O Maldito

Para os futuros grandes amigos: Magno, Tati, Jamille e Drika.

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Magno entrou na sua quitinete às duas da manhã. Vinha cansado e com fome. Aquela vida de trabalhar até as tantas da manhã para ajudar na faculdade estava começando a se mostrar muito cansativa.

- To com fome. – praguejou.

Jogou a mochila surrada em cima da cama e rumou para a geladeira. Nada de especial, tirou um saco de leite e o colocou na leiteira para ferver. Ligou o fogão e ficou um segundo contemplando a chama. Depois, colocou a leiteira por cima da chama azulada.

Deixou seu jantar aprontando no fogão e rumou para o banheiro. Detestava ter que fazer aquilo, mas ia deixar o leite no fogo enquanto tomava banho. Rapidamente, ele despiu-se e entrou debaixo do chuveiro. Não podia demorar muito, pois como sua finada mãe sempre dizia: “Leite fervendo é traiçoeiro.”

A lembrança da mãe o fez ficar triste por um momento. Era feliz e não sabia. Pode parecer clichê, mas era a mais pura verdade. Caso a velha ainda fosse viva, naquele momento, ele não estaria solitário e tendo que jantar leite com achocolatado. Àquela hora, provavelmente, a velhinha estaria dormindo, mas ela teria deixado alguma coisa mais encorpada, na geladeira, para o seu jantar.

Magno deu um soco na parede. A dor nos dedos o trouxe de volta ao mundo real. Rapidamente, ele girou a torneira do chuveiro e a água fria da madrugada molhou seu rosto e costas rapidamente. Um leve arrepio percorreu seu corpo.

Ele acabou o banho, saiu do Box, tirou a toalha, passou no corpo úmido e no rosto, sacudiu rapidamente os cabelos. Com a toalha enrolada na cintura, Magno pegou o rodo e enxugou parcialmente o chão do Box do seu minúsculo banheiro. Colocou o rodo no canto e se olhou no espelho.

Estava ficando velho, o rosto chupado, carcomido pelo tempo. O nariz em forma de bolota ainda permanecia, mas seus olhos, agora cansados e tristes. O seu rosto já não parecia mais com o do menino que alegremente, vivia a jogar bola na rua. Agora, não passava de um homem com poucos sonhos na vida.

Saiu do banheiro e caminhou até a cama, com o corpo ainda úmido, ele vestiu um calção. Rumou para o fogão novamente. Na metade do curto caminho, entre a cama e o seu jantar, o leite ferveu e expandindo-se na panela, derramou. Sujando completamente toda a grade do fogão.

- Diabos! – gritou Magno.

Mal ele se calou, sentiu um calafrio percorrendo sua espinha. Todos os pelos do seu corpo se eriçaram num arrepio escandaloso. Sentiu a vista faltar e seu corpo tontear. Pouco depois, ele cambaleou até a cama e caiu sentado. Colocou a mão na testa e vomitou o suco gástrico que tinha no estomago. O gosto era amargo na sua boca e depois ficou um pouco ferruginoso. Era sangue.

- Mas, o que?

De repente, seu corpo começou com alguns espasmos, até finalmente ser tomado por total falta de controle. Ele caiu pra trás, a cama não foi o bastante, pois ele teve a pancada amortecida pela cabeçada na parede. Como que por magia seu corpo foi atirado para o outro lado da quitinete.

- Meu Deus. – balbuciou.

- Deus não está aqui agora. – falou uma voz calma.

Magno levantou a vista, todo seu corpo doía. Reunindo forças ele perguntou:

- Quem... Quem é você?

Um homem todo vestido de negro com uma gravata carmim e uma bengala de cedro estava parado ao lado do seu fogão.

- Você tem que prestar mais atenção, quando por o leite para ferver. – disse sem se importar com a pergunta do rapaz.

- Como você entrou aqui? Quem é você?

- Eu? – zombou o homem – Eu tenho muitos nomes em muitos lugares diferentes.

O homem caminhou até a pequena imagem de Jesus crucificado na parede.

- Você acredita nele? – disse apontando para a imagem e sorrindo– Eu acho que não.

- Eu acredito! – disse Magno.

- Um purista? – ironizou o homem – Não acredito. – e caiu na gargalhada.

Magno tinha a dor espalhada pro todo o seu corpo. Como doía, a cabeça os braços as pernas o tronco tudo doía e doía muito. Ele estava quase desmaiando.

- Então, vamos brincar? – ironizou o homem.

Com a palma da mão aberta o homem de preto controlou o corpo de Magno, levantando e baixando a palma. O rapaz levou várias pancadas no teto e no chão, pois flutuava como uma pena. Magno gritava de dor.

