Carece ou não fugir da morte?
A morte é a única coisa certa na vida. Desde o dia em que nascemos, a cada minuto que passa, ficamos mais próximos dela.
João Careceu morria de medo de morrer. Desde que entendeu por gente tinha pavor de velórios, cemitérios e de tudo que tinha alguma ligação com a morte. Nem sequer pronunciava a tal da palavra, pois acreditava que a cada pronuncia a dita cuja dava mais um passo em sua direção. Vivia a procura de benzimentos e rezas que o protegessem da ceifadora implacável.
Tanto fez que conseguiu descobrir o dia e a hora exatos que passaria desta para a melhor. O dia tão temido para João, seria dali a 15 anos. Meio atônito com a notícia recebida, João do Careceu fez uma promessa: o tempo que lhe restava seria utilizado para arrumar alguma solução no sentido de adiar, ou mesmo neutralizar a tal da premonição.
Se a procura pelo sobrenatural já era grande antes do tal do aviso, depois então era que João não parou mais.
Em sua busca arrumou várias simpatias, mantras, trabalhos, rezas brabas e tantas outras coisas do tipo. Muitos lhe afirmaram que se o “benzimento” não funcionasse, ele poderia voltar para reclamar. João só não recorreu a um pacto porque se tinha uma coisa que temia mais que a morte, era os caldeirões do bicho ruim.
O dia marcado se aproximava e nada de João encontrar algo que realmente funcionasse. Já desesperado, na véspera da data prevista, recorreu a um último recurso: raspou a cabeça, deixou sua carteira e documentos e se vestiu como um mendigo. Na rua, se misturou aos sem-teto que por ali perambulavam. “Ninguém o reconheceria, ali no meio de tanta gente igual. Nem a morte seria capaz de identificá-lo”, pensava, enquanto estendia um copo vazio à procura de alguma esmola, tentando imitar os que estavam a sua volta.
João se estalou bem de frente a torre da igreja, de lá poderia avistar o relógio, que media o tempo tão devagar que os minutos pareciam séculos.
De cabeça baixa, percebeu uma sombra se aproximando. Levantou os olhos e viu um homem, vestido de preto. Pensou ser um transeunte qualquer, mas o indivíduo de presença tão marcante e ao mesmo tempo tão sutil, parou diante de João Careceu, estendeu a mão, deixou cair uma moeda no seu copo vazio, e disse: “ Eu tinha um encontro hoje, bem aqui neste lugar, nesta hora. Parece que a pessoa não veio. De qualquer forma, tenho que levar alguém comigo." Disse o homem enquanto virava a cabeça e olhava para os lados, fitou os olhos de João e acrescentou: "Quer saber? Se não tem tu, vai tu mesmo!”
Mais tarde, quem passou pelo local, soube que ali morrera um mendigo, de frio talvez. Indigente, não careceu nem de velório e nem de lápide.