O energúmeno - Capítulo 10

Canela, 1969

Fausto dormia em seu quarto, no trailer, quando um vulto entrou sorrateiramente no seu quarto. Era uma noite escura, a lua minguante estava coberta por nuvens, no céu, e o silêncio do lado de fora era mórbido: nenhum latido, nenhum farfalhar de árvores, nenhum barulho de passos, tampouco de conversas. O estranho teria entrado despercebido, se não fosse pelo ranger da porta, que, desde que foi feita, não via graxa. Fausto acordou, mas ficou quieto, apenas ouvindo, o vulto se aproximava, e o homem deitado puxou a arma do bolso, “quem será que está aí?”. Suava frio, e seus dedos tremiam, sentia medo, mas não podia se deixar tomar por este. Quando o vulto estava suficientemente perto de Fausto, e estendeu a mão em sua direção, o homem virou, subitamente, deu um tiro para cima, e apontou a arma para o vulto, que estava no chão, assustado com o tiro.

-Quem está aí? Se for você, seu pequeno demônio, saiba que eu já estou ciente de quem é você, e do que você fez com o meu pai. Qual o seu último pedido antes de ir para o inferno?

-Filho, sou eu! Abaixe essa arma. - Joaquim levantou do chão, acendeu a luz e bateu a sujeira da roupa.

-Mas... você está morto! Não está?

-Não. Agora não posso te contar a história toda, só apareci aqui porque tenho vigiado o menino, e vi que ele vinha falar com você, e soube que já tinha te contado que eu estava morto. Ninguém sabe que eu estou vivo. Não conte para ninguém. Ainda não terminei o que eu tinha que fazer, quando chegar a minha hora, eu volto. Adeus.

Fausto estava atônito. Não entendia como seu pai fora morto, e acabou de aparecer na sua frente. Seu beliscou para ver se não estava sonhando. Correu até a porta do trailer, mas seu pai não estava mais lá fora, já havia sumido na escuridão da noite. O filho do dono do circo voltou para o seu quarto, fechou a porta e sentou na sua cama, mas não teve coragem de apagar a luz, e não conseguiu mais dormir pelo resto da noite.

Demétrio continuava sem sair durante o dia, e a roubar carteiras durante a noite, para sobreviver. Evitava ser visto pelas pessoas, e continuava sem entender os assassinatos que aconteciam enquanto ele dormia. A vida seguia, sempre difícil, até uma noite em que os policiais que estavam atrás do menino o viram furtando a bolsa de uma mulher, que estava distraída, sentada num banco, e correram atrás dele. Demétrio correu tudo o que podia, tentou seguir por suas rotas de fuga, mas foi pego depois de alguns becos e telhados.

O menino foi levado até a delegacia, onde foi espancado e reconhecido. Os policiais levaram Demétrio até o chefe, e um disse:

-Senhor, pegamos este moleque roubando uma bolsa, e olha quem ele é. - e arremessou o menino na direção do policial que, quando o reconheceu, desferiu-lhe um pontapé no rosto, que quebrou-lhe um dente, e fez-lhe o nariz sangrar.

Demétrio foi preso numa cela reforçada, e dois guardas por turno vigiavam-no, mas, para surpresa e felicidade dos guardas, Demétrio passava os dias quieto, quieto como nunca ficara em toda a sua vida, quieto como um cadáver, como um corpo sem alma, fitava o nada o tempo todo, comia o mínimo para não morrer, não falava com ninguém, quase não piscava, e alguns até diziam que nem o seu coração batia. Essa quietude súbita intrigava os guardas, que mantinham Demétrio sob vigilância constante. Ficar quieto não era uma atitude normal para uma fera descontrolada.

Permaneceu quieto por alguns meses, até a noite da sua fuga, que deixou como vestígios uma grade da cela quebrada, e três guardas mortos, os dois de sua cela, e o que ficava na portaria.

Os fiéis rezavam, uns pela conversão de Demétrio, outros pela sua perdição no fogo do Inferno, e os incrédulos simplesmente sentiam medo de ser a próxima presa de tal fera descontrolada; todos, porém, eram unânimes com um fato: o Filho do Demônio estava solto outra vez.