não sentisse remorso. "Meu anjo". Ainda lembrava dos seus olhos... Como pudera? Faria o mesmo com sua mãe?
Estava sorrindo. Sim, sorria muito desde que tudo acontecera. Antes, era uma criança taciturna, apática. Oh, como doía-lhe lembrar-se dos bons momentos, como doía-lhe pensar que tudo havia se esvaido, tal qual o sol que mais cedo brilhara no céu. Quis gritar, quis reivindicar-lhe a santidade, os sentimentos angeliciais. Sim, era capaz disso! Havia dado-lhe a vida, poderia dar-lhe novamente. Tirar-lhe a condenação que lhe marcava a alma. "Por Deus, meu filho, não sorria! Pelo menos não sorria, eu lhe imploro".
Estava sem forças. Era o fim. Já não podia mais lutar contra a verdade. Ali estava, seus dois amados. No armário do porão, jaziam seus pais. Era só o início. E tudo começara com um sorriso, um olhar... O mais belo olhar que ela alguma vez já vira e então...
-Mamãe, por que você... - Sim, era o fim! Fizera! Já não suportaria mais. Santificara seu amado, seu anjo! Dera-lhe brevidade em seu sofrimento, em sua maldade. "Vá, vá com os anjos, pois nessa vida, nascestes com a alma trocada".
Uma lágrima caiu-lhe da face, deslizou pelo seu rosto e foi parar junto à poça de sangue recém-criada. Chorava. Sofria. Pagaria pelo seu ato. Mas nada poderia ser mais doloroso do que aquilo pelo que passara. Era só o início, mas havia acabado por agora.
Ele não percebera, era só nisso que pensava agora. Sentada no chão, sobre o líquido que lhe alcançava timídamente, pensava que ele nada havia visto. A faca, a aproximação. O fim. Mas arrependia-se, arrependia-se de não lhe ter feito aquele último favor... De responder-lhe. "Mamãe, por que você matou o papai e a vovó?"