Filho do demônio ( O Energúmeno) - Epílogo adicional

“Aqui jaz o filho do demônio” dizia a inscrição no túmulo de Demétrio Reis.

-Pai, quem é esse 'filho do demônio'? - Perguntou o pequeno Jonas a seu pai.

-Foi um maluco que viveu aqui na nossa cidade, há alguns anos. Ele era amigo do seu avô... e foi quem o matou. - Respondeu o senhor de 40 e poucos anos, de cabelo liso e curto, um pouco grisalho pelo tempo; face cansada, mas não sem o brilho da vida, percebível por quem o olha através de seus olhos claros e expressivos, a barba mal feita e as olheiras mostravam que era uma pessoa que não se importava muito com a aparência, mas nem isso tirava a sua beleza natural. Seu nome era Fausto.

-Ele era mau?

-Sim, filho, muito mau. Talvez a pessoa mais má que já tenha vivido aqui em nossa cidade.

-Mas o que ele fez?

-Você ainda é muito novo para ouvir tanta desgraça, não quero que você cresça achando que a vida não é bela, como eu fiz.

-Mas pai, eu tenho o senhor e a mamãe, não tem como eu não achar a vida bela.

-Está bem, filho, você venceu. Eu te contarei a história de Demétrio, o filho do demônio, mas só quando estivermos em casa.

-Ok, eu espero.

E saíram, pai e filho, pela porta do cemitério, onde Fausto ia toda semana, visitar o túmulo do pai, morto pelo 'fiho do demônio'.

...

-Jonas, venha aqui, quero te contar uma história.

Jonas, 10 anos após aquele dia no cemitério, hoje com 17, foi ao encontro do pai, que estava sentado em sua velha poltrona verde, em seu escritório. O pai fechava o livro que estava lendo quando o jovem entrou no cômodo, e guardou-o em uma gaveta, mas não antes de Jonas ler o título, que dizia “O filho do demônio de Casa Nova”.

-Filho, sente-se nesta cadeira a seu lado. Já guardei essa história de você há muito tempo, mas agora você já tem maturidade suficiente para ouvi-lá.

Jonas pegou a xícara de chocolate quente que o pai deixara em cima da mesa, e tomou um gole, sem tirar os olhos do pai, da sua expressão séria e fria, se quem ia fazer uma denúncia à polícia, ou ser testemunha de um crime.

-Há muito tempo atrás, aqui na de Casa Nova, nasceu um menino, filho de uma prostituta, a qual morreu ao dar a luz. Ao bebê foi dado o nome 'Demétrio', que significa “consagrado a Deus”, e o pequeno foi levado para ser criado num orfanato, onde seria dado todo o amor necessário para aquele pobre miserável, que já nascera sem pais, e sem lar.

Demétrio não era, nem de longe, um bebê bonito. Era pálido como uma folha de papel, e seus cabelos, castanhos, eram ralos e finos; os olhos, escuros como uma noite sem lua, eram opacos e grandes, não como belos olhos espressivos, mas como dois farois de fusca apagados, tão arregalados quanto os olhos dos insetos; seu nariz era torto, e a boca quase sem lábios nunca se torcia num sorriso.

O pequeno órfão cresceu com os outros meninos sem pais, ou cujos pais não tinha condições de cuidar, devido a doenças ou distúrbios, do orfanato. E com as freiras, que lhe davam carinho, atenção e amor, apesar de isso não se mostrar suficiente para o pequeno filho do demônio, que batia nas freiras, puxava o cabelo dos outros meninos, tirava a roupa das meninas, e destruia tudo que estivesse a seu alcançe. As freiras, rígidas, mas pacientes, não desistiam de cuidar da criança, pois ele ainda era filho de Deus, ainda...

