A coisa na banheira
Em plena crise econômica, resolvi comprar uma casinha modesta para mim e sair da casa de minha mãe. Achei uma dentro das minhas possibilidades e comprei-a de imediato. Ignorei quando o corretor que me vendeu a casa me alertou para o fato de que um homem fora encontrado morto no único banheiro da casa. Fora assassinado com golpes de faca no peito e passara muitos dias apodrecendo em meio à água que enchia a banheira. Mas isso ocorrera há anos atrás. Eu disse que não tinha medo dessas bobagens, qualquer coisa eu poderia sair correndo, não é?
A casa era velha. Havia infiltrações em todos os cômodos. Rachaduras no piso. Um fedor muito forte de coisa apodrecendo impregnava tudo, desde o chão até as paredes. Era um fedor terrível, como o de esgoto e carniça à céu aberto. Só que dentro da casa.
O primeiro e único dia foi estranho, eu não conseguia parar de procurar a origem do fedor supracitado. Acabei constatando que era a única habitante do lugar. Não havia ratos. Nem lagartixas. Nem baratas. Era de se admirar, já que a casa parecia perfeita para ser abrigo de todo e qualquer tipo de praga nojenta.
Foi enquanto enchia a banheira com água quente, olhando com desconfiança e nojo para as manchas marrom-escuras nos lugares onde o azulejo antigo estava quebrado e tentando não vomitar só de ver o líquido viscoso e preto que pingava no teto e empoçava no chão, que saquei porque a casa havia custado tão pouco no mercado imobiliário.
E eu comprei-a.
Não era por causa da crise.
A casa era assombrada de verdade.
Qual é? Sem ratos, baratas ou mesmo moscas?
As manchas nas paredes deviam ser sangue infiltrado. Bem como o líquido preto que pingava no banheiro.
Era início de noite lá fora, ainda dava tempo de sair dali.
Só um louco passaria a noite naquele lugar.
Peguei na torneira com o intuito de fechá-la. Um som aquoso e algo melequento se fechara ao redor de meu pulso. Com o susto, dei um tranco, escorreguei no piso molhado e cai sentada ao lado da banheira.
Na altura dos meus olhos, um rosto inchado e marrom me encarava com olhos completamente brancos. O produto de dias submerso em água. Eu podia ver ossos nos lugares onde a pele enrugada se rompera, uma gosma clara fazia brilhar cada pedacinho da infeliz assombração.
Firmei um pé no lado da banheira e me impulsionei para longe da coisa que exalava o mesmo fedor que enchia a casa, só que intensificado no mínimo umas dez vezes. Meu pulso se desprendeu do aperto viscoso e frio da mão apodrecida. Arrastei-me de costas em direção à porta aberta.
Uma onda de água suja escorreu pelas bordas da banheira e, em seguida, o fantasma, ou o que quer que fosse, projetou o corpo arruinado para frente, pingando o líquido preto da boca aberta e duma série de buracos que havia em seu tronco, buracos esses que permitiam ver dentro da caixa torácica, os órgãos esponjosos e podres apareciam pelas fendas entre as costelas. Num misto de incredulidade e medo, ergui-me sobre os cotovelos e engatinhei para o corredor e além, só conseguindo me por de pé a muito custo.
Pingando suor frio e tremendo, consegui entrar no carro e dar a partida, pegando a estrada e me afastando da casinha às escuras. Ainda senti o fedor medonho por um longo trecho do caminho até a casa da minha mãe. E houve uma vez que, ao olhar pelo espelho retrovisor, julguei ter visto o cadáver ensopado e de olhos leitosos sentado no banco de trás. Nunca mais retornei a casa. Nem mesmo para buscar os meus poucos pertences que lá ficaram. Por mim, a coisa na banheira podia fazer bom proveito de todos eles.