O ORFANATO DAS ALMAS PERDIDAS-PARTE 3: A CRIANÇA DALUZ
Uma figura estranha vagava a algumas semanas naquela cidade fria do sul do país. Uma mulher vestida com roupas negras, que observava os velhos jogando cartas ou conversando nas praças, as mulheres sentadas nos bancos, ou as crianças brincando, indo ou voltando da escola. Este ícone era a Ceifeira, que tentava encontrar uma alma totalmente pura nas redondezas daquela cidade. Alma que seria levada para a freira Izabela e sua ajudante Iara, para que elas completem a cota de almas levadas à perdição e quitem suas dívidas com Stelón. Porém, a Ceifeira não encontra uma alma totalmente límpida, todas têm algum tipo de mácula. A maioria dos homens possuem algum tipo de promiscuidade em suas mentes; grande parte das mulheres praticam o mexerico ou a inveja; e até mesmo as crianças possuem máculas em suas almas, pois por mais inocentes que possam parecer pensam em algum tipo de violência.
A Ceifeira continua a sua peregrinação, até que se depara com um cartaz que anunciava a busca por uma criança desaparecida. Ela observa os olhos da criança na fotografia estampada no anúncio e percebe pureza na alma daquela criança, pureza que podia se ver refletida em seus olhos. Então a Ceifeira invoca alguns espíritos, que lhe informa o paradeiro do menino. A mulher de vestido negro sai a sua busca, mas quando ela chega na saída da cidade, ela se depara com aquele menino, parado ali, próximo a uma porteira, bem vestido e perfumado, trajando um pequeno terno preto. Ele possuía um semblante pueril, pele branca, cabelos negros bem penteados e olhos castanhos. Ele abre os seus pequenos bracinhos para a Ceifeira, como que pedisse um abraço, aquela mulher misteriosa lhe responde ao pedido gestual e lhe abraça.
A Ceifeira após o abraço contempla o semblante do menino, que lhe confirma a extrema pureza daquele ser, pureza de alma tão grande que a deixa perturbada. Ela, pálida e com voz trêmula, pergunta à criança:
-- Qual é o seu nome? E como você me encontrou?
A criança com voz pausada e tranquila, responde àquele confuso ser:
-- Pode me chamar de Adiel. Eu sou um habitante da luz e sei que você precisava me encontrar, sei que alguém precisa da minha ajuda.
A Ceifeira um pouco confusa, responde à criança:
-- Sim, é verdade. Há duas senhoras, uma delas é freira, que precisam de uma criança como você, para “salvar” um orfanato e as pobres crianças que lá moram.
Adiel dá alguns passos para frente dizendo:
-- Logo estarei no orfanato.
Naquela mesma tarde nublada e fria, com uma claridade turva, aparece no portão do misterioso orfanato aquela criança bem vestida, segurando a sua pequena mala. A freira Izabela vai ao encontro de Adiel, ele com uma formalidade de pessoa adulta, se apresenta:
--Olá religiosa senhora, meu nome é Adiel, e vim te ajudar no orfanato. Uma senhora vestida de negro me informou que você e sua ajudante precisam de alguém igual a mim.
A freira de imediato percebe a pureza da alma de Adiel e ver a oportunidade de completar sua cota e se ver livre da dívida com o seu senhor.
A freira Izabela abre os braços e abraça a criança da luz, mas ao tocar o corpo daquele menino ela sente um enorme desconforto. Porém, logo se consola, pois ela sente que quando entregar aquele garoto para as trevas, se verá livre da dívida com o seu senhor Stelón. A freira fala a Adiel:
-- Venha, vou te mostrar o seu quarto.
Adiel então lhe pergunta:
-- Quando poderei brincar com as outras crianças?
A freira responde ao menino:
-- “Brincadeiras” só amanhã. Agora vou te apresentar à Iara, minha ajudante e depois que você jantar em seu quarto, você irá descansar.