Os anos se passavam, e Demétrio se comportava de maneira cada vez pior: mordidas, socos e pontapés em quem tentasse dominá-lo, ou simplesmente chegasse perto, a teimosia e relutância em fazer as coisas que lhe eram mandadas, e até o abuso com as meninas. Um dia, quando Demétrio tinha apenas 10 anos, as freiras o acharam no banheiro feminino, sem roupas, tirando as de uma menina, depois de espancá-la, arranhá-la e xingá-la de todos os nomes feios possíveis.

As freiras já não aguentavam mais aquela criança endiabrada, mas nada podiam fazer, pois não podiam largar o moleque na rua, a não ser dar-lhe mais atenção, para que ele não tivesse a liberdade de cometer outros delitos.

O dia que um senhor disse que queria adotar Demétrio foi o mais feliz para muitas das freiras. Mesmo sabendo que não era bom sentir algo senão amor e compaixão por Demétrio, nenhuma delas podia negar que era um alívio se livrar daquele pequeno diabo.

Todas as providências necessárias foram tomadas, e o senhor levou Demétrio consigo, para cuidar dele, era o que se pensava.

Demétrio não mudou suas atitudes depois que foi adotado, mas o senhor não se importava, e até achava isso bom, pois era dono de um circo, e a “criança do diabo” seria a sua mais nova atração. Demétrio podia agir como quisesse, pois, ou estava preso numa gaiola e devidamente acorrentado, para não fazer nada, ou estava se apresentando, sem os grilhões que lhe prediam, mais ainda engaiolado.

O menino, que sempre tornara a vida dos outros um inferno, agora aprendia o que era realmente viver em um, não receber o amor das freiras, nem comida, nem cama, nem perdão. Não vivia, apenas sobrevivia, como um leão mantido em cativeiro, que, por mais que rugisse e se debatesse, nada mudaria o fato de estar engaiolado e sem o direito à liberdade.

Os dias de apresentação eram desagradáveis, e os sem apresentação eram piores, nas apresentações ele estava engaiolado, nos passeios, apenas para manter forma suficiente para não morrer e poder espernear e gritar nas apresentações, estava acorrentado, e, na maior parte do tempo, ambos.

Uma vez, Demétrio ousou ficar quieto durante uma apresentação, quando já não tinha mais forças para espernear e gritar. Ele não se importava com as vaias, mas as chicotadas que recebeu após a apresentação foram suficientes para que esse episódio não se repetisse jamais.

Demétrio, agora com 14 anos, já não aguentava mais a vida, ficava imobilizado na gaiola, para que não pudesse se matar, seu corpo, todo marcado por arranhões, mordidas, cortes, chicotadas e quaiquer outro tipos de marca que se possa imaginar, contribuia para a figura demoníaca que o dono do circo usava para lucrar.

Diz a lenda que, naquele mesmo ano, Demétrio fizera um pacto com o encardido, para fugir daquele lugar. Guardas juram que viram, com seus próprios olhos, o jovem arrancar os grilhões de seus membros, e quebrar as grades da gaiola. Balas não funcionavam contra o rapaz, tampouco segurá-lo. Demétrio adquiriu uma força extraordinária, e agora a usava para fugir do circo, e partir para lugar nenhum, onde era o seu lugar.

Uma onda de assassinatos crueis, incluindo mortes por estrangulamento, pancadas, facadas e mutilação passou por esta região, bem quando Demétrio conseguiu se livrar do senhor do circo, até se concentrar aqui , onde o demônio viveu até sua morte.

-Essa é, de fato, uma história intrigante.

-Sim, de fato. Mas ainda não acabou, me deixe tomar um ar para continuá-la.

Fausto abriu a janela do escritório, e uma luz forte irrompeu pelo comôdo, clareando as prateleiras de livros empoeiradas. O pai de Jonas olhou para o céu, sem nenhuma nuvem, e inspirou profundamente, o rapaz pôde ver uma lágrima escorrer pelo canto do olho de seu velho pai, e cair em seu sapato de couro, sempre brilhante e bem cuidado. O velho fechou de novo a janela, e sentou-se em sua poltrona habitual, tomou um gole do chocolate quente, que esfriava na xícara enquanto a história era contada, e deitou a cabeça para trás, fechando os olhos, pensativo.

