O Gato Corintiano (O horror da vida real)
Nota: O autor não é corintiano, muito menos palmeirense; utilizou os símbolos da cultura e mística futebolística para efeitos puramente dramáticos. Na verdade não gosta de futebol e só sabe – como ninguém - que a bola é redonda por que tem certeza absoluta que um quadrado tem quatro lados: não passa de um grande perna de pau.
Por Ramon Bacelar
“O horror... O horror”... Assim gritou o Joseph Conrad em um célebre romance... “A desgraça é variada, o infortúnio da terra multiforme”, lamentou Poe em Berenice... Se a altura da ponte não for suficiente, buscarei conforto nas profundidades dos abismos, assim pensei quando vislumbrei pela primeira vez, todo o... Não, não, desculpem-me, estou me precipitando... Começou mais ou menos assim:
No último fim de semana despertei da minha siesta no sofá da sala com o barulho surdo de três batidas na porta; ainda sonolento, achei se tratar de mais um trote dos moleques do vizinho, porém antes de fechar a porta, uma caixa de sapatos sem sapatos me sorriu do umbral com orelinhas de veludo e olhos de mistério: Um gato vira lata, tremendo de frio dos pés à cabeça, abandonado em minha porta em uma fria tarde de domingo.
Acomodei-o na almofada do sofá, mas antes de retirar o pequeno cobertor da caixa, uma visão, que agora identifico como a materialização do inferno, dominou os meus sentidos: no centro da manta branca um escudo - na verdade uma âncora cercada por uma corda cinza e uma bandeira tremulante no centro - anunciou A Chegada: O horror!! O horror!!! Eu! Palmeirense roxo que sou (na verdade um arroxeado pendendo para o puro verdão!) tão próximo do Inimigo Supremo com... com... Não, não entrarei em detalhes mórbidos, dolorosos e desnecessários; nem me perguntem como consegui, mas quando dei por mim, me vi segurando a manta com o polegar e o indicador de nariz fechado (não cheirava a fezes nem urina); de olhos cerrados, berrando o hino do verdão, descartei-a no fedorento lixão do quintal.
Chocado pelo horror do momento, corri à cozinha e tomei de um gargalo meio vidro de água de melissa diluída em chá de camomila, quando me veio a ideia de alimentar o bichinho com um pires de leite; alimento este de uma brancura tão imaculada quanto o pobre bichano. Branco: cor da paz e pureza: não sou santista viu?!
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Nada como um gesto de caridade para alimentar a alma, enriquecer o espírito e lembrar o verdão!
Enquanto o alimentava, me sentindo a irmã Dulce palmeirense, me veio à mente minhas desavenças com o vizinho e uma possível tentativa de vingança na forma da abominável manta (e que cheiro de fezes e urina ela não tinha!): Teria ele a intenção de jogar-me em uma prisão de culpa dostoyevskeana? Arremessar-me em um ciclópico e indiferente universo de temor lovecrafteano, ou me abandonar em um labirinto borgeano ao me ‘presentear’ com tão indefesa criatura envolta no mais abominável e nocivo dos símbolos? Se sim, devo lhes assegurar que não... Quero dizer, como queria que não terminasse - ou começasse - deste jeito, como desejava não ter descoberto impurezas no pescoço peludinho: branco, preto, preto-branco, preto ‘e’ branco: um gato corintiano!: Manchas negras ferindo a alvura imaculada, contaminando a inocência estupefata, manchando minha paz com borrões negros como jorros de bosta densa na alegria da libertadores de 99.
Como se não bastasse um gavião provocador na vizinhança, agora um bichano corintiano de sangue e pêlo em minha sala: E agora José? Em um acesso de ódio e fúria verde - agora um Incrível Hulk dos infernos –, arremessei-o na bandeira do verdão estendida na parede chapiscada, mas quando o vi quicando no soalho como um indefeso torvelinho de lã, um acesso de culpa me possuiu (alô Dostô, não é o Kafka não!); coloquei-o na caixa antes de cair na cama, sonolento e arrependido: A desgraça é variada, o infortúnio da terra multiforme!