Adiel responde à religiosa:
-- Tudo bem, minha querida senhora.
O dia já estava em seu crepúsculo, a claridade que já era mínima se desfaz. Izabela e Adiel caminham em direção ao casarão. O menino logo ver o cemitério ao lado daquela residência e percebe várias almas perdidas, cada uma parada ali, sobre suas sepulturas, com um brilho parcial em seus rostos tristes. Demonstrando um respeito enorme àquele garoto, cada uma das almas baixa a cabeça em reverência ao ser luminoso que caminha naquelas trevas.
Com a escuridão as suas costas, Adiel e a freira Izabela entram no casarão. A enorme porta se fecha com uma batida forte atrás deles, provocando um estrondoso barulho. A Iara encontra-se parada ali na sala, próximo à escada, à espera daquele menino, que representa a chave para a liberdade. Ao contrário do seu costume, Iara encontra-se bem vestida com trajes negros, maquiada e com brincos nas orelhas, parecia que estava preparada para uma festa. Porém, ela se entristece ao perceber a pureza e o poder nos olhos de Adiel. O menino vai na direção da Iara e lhe dá um forte abraço, e fala bem baixinho aos ouvidos daquela senhora de físico avantajado:
-- Não se preocupe Iara, logo retornarás às profundezas de onde veio.
Então, assustada, Iara fixa os olhos na freira Izabela, que não consegue entender o contexto daquela situação. A freira então diz à Iara:
-- Você já arrumou o quarto do menino?
-- Sim senhora. Responde a perturbada cozinheira.
Aquelas três figuras sobem a escada, duas negras e uma luminosa, com aqueles poderes antagônicos que logo iriam entrar em choque.
As duas senhoras mostram o quarto a Adiel. A freira fala ao menino:
-- Deixe sua mala aqui, e venha comigo. Te mostrarei os outros aposentos. Infelizmente não poderá ver as outras crianças hoje, pois elas já estão deitadas em seus “leitos”.
Enquanto a freira passeia com o menino pelo corredor, Iara tenta abrir a pequena mala do garoto. Mas ela sente uma força muito grande presente naquele quarto, que a deixa fraca e então ela desiste.
Adiel finalmente se encontra só em seu quarto, a noite transcorria em um silêncio absoluto, quando de repente do lado de fora começa a uivar agudamente um forte vento que balança os galhos das árvores sem folhas. Adiel se levanta, da janela do seu quarto ele observa aquele perturbador cemitério. Ele abre a porta do seu quarto, caminha com tranquilos passos pelo corredor, desce calmamente as escadas, estende as suas mãos e sem tocar abre a grande porta a sua frente. Uma forte luz emana do seu corpo e se fortalece cada vez mais à medida que ele se aproxima do cemitério.
Adiel caminha sobre aquele lugar sombrio, neste momento, as almas perdidas estavam todas ali observando aquela figura, que aos seus olhos se mostrava como um anjo de luz, com suas potentes asas e vestes brancas e sem máculas. Ele pára em frente a uma sepultura, onde havia uma lápide com o nome: Jorge Cruz dos Anjos. O anjo estende as mãos e diz:
-- Se levante Jorge, saia das trevas e caminhe para a luz. Pois você clamou por salvação na hora da morte e não ficou desamparado. Imediatamente, uma luz muito forte sai da sepultura do Jorge, a luz ascende cada vez mais alto até desaparecer entre as várias nuvens que cobriam o céu naquela noite. A presença daquele ser celestial atenua o sofrimento daquelas pobres almas.
Ao retornar ao seu quarto, Adiel ouve uma fervorosa discussão, que tem o foco de origem nos aposentos de Iara. Ele escuta uma voz grave e penetrante, era a voz de alguém que parecia estar furioso. Era Stelón, que sentira a falta da alma do jovem Jorge, que havia se libertado dos domínios do cemitério. Stelón gritava com a freira Izabela:
-- Como você pode permitir a entrada de um anjo aqui?
