lembranças de uma chacina

Um corpo se acorda no meio de um asfalto seco e sem vida. O corpo abre os olhos com dificuldade, com quem acorda em meio a luz intensa. Olha a cidade em que mora e ver uma cena infernal. Corpos mutilados, pessoas armadas sem olhos que ainda gemiam de ódio. Severina estava assustada. Ela só precisava ir no poço da fonte e buscar água para sua mãe aprontar o almoço. Como perto da casa não tinha Severina achou melhor ir na cidade que perto dali se construía. O sol recortava caveiras e rostos sádicos das sobras do jequitibá, mas ela nem ligava.

No meio do caminho encontrou um andarilho cego, vestido em trapos que lhe aconselhou:

“Olhe moça bonita, eu diria pra não ir pra cidade não mas vejo sede em seus objetivos. Mas acho que mesmo numa terra seca uma moça tão bonita não deve ficar presa numa cidade que virou cria do inferno.”

“Cria do inferno? Como assim?”.Assustada Severina se afastava do velho , achava que era ameaça, ou que era louco. Mas antes de tudo ele só informou:

“Não quero teu mal minha pequena, mas na cidade que eu custei a sair , te dou um conselho que vai lhe servir: Não acredite no que seus olhos vão te mostrar, na cidade que te espera eles estarão a serviço ‘dela’. Leve fumo e uma fogueira, ela gosta, e só assim te deixará descansar na ribanceira”. Falando isso só puxou Severina, colocou em sua mão uma caixa dourada com relevos de sol. Não era ouro de ouro, mas bonita não deixava de ser.

Desconfiada Severina seguiu para a cidade, mas levou o presente, que com receio tinha de ficar. “Podia ser macumba”. Ela pensou, mas se a cidade era o que era, não devia ariscar.

Chegando na cidade nada tinha de anormal, armazém de coisa pouca, roupa pendurada no quintal. Mas logo de chegada viu uma criancinha se aproximar, bem de longe era linda mas estava a chorar. Severina resolveu chegar perto e perguntou:

“Por que choras minha linda, o que foi que a assustou?”.

A criança que de cabeça baixa estava, para de soluçar. Levanta a cabeça e a encara com um rosto mutilado. O que antes era linda foi se despedaçando em suas mãos: braços, vísceras, órgãos podres se espalhavam pelo chão.

Horrorizada Severina se afasta, larga o balde lá na praça e pelas casas tenta pedir ajuda. Mas percebe que ninguém mais mora lá, as casas estão vazias mas há marcas de batalha nas portas de madeira e nas paredes de barro. Ainda sim Severina resolve ir a fonte, lembra bem o caminho, ia com mãe Salustiana quando era um ‘cotoquinho’. Quando perto da ponte chegava viu carroças quebradas, pau e pedras, cenas de horror intenso. Então algo a tocou no ombro e de repente viu um clarão que a fez apertar os olhos. Mais do que nunca Severina estava numa cidade movimentada, cheia de gente, era a mesma mas tinha gente, por que?

De longe ouviu grunhidos e relinchos de pavor. Eram animais que estavam sendo mortos para comércio, eram filhotes que gritavam por seus pais, e toda a cidade sorria jogando os restos perto do poço que a moça já pegou água. É que vinha gente nova pra a cidade, mostrara o quanto de dinheiro se ganha tirando dos bichos e resolveram fazê-lo também. Os cavalos carregavam muita carga nas costas que chegava a descer sangue preto. Passarinhos eram depenados vivos, porcos gritavam de horror enquanto eram arrastados para a morte. Então Severina vê uma figura na mata, que assiste a cena com ânsia e ódio. Era uma moça, não, era uma velha(pra ser preciso), de cabelos vermelhos e pintura no rosto. Esta chorava por tudo e sofria a dores de parto toda aquela barbaridade, então simplesmente fechou os olhos e começou a recitar mantras em uma língua estranha. Logo em seguida Severina houve gritos de gente agora, os que matavam animais estavam se matando, fincavam suas peixeiras na testa de outros friamente. Pensavam que era animais e arrancavam a pele dos outros pensando que depenavam aves, e Severina se escandalizou com tudo aquio.”Deus!”Pensou.

Quando a cena parecia já explicada o clarão virou escuro, e Severina já estava de volta aquela cidade. “Aqui eu não fico!”. Pensou decidida , e disparou a correr de volta. Mas quem disse que tinha volta, já se davam onze horas e Severina não encontrara uma saída de uma cidade que parecia tão pequenina. Os corpos já fediam, e a situação estava enlouquecedora. Severina pensava em suicídio, mas quando apalpou sua sacola de pele se havia algo afiado que acelerasse sua perda pegou algo no bolso que não era mais nada que a caixinha do andarilho cego. Lembrou que ele a alertara da cidade, e abriu a caixinha. Lembrou que ele falava algo sobre agradar ‘ela’. E quando abriu a caixinha tinha só um fumo artesanal feito de tabaco queimado e um isqueiro. Então lembrou que sua avó já falecida hoje lhe falava de uma senhora que vivia nas matas para atormentar viajantes que maltratavam bichos. Ela era ilusionista, era prima de curupira, ela era a Caipora. Mas tão má que não se brincava em ‘braço na tipóia’. Então Severina acendeu o fumo e procurou um buraco de árvore pra deixar como oferta, era o que tinha a ser feito. Esta escorregou, bateu a cabeça e desmaiou. Se acordou na mesma hora, com o balde na mão e já fora da cidade maldita. Voltou pra casa e viu toda a família matando porcos, e depenando pássaros, e ouvia os mesmos gemidos em toda a cidade.

“Menina se esperte e vá me matar um porco no muro vá”.Falou sua mãe.

“De novo não”, ela pensou, e então começou tudo de novo, seus pais se digladiavam entre si vendo demônios ao qual precisavam exterminar, seus irmãos se depenavam e gemiam de agonia e desespero, então Severina via pra fora de casa, e no seu povoado o mesmo acontece, ela recua bate a cabeça, escorrega e cai no asfalto. Antes de perde por total a consciência esta avista a mesma moça de cabelo cor de fogo entre os galhos secos agreste. Dia seguinte ela acorda, esta coberta de sangue intenso. Pega a peixeira que no chão se encontra, pega o cigarro de um cadáver que agoniza no chão, acende nos corpos que queimam entre ferragens o mais seca possível, coloca no buraco de árvore que ali descansa e sai sem saber onde, como, e porque sobreviveu. Mas sabia que isso estava longe de acabar.

valete negro
Enviado por valete negro em 16/07/2011
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