Minha Adorada Criatura
Já fazia algum tempo que havia deixado a vida na cidade. Troquei-a por uma tranquila vida no campo, longe da agitação, do barulho e dos problemas de um grande centro urbano. Um sitiozinho no interior do Paraná parecia ser a solução para a vida estressante que levava.
Assim tudo começou. Umas economias foram investidas na compra da pequena propriedade, na qual escolhi viver sozinho. Ali plantava, criava alguns bichos e, nos momentos de folga, lia histórias de suspense, ou saia caçar na mata junto a meus quatro cachorros americanos, uma antiga paixão que trago desde criança, pois isso muito fazia junto a meu velho pai.
Passado algum tempo, em uma rotineira caçada, aconteceu algo que ainda hoje não compreendo. Enquanto meus cachorros perseguiam o que eu pensava tratar-se de um veado - como na maioria das vezes - adentrei na mata fechada, e a noite era de um céu cheio de nuvens que não deixavam que a bela lua cheia clareasse o cenário o tempo todo. Os cães estavam muito agitados, mais do que de costume, na perseguição ao suposto veado que se embrenhava cada vez mais no coração da mata.
Em determinado momento, acuaram a caça e o alvoroço foi maior ainda, com os cachorros cada vez mais agitados, e me surpreendi quando, chegando ao local, ouvi alguns deles ganindo de maneira a demonstrar medo ou submissão. Logo todos ganiam e uivavam de uma maneira que eu nunca vira antes. Quando me aproximei a uma distância suficiente para perceber o que estava acontecendo, notei que o animal estava acuado junto a uma parede de rochas, aparentemente sem saída. Os cachorros, no entanto, mantinham uma atitude de aparente rendição àquilo que eu pensava ser um veado. Ganiam e uivavam desesperadamente. Normalmente mostravam muita agressividade quando acuavam alguma caça.
Aproximei-me, como fazia de costume, procurando uma distância para o tiro, com a minha velha espingarda 28, e com todo o cuidado para não atingir um dos meus cachorros. Percebi que o animal aparentava tranquilidade, e pareceu-me mesmo um veado, pelo tamanho, por apresentar uma coloração característica dos pelos e pela postura. Era tudo o que eu conseguia ver naquele momento de pouquíssima claridade.
Assim que acionei a lanterna para atirar com segurança, tive uma das maiores surpresas da minha vida: não havia animal nenhum, nem veado, nem gato do mato, nada disso. O que eu via, logo a minha frente, encostada à parede de pedras, era a figura de uma bela mulher, nua e visivelmente assustada. Os cachorros estavam, naquele momento, assim como eu, mudos.
Prestei assistência, tentando protegê-la com o meu casaco, e levei -a para minha casa. Ela não disse uma palavra durante todo o caminho e mesmo dois ou três dias depois, sendo que ficou deitada o tempo todo, apresentando um estado meio que catatônico.
Quando finalmente começou a reagir, disse chamar-se Carolina. Apesar de insistentes perguntas, não consegui saber de onde viera, de quem se tratava afinal, nada...sempre que eu insistia em perguntar algo, ela emudecia. No mais, começamos a conversar sobre várias coisas, ela demonstrava ser muito inteligente, e fazíamos companhia um ao outro. Sondei de forma cautelosa na cidade (que ficava à 20 km do meu sítio) se havia alguma mulher com pelo menos 25 anos desaparecida. Soube de uma, que em nada se parecia com Carolina. Sondei as propriedades vizinhas, e ninguém havia ouvido falar de nada.
Assim, passamos a conviver. O tempo foi passando, e logo a solidão e a carência de ambos foram responsáveis para que passássemos a viver como marido e mulher. Ela me ajudava em qualquer um dos afazeres do sítio, com as plantações e também com a criação. Tivemos muitos momentos bons, por um bom tempo, e eu já nem me preocupava mais em saber de onde viera. Para meus vizinhos, os quais com pouca frequência via (o mais próximo morava à distância de um quilômetro) eu dizia que a conhecera havia alguns anos na cidade e agora havíamos decidido morar juntos.
Numa noite de bela lua cheia e temperatura muito agradável, daquelas que você diz não estar nem frio nem calor, cheguei em casa um pouco mais tarde, e já estava escuro. Senti a falta de Carolina, vasculhei os cômodos, sempre chamando seu nome, mas nada encontrei. Pensei que talvez estivesse lá para o lado da estrebaria.
Então, ouço os cachorros em um estado de excitação extrema, parecia que haviam acuado alguma coisa. Imediatamente pego a espingarda e corro para verificar o motivo do alvoroço. Com a claridade propiciada pela janela que ainda estava aberta consigo ver, junto à estrebaria, o que no início pensei ser um cachorro, mas reconheci como não sendo um dos meus, pois era de uma coloração muito escura, enquanto os meus eram três brancos e um malhado.
Mas era maior do que qualquer um deles, bem maior, e mais peludo também. Estava apoiado em quatro patas e rosnava ferozmente para os cães, que também demostravam muita agressividade. Aproximei-me e fiz mira com a espingarda. Foi quando a criatura voltou a atenção para mim, e tenho a impressão que me olhou dentro dos olhos, um olhar que continha um tanto de cumplicidade, um tanto de intimidade. Congelei e não puxei o gatilho. Por alguns instantes fiquei paralisado, tendo a minha frente a besta que continuava a me olhar dentro da alma.
Foi nesse momento que um dos meus cachorros avançou valentemente em direção à criatura que, num movimento brusco e ágil, moveu uma das patas dianteiras, atingindo o pobre, rasgando-o ao meio como se ele fosse feito de papel. Os outros cães recuaram ganindo. O sangue do infeliz respingou nos demais, manchando também uma parede ao lado deles.
A coisa então ficou de pé, apoiada somente nas patas traseiras, levantou as duas dianteiras - que nesse momento eu poderia chamar de braços - e urrou para o céu, por longos e infindáveis segundos, um urro tão bizarro e aterrador que os cães imediatamente retrocederam, um deles para dentro de casa.
Com extrema agilidade, a criatura pulou por cima da cerca e ganhou a mata, e por alguns momentos ainda ouvi o barulho do mato quebrando, até que houve, por fim, silêncio absoluto.
Hoje vivo nessa pequena cela, na própria delegacia do município, aguardando o que farão comigo. Com certeza serei julgado por algo que não fiz. Sei que alguém suspeitou do sumiço da minha companheira, e começaram a investigar. Eu nem sabia o que dizer, simplesmente que sumira. Mas andaram cavando em minha propriedade, e encontraram um corpo enterrado, já em estado avançado de decomposição, no meio da mata. Dizem ser ela, Carolina. É claro que não , como poderia?
Dos meus animais, incluindo os cachorros, um vizinho hoje toma conta. A casa permanece fechada, assim como essa cela. Dizem que a matei, dizem que a enterrei na mata...mas como poderia, se todas as noites ouço seus urros em meio às árvores que circundam esse lugar?