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Por quanto tempo uma irritante estática pertubou meu sono, não saberia precisar, mas quando consultei o relógio vi que menos de duas horas tinham passado. Levantei-me para apagar as luzes da sala que jurava ter apagado, quando identifiquei o ruído emanando misteriosamente do meu rádio verde-branco mal sintonizado, e no centro da sala... O horror!... O maldito gato de pescoço empinado, exibindo seu orgulho preto e branco, tocando pandeiro e rebolando em duas patas ao som do hino nefasto, como um pagodeiro dos infernos: Coringão! Coringão!!
Afiei minhas garras e avancei em direção ao pescoço (não sou gavião!); tamanha foi a pressão que só enxerguei duas bolas de gude saltitantes como olhinhos assustados assombrando minhas órbitas, e esguichos de agonia comparáveis aos meus na adolescência, quando descobri manchas de água sanitária em minha camisa autografada...Mas como tudo que é ruim dura muito... O esguicho não vinha dele: acordei em gritos de agonia estrangulando meu travesseiro de penas verde-branco, como um... - me recuso a repetir!- ... faminto: “Acostuma-te com a lama que te espera!”, me lembrou Augusto dos Anjos!!
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O restante do meu sono não foi menos tumultuado, pois, como se possuído por um pegajoso miasma onírico, o maldito gato pertubou meus sonhos noite adentro. Quando não me zoava no twitter semeando boatos maldosos ou me photoshopava vestido com uma ridícula cueca pele de zebra (antes fosse verde!), lá estava ele me acordando com aquele pandeiro no pé do ouvido, de bandana na cabeça e dentes de Você Sabe Quem... O horror! ...O horror!!
Tamanho era o realismo destas pertubações que por mais de uma vez fui à sala verificar o bichano, mas para meu alívio, lá estava ele sonhando secretamente seu Sonho de Mil Gatos como uma inspirada criação Gaimaneana.
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As horas passavam, as noites viravam, semanas voavam, e lá estava eu preso em meu dilema de culpa vexatória: Como me livrar de uma criatura tão inocente e indefesa? Que culpa tinha ela em nascer do ‘outro lado’. Não seria eu a atormentá-la com meus constantes e irracionais surtos psicóticos? Não teria ela motivos de sobra para me arranhar (como me arranhou) quando tentei abrigá-la do frio com a lindona número 10? Ou me furar (ui!) quando a prendi na caixa de som com o ribombante hino do verdão no volume máximo? Não estaria coberta de razão ao fincar suas afiadas unhas em meu pulso (como doeu!) quando borrifei spray verde na densa fofura de seu pescoço malhadinho?
Sim, assumo minha culpa sem vacilos nem hesitações, mas apenas uma parcela, pois, o que me aconteceu na última noite me obrigou não apenas a reavaliar meu status de Madaleno Arrependido, mas também a enxergar – na verdade ouvir - com clareza ‘tudo aquilo que não deveria existir’.
Na calada da noite um som vago e familiar despertou-me do meu sono sem sonho, na verdade o mesmo doce e inocente miauzinho; mas um miau em cuja cadência e entonação fazia-se ouvir – para homens de fibra, sensibilidade e coragem como eu – a totalidade das angústias e desesperos palmeirenses: um terrível miau em ‘preto e branco’, semelhante ao animalesco urro de uma torcida apaixonadamente organizada!: “Se a altura da ponte não for suficiente, buscarei conforto nas profundidades dos abismos!”
Não pulei de nenhuma ponte, mas saltei da cama como se atacado por um enxame de abelhas corintianas; desesperado, vaguei por vielas escuras e sarjetas imundas; esquivei-me de ébrios filósofos e mendigos carentes berrando o hino do verdão como uma vuvuzela bêbada, mas só encontrei abrigo nos suores perfumados de prostitutas idosas e no sábio filosofar de solitários vira latas pulguentos.
Perdido e desesperado, ajoelhei-me à procura de conforto e amparo no firmamento estrelado, mas o que retornou foi um céu de fundo preto pontuado por refulgências brancas: Deus é corintiano porra!!
E agora em minha casa, confuso e fatigado, adentro o silêncio escuro do meu quarto para mais uma noite de pesadelos (reais e imaginários), porém antes que meus ouvidos absorvam a totalidade da situação, meus olhos gritam para a realidade de minha condição: o maldito gato, envolto em um edredon “daquelas cores”, aos beijos e abraços com a minha namorada! Maldito Poe!!!
FIM