Armadilha

Haroldo estava cansado que roubassem a bomba do poço do sítio onde morava. Por isso, resolveu valer-se de um dispositivo brutal de caça. Uma armadilha para ursos. Era coisa muito antiga, enferrujada, mas, ainda funcionava muito bem. Quando Haroldo testou-a, o galho rombudo e verde que usou para cutucar a mola central se partiu em dois com a força da dentada. Ele quase mijou nas calças de susto. Todavia, ficou animadíssimo com a hipótese de encontrar, qualquer manhã dessas, um vagabundo atrelado por um pé dilacerado, gemendo de dor, ao lado da boca escancarada do poço. Na verdade, ele queria muito que algo assim acontecesse. E pensar nisso deixava-o excitadíssimo, em vários sentidos.

- Jovelina, meu amor – disse Haroldo a esposa, transbordando bom humor –, acabei de deixar uma surpresinha para o filho da puta que rouba as nossas bombas!

- O que é, meu bem?

- Lembra-se daquela armadilha para apanhar ursos que o meu pai usava para caçar?

A mulher o encarou, incrédula.

- Não. Você não mexeu com aquela coisa horrível! Me diga que você está brincando!

Haroldo não deixou a apreensão da mulher estragar o seu ânimo:

- Deixa disso, minha querida, é só um vagabundo que vai ter o que merece.

- Eu não sei se você se lembra, mas Tommy já quebrou o pé naquela coisa.

Haroldo sentiu a expectativa arrefecer. Lembrar da existência do filho o deixava melancólico.

- Tommy, Tommy, ele já tem dezessete anos e você ainda o trata como um menininho de cinco anos. Jô, se eu me lembro bem, ele deixou “a coisa” cair em cima do pé. É bem diferente.

Jovelina balançou a cabeça, desanimada. Lembrava muito bem dos berros do garotinho dentro da oficina, cujo pé fora esmagado por aquela porcaria. Devia tê-la jogado fora antes que o marido se lembrasse que ela existia.

- Por falar naquele imprestável, por onde ele anda, querida?

- Não chame assim o seu filho. Ele deve estar com os amigos.

- Você é boazinha demais com ele, meu amor, fica dando muita moleza. Tom não me ajuda em nada e só tira nota baixa na escola. Do que mais você quer que eu o chame? Ele só sabe vadear com aqueles garotos perdidos.

- Ah, amor, por favor, tenha mais paciência com ele...

- Eu tento, você sabe que eu tento – deu um beijo na testa da esposa, sorrindo. - Está escurecendo, tenho que avisar o moleque senão vai que ele pisa na armadilha, né? Aí, já era. Mas acho que ele não vai perambular para aqueles lados de noite, ele não tem o que fazer lá.

- É mesmo, meu querido. Mas não quero saber daquele troço traiçoeiro, entendeu? Você vai jogá-lo fora amanhã mesmo!

Haroldo concordou com a cabeça. Só para aplacar o mau humor da esposa. Queria mais é que vagabundo ladrão de bomba ficasse sem uma perna para largar mão de ser besta.

Já havia passado – e muito – da hora do jantar. Tom, o filho delinquente de Haroldo, não sentia fome. Estava com droga até o rabo, segundo a opinião dos amigos aquela noite, mais doidão do que felino brincando com erva-de-gato.

Ele se dirigiu ao poço perto do celeiro, aquele do qual vivia arrancando a bomba enquanto o pai dormia. A lua estava alta, cheia, iluminava bem a propriedade. Só que não era o bastante para Tom. Não dessa vez.

O rapaz ia andando rápido, o suor escorria pelas suas costas e pelo seu rosto abestalhado. Seus olhos, apesar de arregalados, não enxergavam muito bem o que havia pela frente. A única coisa que se destacava muito bem na névoa narcótica era o cano preto, largo, que saía por um lado do poço e rastejava em direção ao curral.

Era junto ao cano que Tom costumava se debruçar e içar a bomba para fora, dizendo a si mesmo que “essa merda vale uma boa grana, o velho que se dane”. E era ali que a bocarra de metal mal aparecia, coberta pelas folhas que o vento soprara aquela tarde. Os triângulos agudos fazendo as vezes de dentes de algum animal feroz de histórias de caçador.

Tom deu seu derradeiro passo e um estalo seco, altíssimo, encheu a noite, seguido de um urro animalesco que fez os cães da vizinhança desatarem a uivar e latir ao mesmo tempo.

O urro foi morrendo na garganta. Os olhos coalhados de sangue e lágrimas, fitavam a lua branca acima do telhado do celeiro. O sangue, ainda quente, esguichava do tornozelo destruído. Tom nunca tivera ossos muito resistentes e, sob a luz do luar, ia ficando cada vez mais pálido, convulsionando e revirando os olhos, como quem está nauseado. Uma parte de sua mente ecoava a hipótese de tudo isso ser mais uma alucinação da heroína em suas veias. Embora a sensação de frio se tornasse cada vez mais intensa e a dor começasse a pulsar no compasso dos seus batimentos cardíacos, ele achava que essa hipótese soava bastante plausível. Sim. Tudo o que estava sentindo era uma espécie de ilusão, e o que via era uma armadilha. Era apenas uma questão de saber esperar. Sim. E de parar de olhar para a boca do bicho que havia arrancado o seu pé com uma dentada, porque talvez ele ainda estivesse com fome.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 10/08/2011
Reeditado em 12/08/2011
Código do texto: T3151973
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