A espera (em apoio aos direitos de greve e de morrer)
Seu José esperava, com ansiedade, a hora de ser enterrado. Se não era bom de esperar vivo, morto é que não seria. Sentindo “craustrofobia”, que nem a patroa, sentou-se na beira da gaveta e ficou olhando o que tinha em volta: numa mesa em frente um gordão com os bofes pra fora; na outra mesa da esquerda, uma velhinha que era puro osso; com a cabeça pra fora de uma gaveta, um pouco acima, um menino meio arroxeado, com cara de fuinha, espiava o que ele fazia; numa outra gaveta perto da parede, uma moça, nem tão moça assim, sentada na beira da sua gaveta, olhava para ele, de pernas cruzadas e toda despenteada; e lá perto da porta um sujeito magrelo, com os pés em cima da mesa, dormia fazendo barulho de trator.
Um espasmo muscular, que nunca vi em morto, nem em vivo, sacudiu Seu José de um jeito que o coitado despencou da gaveta e foi cambaleando, apoiando-se onde conseguia. Estava meio duro das pernas, e não conseguiu equilibrar-se, mesmo depois de ter fechado com a testa a gaveta do garoto e ter passado, sem querer, as mãos frias nas coxas frias da moça nem tão moça assim. Só conseguiu um pouco de equilíbrio ao bater num chapeleiro cheio de aventais brancos.
Um dos aventais acabou se vestindo em Seu José que foi cambaleando para a porta. Quase caiu, abanando os braços, daquele jeito desengonçado que só os mortos têm, e deu uma mãozada na maçaneta, abrindo a porta. Cambaleou até o elevador e em outra abanada de braços, deu uma mãozada no botão. Não estava acostumado com aquele esforço todo e repousou o corpo morto na lata fria da porta do elevador.
Nem deu tempo de descansar e porta abriu obrigando Seu José a cambalear outra vez e em mais uma mãozada sortuda ele fez o elevador chegar ao andar onde ficava a saída. Cambaleou para fora do elevador e deu um esbarrão em alguém meio apressado. Seu José foi cambaleou pelo caminho que julgou ser o da rua.
O dia estava feio, vento gelado e chuva e Seu José ouviu gente que parecia muito brava falando alguma coisa de “não poder enterrar seus mortos” e de “greve” e de “absurdo” e de “vagabundos” e sei lá mais o que. Desconfiou que alguns xingos eram para ele, mas não teve certeza. Ouviu alguma coisa sobre “não ter carro para levar os mortos para serem enterrados” e começou a ficar bravo também: então não teria carro para levá-lo ao seu enterro? Seu José achou aquilo uma falta de respeito com o seu direito de morrer e decidiu que não seria tratado daquele jeito! Não mesmo! Iria para casa!
Cambaleando, abrindo caminho entre as pessoas, acabou sendo embarcado, junto com a multidão, no primeiro ônibus que chegou ao ponto. Era um empurra, empurra que vivo nenhum merece se submeter, morto menos ainda. Na catraca acabou passando, sem querer, na vez de um estudante, porque o motorista acelerou forte na hora errada e jogou Seu José para trás. Cambaleando acabou sentando no último banco, no meio de uma discutição acalorada.
Uma mulher gorda chacoalhava o papo, esbravejando o absurdo que era aquela greve, “onde já se viu as famílias não poderem enterrar seus falecidos!” e um sujeito magrelo, curvado, de olhos grandes e nariz de papagaio, defendia os grevistas dizendo que “não é fácil trabalhar com gente morta! Se com vivo já é ruim, imagina com morto!” e a gorda chacoalhava o papo, vermelha de braveza, que “com esse assunto não se brinca! Isso é um crime e esses vagabundos têm que pagar!” e reclamou de um cheiro ruim que sentiu de repente.
Seu José, que só queria saber de chegar em casa, não estava com vontade de discutir, mas a gorda pediu a sua opinião com um cutucão. Como o ônibus pulava muito e a cabeça dele também, ela entendeu que ele concordava, mas o magrelo não se rendeu e disse que não entendia “porque não dar um bom aumento de salário para esses coitados e pronto!” e cutucou seu José que concordou com a cabeça. E a discussão foi por aí a fora entre a gorda e o magrelo e Seu José concordando com tudo e, entre eles, um cheiro de coisa podre que não sabiam de onde vinha.
No ponto final, Seu José foi desembarcado pela multidão do empurra, empurra e, no impulso, tomou a direção da estação de Metrô. A caminhada da era cada vez mais cansativa, uma perna ia e outra ficava, ou a outra ia pra lá e a uma pra cá, quase causando acidentes que não eram culpa sua, mesmo assim era xingado. Ajudado não, mas xingado sim.
Acabou passando pela catraca junto com uma senhora muito recatada que achou aquilo uma sem-vergonhice descarada e deu em Seu José muitas guarda-chuvadas, empurrando-o escada rolante abaixo. O rapaz grandalhão que ia à frente segurou-o em suas costas, falando alguma coisa que Seu José não entendeu bem, mas agradeceu a ajuda pousando a mão gelada no ombro do rapaz. É provável que foi nesse gesto que perdeu o dedo anular da mão direita ou devido às guarda-chuvadas que tomou.
Já que a multidão está acostumada com esbarrões, empurrões e esfregões para entrar e sair do trem, Seu José, mesmo morto, era só mais um coitado, sem nada especial, naquele mundo. Empurrado para dentro do trem, ficou cercado por um grupo que também discutia o assunto da greve. Achou eram da mesma família porque todos se pareciam entre si e havia crianças entre eles, também parecidas.
Uma das crianças, uma menina pálida, magrinha e com olheiras reclamou para todo mundo ouvir: “Credo! Que cheiro é esse! Seu porco! Você peidou!” e ou menino, de cara redonda que parecia uma bola, bochechas muito vermelhas que dava vontade de beliscar até sair lágrimas dos olhos, deu um empurrão na menina e gritou: “Eu não, foi você! Sua porca” Os adultos não estavam nem aí, falando sobre a greve com a distância de quem não tem e nunca terá nada com aquilo.
A que parecia ser a mãe dos pestinhas que brigavam dizia que era fácil resolver o problema e um rapaz que parecia ser seu irmão, pela cara de desafio que fazia, perguntou como e a sabida respondeu que era só as famílias colocarem seus falecidos no porta malas do carro e levar para o cemitério. Seu José mostrou sua indignação com aquela idéia dando um pisão no pé do gordinho e um tapa na orelha da magrelinha, quando o trem deu uma brecada mais forte.
Um antigo vizinho de Seu José foi preso com o cadáver da esposa no porta malas do carro. Ele bem sabia que um dia aconteceria aquilo porque o homem fazia uma cara de quem tinha um cadáver no porta malas do carro. Imagina só como seu filho ia explicar o cadáver do pai no porta malas? Se o idiota não sabia ainda explicar porque era pai... Seu José não entendia porque seu filho sempre fazia cara de culpado, mesmo quando não tinha nada com o assunto.