Tem Mais Alguém Aqui Comigo
O Dr. Rezende era a maior autoridade brasileira no estudo da esquizofrenia. E seus estudos atualmente o levavam a crer mais e mais que a hipnose era a chave para a cura de seus pacientes.
Autorizado pelas famílias, ele tinha tido muito sucesso no tratamento de casos mais leves. Acreditava que havia chegado a hora de tentar algo com os casos mais avançados.
Jane era perfeita para seus estudos. Primeiro, porque não haveria uma família para colocar limites em suas pesquisas : Jane era o nome que a mulher ganhara dos enfermeiros da clínica. Alguém vira em um seriado americano que eles tem essa mania de batizar pacientes desconhecidos de John e Jane Doe - algo como João e Joana Ninguém - e resolvera que aquele era um bom nome para a mulher.
E ela era um caso grave. Desenvolvera múltiplas personalidades. Ninguém até ali contara quantas, mas era estranho ver como ela mudava de postura, de voz, de tudo. Não fosse o mesmo corpo, era possível dizer que realmente, se tratavam de várias pessoas.
Era uma tarde de quarta feira, um dia quente de janeiro. Amaldiçoando o pessoal da manutenção, que desde o dia anterior não descobrira a causa do defeito no ar condicionado, o Dr. Resende fechou as persianas para que a sua sala ficasse em uma leve penumbra.
Não que a paciente parecesse precisar de qualquer condição especial para entrar em estado hipnótico: seu rosto apresentava um ar meio abobalhado, seus olhos tinham uma expressão distante, que as enfermeiras do sanatório haviam aprendido a valorizar pois, quando não se apresentava daquele jeito, era quando estava dormindo ou tendo uma de suas violentas crises, onde tentava ferir a todos que pudesse alcançar.
O Dr. Resende ajustou um metrônomo para que marcasse um compasso bem lento. Aos poucos, o olhar distante de Jane foi sendo substituído por uma sonolência característica e seus olhos se fecharam.
- Jane, está me ouvindo?
- Sim.
- Muito bem, eu quero lhe fazer algumas perguntas. Tudo bem?
-Tudo bem.
Enquanto o Dr. Resende se preparava para formular sua primeira pergunta, a paciente voltou a falar:
- Quero dizer, por mim tudo bem, mas não sei se posso...
Aquilo era inédito para ele. Nunca vira alguém sob hopnose hesitar daquela forma.
- E por que não poderia?
- Eles me disseram para não falar com você.
- Quem disse?
- Bom, tem mais alguém aqui comigo.
- Quem, Jane?
A moça estremeceu e calou-se.
- Você pode confiar em mim, Jane. Quem não quer que você fale? Quem está aí com você?
Jane movimentava a cabeça em desesperada negação.
- Não, não posso! Eles dizem que não podem haver nomes...
- Quem está proibindo você de falar Jane?
Silêncio.
- Por favor, Jane. Eu só quero ajudar você a se curar.
- Você quer, mas não pode me ajudar.
- Por quê?
- Mateus, 17:21... Você não tem fé suficiente...
Aquilo foi duplamente desagradável para o Dr. Resende. Ele odiava quando os delírios de seus pacientes começava a envolver religião. Quando ele manifestava seu desagrado com o assunto, eles costumavam olhar para ele como se ele fosse o louco ali presente.
Era justamente por causa daquele tipo de situação que ele passou a manter uma Bíblia no consultório.
Apanhou a Bíblia na estante e começo a procurar pela citação. E lá estava:
"Mas a esta casta de demônios não se expulsa senão pela oração e pelo jejum."
Aquilo irritou o Dr. Resende e ele resolveu que talvez valesse a pena arriscar um pouco.
- Quero falar com quem está proibindo Jane de falar.
A resposta ao comando foi imediata. Os olhos da mulher reviraram em suas órbitas,o corpo relaxado tornou-se tenso e o rosto assumiu um ar ao mesmo tempo zombeteiro e assustador.
Mas o mais aterrador foi a voz que saiu da boca da moça. Uma voz feita de milhares de vozes que falavam juntas, mas de forma mal sincronizada, como se fossem um coral mal ensaiado.
- Tem certeza de que quer mesmo falar conosco?
Aquilo deixou o Dr. Resende fascinado. Como era possível um ser humano produzir tal efeito com a voz?
Mas a admiração teria de esperar. Ele precisava entender primeiro o que estava acontecendo.
- Quem é você?
A paciente virou o rosto em direção ao médico:
- Nomes são coisas poderosas, Doutor. Não se diz o nome assim, tão facil. Além do mais, seria uma lista muito longa... Muuuuito longa... ha, ha ha!
Ela ria, e seu riso ecoava como se fosse um auditório lotado.
O Dr. Resende não podia mentir pra si mesmo: aquilo estava deixando-o apavorado.
- Se não quer falar comigo, então, tudo bem! Voltaremos a conversar outra hora.
- Não manda mais aqui, Doutor. Não percebeu? - e a paciente olhou para o metrônomo. Estava parado.
Foi a vez de o Dr. Resende rir. Uma risada nervosa, mas que ele não pôde evitar:
- Ora, a corda acabou, foi só isso...
A paciente balançou de novo a cabeça na direção do metrônomo. Foi então que o Dr. Resende percebeu que ela indicava não o metrônomo, mas a abertura do ar condicionado:
- Frio, Doutor?
Foi quando o Dr. Resende percebeu que a temperatura na sala estava caindo.
Ele estava pronto a retrucar que não era nada demais, que a manutenção devia ter conseguido consertar finalmente o ar condicionado, mas ao abrir a boca notou que o ar que saia dela transformava-se em vapor.
E, principalmente, as fitas presas à grade continuavam paradas, indicando que o ar condicionado continuava desligado, tão quebrado quanto antes.
Ao voltar-se novamente para sua paciente, percebeu que esta se levantara e se encontrava a menos de um palmo de distância:
- Assustado, Doutor?
Apavorado, o Dr. Resende olhava para os olhos de sua paciente e via neles o reflexo de um vazio absoluto.
- Quem... ou o quê... é você?
Incapaz de fugir, o Dr. Resende ouviu a resposta de sua pergunta. Não saberia dizer se o que o apavorou mais foi o conteúdo da resposta, ou o fato de que ela não viera da boca de sua paciente. Aquela voz sinistra ecoava claramente dentro de sua cabeça:
- Eu sou aquele que continuará a habitar este corpo, quando você deixar esta sala. Eu sou aquele que deixará esta sala com você e que, graças a você, se espalhará como uma praga e tomará o corpo de cada humano que você encontrar pela frente!
E, rindo-se do apavorado médico, completou:
- Quer mesmo saber meu nome, Doutor?
O Dr. Resende queria correr, gritar, qualquer coisa. Mas sentia-se petrificado, incapaz de qualquer movimento.
Abraçando- se ao médico de uma forma lasciva, a mulher sussurrou em seu ouvido:
- Meu nome é Legião, porque somos muitos!
---FIM---
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