-Filho, por favor, dê-me um momento para acalmar os nervos, chamar-te-ei quando for prosseguir a história.

-Está bem, não se preocupe. - Disse Jonas, levantando da cadeira e se retirando do escritório, para que o pai pudesse descansar um pouco. O jovem sabia que aquela história era marcante para seu pai, e respeitava isso.

Jonas foi para a cozinha beber um pouco d'água e refletir sobre a história que o pai contara.

“Como uma pessoa pôde viver assim? Será que isso é possível? Será que é possível ser mesmo filho do demônio? Como ele se sentia fazendo isso? Sentia remorso? Culpa? Dor? Mágoas? E como será que foi o seu fim?”

Ficou nestes pensamentos até que seu pai o chamasse de novo para ir ao escritório, e recomeçasse a história.

-Pode se sentar aí mesmo, já estou melhor, podemos prosseguir.

-Demétrio matava quando tinha vontade, sem motivo algum, e sua sobre-humana inteligência permitia que não fosse pego. Matava homens, mulheres, velhos, novos, brancos, negros; na maioria das vezes estrangulava o corpo e estuprava o cadáver. Ninguém escapava das suas mãos, se ele encostasse em alguém, era morte certa, e essa “invisibilidade” ajudava a sua fama como lenda, todos relacionavam as mortes, mas ninguém jamais tinha visto o jovem.

Os crimes aumentavam, em quantidade e gravidade, e Demétrio não saciava a sua sede por sangue, até que, um dia, uma emboscada que foi armada para pegá-lo deu certo, mas, dos 14 homens que foram segurá-lo, 1 morreu e 7 ficaram feridos. Demétrio foi preso sob vigilância reforçada, e passava os dias quieto, quieto como nunca ficara em toda a sua vida, quieto como um cadáver, como um corpo sem alma, fitava o nada o tempo todo, comia o mínimo para não morrer, não falava com ninguém, quase não piscava, e alguns até diziam que nem o seu coração batia. Essa quietude súbita intrigava os guardas, que mantinham Demétrio sob vigilância constante. Ficar quieto não era uma atitude normal para uma fera descontrolada.

Permaneceu quieto por alguns poucos meses, até a noite em que fugiu da sua cela. Ao 32 anos Demétrio desaparece da prisão, deixando como vestígios uma grade quebrada, e muitos guardas mortos, o filho do diabo estava solto outra vez.

Os fiéis rezavam, uns pela conversão de Demétrio, outros pela sua perdição no fogo do Inferno, e os incrédulos simplesmente sentiam medo de ser a próxima presa de tal fera descontrolada.

O demônio ficou um tempo quieto, mas logo voltou a agir, sua primeira vítima foi seu avô, que foi achado morto com marcas de cordas no pescoço, e cortes e hematomas por todo o corpo. Seu avô era tão bom com todos, por que ele tinha que ser assassinado desse jeito? Eu tinha apenas 2 anos nessa época, se eu tivesse mais, juro que ia atrás dessa peste.

O velório foi no dia seguinte, tantas pessoas já tinham morrido nas mãos desse diabo, mas cada perda era uma tristeza, cada pessoa que se ia era insubstituível, cada cadáver amanhecido era uma mistura de mais medo e raiva pelo assassino.

Estava impossível de se viver, poucos se aventuravam de sair à noite, poucos que não tinha medo da morte, mas que, para alguns deles, a morte chegava repentinamente. Demétrio matou talvez 40 ou 50 pessoas em vida.