A freira responde com uma voz pálida e trêmula:
-- Meu senhor, eu não sabia que era um anjo, eu imaginei que seria somente uma alma pura. Geralmente eles chegam aqui já fisicamente mortos e o menino me pareceu uma alma humana, traga a nós pela Ceifeira. Stelón fala para a freira, sendo observado pela Iara, que permaneceu em silêncio por todo o tempo da discussão:
-- Vocês só tem esta noite para expulsar este anjo dos meus domínios, vocês sabem muito bem que anjos não podem ser mortos e nem podem ser prisioneiros das trevas. Então, só resta a vocês expulsá-lo daqui.
Após proferir estas palavras, Stelón se converte em uma fumaça negra e desaparece, penetrando nas paredes daquele quarto. A freira Izabela olha para Iara. Era um olhar de quem estava com medo e não sabia exatamente o que fazer. As duas invocam dois espíritos guerreiros, para expulsar o anjo do orfanato. Aquelas duas criaturas medonhas emergem diante das duas mulheres, cada um dos espíritos portando espadas e escudos. Imediatamente e sem proferir uma única palavra, os dois espíritos guerreiros correm na direção do quarto de Adiel, os seus passos emitem sons de trovões e em seus semblantes se percebem um ar de violência e maldade. Eles adentram no quarto onde estava o anjo, a freira Izabela e Iara ficam em uma grande expectativa e ansiedade. De repente, o quarto se converte em uma totalidade de luz. Adiel, em forma de anjo sai pelo corredor, segurando em cada uma das mãos aqueles dois espíritos guerreiros, que já naquele momento se encontravam imóveis e desarmados. A luz que emana do corpo de Adiel aumenta e os dois guerreiros se evaporam em meio a claridade e desaparecem.
A freira Izabela se torna um contexto de medo e fúria. De repente começa a emanar do seu corpo uma fumaça cinzenta, seus olhos se transformam em chamas de fogo, as veias negras se tornam perceptíveis sob sua pele. Em um ato de desespero ela corre em direção ao anjo e ao penetrar em sua luz, se dissolve no espaço. Iara, totalmente trêmula, observa tudo. Ela se sente fraca e fica totalmente imóvel. Neste momento Adiel se converte na imagem de criança, que com passos lentos e tranquilos, caminha na direção daquela senhora obesa, que se encontra encurralada no canto daquele corredor. Ela estava com suas vestes de costume, sujas e salpicadas. Adiel coloca as mãos na cabeça de Iara, que clamava por misericórdia. O garoto lhe diz:
-- Eu te ordeno que volte para as profundezas podres de onde saiu.
De repente, um silêncio absoluto se faz reinar naquele casarão. Ao retornar ao quarto, Adiel se depara com Stelón, um ser enorme e negro. Mas que se encontrava frágil diante da figura do anjo. Stelón fala ao anjo:
-- O que você veio fazer aqui? Por que veio me perturbar?
Adiel o responde:
-- Alguém, uma alma que você queria incluir em sua seleção, fez um clamor sincero por salvação na hora final, e a luz não deixa suas almas desamparadas.
Adiel continua a falar com Stelón:
-- Você sabe Stelón, que já está derrotado e não pode lutar contra mim. Eu te ordeno que retorne para o seu castigo eterno, sob pena de ter seu sofrimento aumentado. E mais, não levará nenhuma alma que está nos domínios do orfanato, pois darei a chance de todas elas se purificarem.
Stelón, com o medo estampado em seu rosto, desaparece da frente do anjo.
O dia já amanhecia, quando um grupo de almas saem em forma de luz, acompanhando aquela criança. Naquele mesmo dia, dois camponeses que passavam pelo local, ver nascer um enorme areal, onde supostamente existia o orfanato.
Vicente Mércio