Valorizando a mãe

Era a décima vez que o telefone tocava naquele dia. Otávio largou a faca com uma mão trêmula e, flexionando todos os dedos sem parar, foi atender a mais uma chamada inconveniente.

- Alô...?

- Otávio? Otávio, o que você continua fazendo aí? Já está quase na hora! Vem logo pra cá!

- Eu já vou, Lu, já vou...

- Otávio, olha lá. É o enterro da nossa mãe. E se você gosta dela tanto quanto vivia dizendo a ela, é melhor você estar aqui quando aquele caixão baixar!

- Calma, Lu, eu vou estar aí num minuto... hum, talvez leve um pouco mais de tempo...

- Não quero saber, só quero que você esteja aqui a tempo, entendeu?

- Entendi...

- Então, até.

- Tchau...

Recolocou o fone no gancho.

Estar lá para ver o caixão baixar na cova. Tudo bem, então.

Otávio passou as mãos pelo avental florido que pertencera a sua tão amada mãe e que agora protegia o terno preto que ele vestia, por ocasião do enterro. Desfez o laço nas costas e contemplou enternecidamente a pia onde o corpo da adorada genitora fora desmembrado, desossado e eviscerado, sendo cada partezinha sua cuidadosamente guardada dentro de potes plásticos. Olhou para as pilhas de potes sobrepostos, o conteúdo parecendo misterioso dentro de cada um. Olhou para as manchas de fluidos que escorreram da mãe enquanto ele trabalhava, com todo o carinho, em seu pobre corpo violentamente abatido durante um acidente automobilístico.

Suspirou e limpou a testa seca. Sua sorte era que o caixão não seria aberto. Senão, Lu poderia querer ficar com a mãe. Seria inaceitável, afinal, ele sempre fora o filho mais dedicado, mais amoroso. Não era ele que estava prestes a condenar a própria mãe a apodrecer embaixo da terra. Não, ele tinha reservado algo muito melhor.

Sua mãe viveria em cada fibra de seu corpo.

O telefone tocou mais uma vez.

- Alô...

- Você está chegando, não está?

- Estou saindo...

- Ande logo, você sabe, está muito quente... o caixão já está exalando um cheiro estranho...

Otávio relembrou a cara de surpresa que o agente funerário fizera ao surpreendê-lo desparafusando a tampa do caixão com a mãe dentro. A mãe embalsamada, rodeada de flores que murchavam ao mesmo tempo que a carne se estragava.

“O que o senhor está fazendo?”, perguntara o velho agente, que cuidara de cada mínimo detalhe do funeral, “Ela já está pronta...”

“Ela está morta.”

“Infelizmente, mas o senhor não pode abrir o caixão... deu muito trabalho... o senhor sabe...”

Otávio lembrou-se, na mesma hora, da visão hedionda e terrível de um volume sangrento sendo recolhido do meio de ferragens, sob a luz espocante de uma câmera fotográfica.

“Se o senhor fizer o favor de esperar até a manhã, poderá se despedir e...”

Otávio encarara o agente de terno preto e entendera que ele estava tentando separá-lo da mãe querida. Ergueu a furadeira com a qual conseguira remover a maior parte dos parafusos que selavam a tampa do caixão e quando o agente se aproximava, agarrou-o com toda a força que possuía. O homem arregalou os olhos, apavorado, tentou desvencilhar-se daquelas mãos que o prendiam implacavelmente e soltou um gritinho medonho que se mesclara ao ruído do motor da ferramenta e ao ruído da resistência óssea da caixa craniana sendo vencida pela haste de aço giratória.

- Otávio? Você está ai? Está me ouvindo?

- O caixão está exalando um cheiro estranho, mana?

A irmã pigarreou ao telefone.

- Otávio – começou, falando bem baixinho -, venha logo, vamos acabar de uma vez com isso. Meus filhos estão querendo jantar cedo hoje. E eu também.

- Eu também, mana – disse Otávio, baixando o fone no gancho devagar, um sorriso iluminando seu rosto -, eu também quero jantar mais cedo hoje.

Sua mãe nunca gostou de atrasos na hora das refeições. Eles, com certeza, haviam puxado isso dela.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 27/07/2011
Reeditado em 28/07/2011
Código do texto: T3121549
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