- Por que está fazendo isso? – perguntou entre lagrimas – Tenha piedade.

Um trovão estourou no céu. A pequena quitinete tremeu com o som. Os ouvidos do rapaz pareciam que iam estourar. O homem correu até o jovem e o amparou, para que ele se levantar.

- Você está bem querido? – perguntou o homem – Eu sou piedoso.

Incrivelmente, toda a dor no corpo do rapaz se esvaiu. Ele estava inteiro novamente, como se nada tivesse acontecido. Então, de sua cintura o homem puxou uma adaga e cortou sua própria mão. O liquido escorreu pelo corte, enchendo a mão do homem de sangue.

- Agora, seja um bom garoto, e beba, sim?

- Não! – gritou Magno.

Todo o sangue na mão do homem, instantaneamente transformou-se em larvas de moscas. Elas percorriam sua mão e subiam pelo pulso de sua camisa. O homem levantou os olhos nas orbitas, desapontado.

- Por que tão poucos aceitam a maldição do morto-vivo? – pensou alto.

Então com a mão livre, ele puxou o cabelo de Magno para trás, fazendo-o escancarar a boca de dor. Sem perder tempo, o homem de preto encheu a boca do rapaz com os vermes e o deixou engasgando.

- Bom, eu bem que tentei ter piedade – falou - Mas, você não quis.

Então, o homem estalou os dedos e o silêncio tomou o ambiente. De repente, das paredes começaram a aparecer bolhas amareladas e pequenas crateras. O homem de preto foi até a parede, passou carinhosamente a mão em uma das bolotas amarelas e rapidamente, sacou a adaga e fez um corte em toda a extensão da parede, passando por duas bolotas amarelas que estouraram. Um liquido insalubre escorreu pela parede, parecia uma mistura de urina e pus. Pouco depois, o corte na parede começou a sangrar e aos poucos aumentava o fluxo de sangue, cada vez mais. Até que o homem passou a mão na parede, fazendo o rio de sangue estancar.

- Que lindo. – admirou – se de sua obra macabra.

Magno acabava de cuspir os últimos vermes. Ele olhou para a parede, mas não acreditou no que viu.

- Meu Deus! – falou em voz alta.

O homem olhou por sobre o ombro direito e com um tom zombeteiro falou:

- Já falei que Deus não está aqui!

Ele se virou e encarou Magno.

- Vamos acabar logo com isso. – disse, enquanto batia com a bengala no chão.

Todas as paredes da quitinete foram tomadas por uma sujeira inexplicável, o ar tomou um aspecto ferruginoso e o cheiro de enxofre invadiu o ambiente. Magno olhou para aquela onda de coisas inimagináveis. Foi quando viu que seu fogão tinha enferrujado totalmente. Seu armário de parede caiu no chão com um baque forte. Na queda, uma porta abriu-se e de dentro pularam três enormes serpentes caolhas. Da leiteira que estava no fogo, Magno pode ver baratas, minhocas e moscas tentando escapar, pois todo o leite havia se transformado em sangue.

O homem bateu a bengala mais uma vez no chão.

Em um passe de mágica, o teto da quitinete foi arrancado e Magno pode ver o lindo céu estrelado. Mas, três segundos depois, o céu se transformou Grandes nuvens de poeira e enxofre apareceram, destruindo o brilho das estrelas. Ele olhou para a janela e viu que sua calma rua, havia se transformado em uma enorme poça de lixo e lama. Sua cama, antes tão bem arrumada, estava suja de vomito e urina, com uma enorme marca vermelha no centro.

Pela janela, Magno pode ver uma enorme fogueira.

- É ali onde os pecadores são purificados. – explicou o homem – É pra lar que você vai.

- Onde, onde... Onde eu estou? – perguntou um medroso Magno.

O homem colocou as mãos nos ombros do rapaz. E levemente, começou a massagear as costas dele.

- Acho que você não vai gostar daqui. – sussurrou no ouvido dele – Eu sei que não vai.

Depois, deu as costas para o rapaz e estalou os dedos mais uma vez. Enormes lâminas saíram das paredes e cortaram a carne de Magno, fazendo-o tropeçar e cair no chão sujo. O homem abriu a porta da quitinete e falou:

- A propósito, seu corpo vai ser encontrado com um enorme sorriso no rosto. – pouco antes de sair ainda o saudou – Bem vindo ao inferno! – e começou a gargalhar.

João Murillo
Enviado por João Murillo em 11/08/2011
Código do texto: T3152819
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