Uma vez, uma pessoa conseguiu escapar de um ataque, e descreveu para a polícia que o agressor era um ser das trevas, um demônio ou um vampiro. Era muito magro, a pele toda tatuada, ou talvez as marcas fossem cicatrizes, o cabelo era grande e fino, desarrumado, por cima do rosto, os olhos estavam semi-cobertos, e estava escuro, mas deu para ver que eram olhos de raiva, olhos opacos e vermelhos, fundos, cansados, maltratados. Os lábios não se fechavam direito, pois estavam inchados e dilacerados, e os dentes à mostra, dentes amarelos, podres, só esperando para serem cravados na carne de alguém, e eventualmente mastigá-la e degluti-la ali mesmo, com o sangue escorrendo pelos cantos da boca e pelo corpo, a posição da criatura era como a de um animal prestes a atacar, arqueado para frente e com as mãos levantadas, como garras.

O bicho saltou para cima da vítima, que se desviou e correu o máximo que pôde, até chegar em casa, mesmo já tento despistado a criatura, onde permaneceu até que o sol aparecesse.

A polícia agora estava no encalço do criminoso, e prendeu três homens que batiam com a descrição da vítima, um dos quais foi reconhecido por essa, e que foi morto sem julgamento de qualquer espécie, um demônio não precisa ser julgado por leis terrenas.

A cidade agora teve dias de paz e tranquilidade sem o psicopata que a assolava, várias festas para comemorar, muita alegria e sorrisos no rosto de todos. Mas não demorou muito depois que acabaram as festas, para aparecer alguém assassinado cruelmente.

A polícia foi investigar o caso, e descobriu que a cova na qual jazia o corpo estava aberta, e o cadáver não estava mais lá. Será que o filho do diabo ressuscitara dos mortos para assombrar esta cidade mais uma vez?

Algumas pessoas acreditavam que ele ressuscitou, de fato, outras apenas acreditavam que havia um novo assassino, que roubara o corpo do diabo para matar se passando por um mero cadáver, qualquer que fosse a verdade, a polícia tinha que agir.

A força policial das cidades vizinhas vieram ajudar, e montaram uma armadilha pra o assassino, um dos policiais, à paisana, dormiria ao relento, num banco da praça, e, quando o demônio viesse atacar, os outros policiais surgiriam de seus escoderijos, e prenderiam a criatura de novo.

A emboscada foi um sucesso, apesar de a isca não ter morrido por um triz.

Demétrio agora estava preso de novo, e não ficaria barato para ele, no interrogatório ele confessou que fizera um pacto com satanás, e contou, um a um os assassinatos que cometeu ao longo dos anos, foi acorrentado e preso numa cela reforçada, para ser morto no outro dia, logo ao amanhecer, em praça pública.

Os guardas noturnos, todos morrendo de medo de algo acontecer, disseram que o preso passou a noite todas gritando, com uma voz que não era a dele, se debatendo, falando uma língua que eles não conseguiram entender, e ameaçando mandar todos para o inferno, queimar pela eternidade toda por lá.

No dia seguinte, um pouco antes do amanhecer, o chefe de polícia foi até a cela, onde jazia um corpo morto, satanás viera cobrar sua parte do pacto, que não é barata, veio buscar a alma de Demétrio. Nenhuma perícia foi feita, por medo de o demônio acordar na necrópsia, e era um alívio para todos que ele não deu trabalho algum para morrer durante a noite. A cabeça foi cortada do pescoço, o corpo foi queimado, e tudo foi trancado dentro de um caixão de concreto, para que o demônio não saísse mais uma vez de seu túmulo.

Até hoje ocorrem mortes estranhas, às vezes, mas ninguém as atribui mais ao filho do demônio, e eu realmente espero que ele esteja bem morto, em sua cela subterrânea, para sempre.

Com essas últimas palavras, Fausto deitou a cabeça na poltrona, e adormeceu, Jonas o cobriu com um lençol e foi para a sua cama, na qual dormiu a noite inteira, para acordar no outro dia para mais um dia de escola, voltando à vida normal.

-Coitado de Demétrio, ele era apenas um doido agitado, e levou a culpa pelas pessoas que eu matei, tive até que achar um sósia para fingir minha morte e por a culpa naquele pobre inocente. Só queria saber por onde anda Fausto, meu filhinho...