A Trapezista
Alguns lugares parecem parar no tempo, lugares como a cidade de Biquinha, onde tudo parece andar num ritmo mais lento e até mesmo os cachorros tem preguiça de latir e o ratos vivem a rodear os gatos que estão frequentemente em sono pesado. A pequenina cidade nem sequer era apontada no mapa, motivo pelo qual vez ou outra algum dos dois mil habitantes revoltava-se com o descaso dos cartógrafos e alvoroçava-se em declarar todos os exuberantes atributos de Biquinha, que consistia no belo título de maior produtor estadual de goiabada. Outro trunfo da cidade remonta a um passado remoto, quando era ponto de parada para os viajantes, que naquele tempo viajavam a cavalo ou carroça, e por esse motivo Biquinha também era conhecida como o "Estaleiro do Oeste". Deste legado há apenas um museu caindo aos pedaços com fotos antigas de cavaleiros, companhias oficiais e até mesmo foi registrado a passagem do governador por lá. Desde que estradas foram construídas e os automóveis tornaram-se o principal meio de transporte, Biquinha também virou peça de museu.
Os biquinhenses pareciam estar bem adaptados ao ritmo de vida que sua cidade impunhava-lhes, pois nada de interessante acontecia e não se incomodavam com isso. Os jovens eram criados de forma alheia ao mundo, pois internet lá só era disponível na prefeitura, e por esta razão muito restrita ao público geral, mas ninguém parecia se interessar em estar conectado ao universo digital, pois Biquinha era seu universo. Apesar do marasmo constante, naquele ano algo de novo animou os moradores. Um circo vindo de longe passaria pela cidade, ficaria por dois dias apenas. Nem os habitantes mais antigos se lembravam quando fora a última vez que uma trupe de circo passou por ali. A excitação dos jovens era tamanha, que planejaram assistir aos dois espetáculos. Jair, um rapaz que trabalhava no campo, também reunira o pouco que tinha e decidiu não perder essa oportunidade, afinal, já com seus dezenove anos nem sequer sabia exatamente o que acontecia dentro de um circo.
Escolhido o local, a trupe do Le Monde Bizarre iniciou os trabalhos para erguer a grande lona. Só isto era um espetáculo a parte, centenas de pessoas paravam para olhar aquelas pessoas de circo, pareciam tão diferentes. Havia pessoas muito grandes, outras pequenas, alguns muito fortes, peludos, com tatuagens, de raças diferentes.
- “Óia” Zé, esse pessoal de circo é tudo estranho! Será que o pessoal da cidade grande é tudo assim?! - Perguntou um observador ao outro.
- Sei não Chico, deve ser essas comidas enlatadas e congeladas que esse povo come. Fica tudo assim ó, esquisitão!
Jair estava lá também, a observar aquela estranha gente. Mas em meio a tanta bizarrice ele viu uma figura angelical de admirável beleza, nada comparável ao que ele estava acostumado. Era uma moça, de pele clara e cabelos escuros que escorriam por seus ombros. Tinha o corpo esguio e nitidamente esculpido, pois se notava que tinha braços fortes que contrastava com sua delicadeza. Sua beleza se sobressairia em qualquer lugar, mas ali no meio daquelas pessoas estranhas, ela se sobressaia muito mais, parecia uma adestradora no meio de animais feiosos, uma bela flor brotando no jardim morto. Jair acompanhou todos os movimentos da moça, apenas observando, surpreso ao pensar que tanta beleza assim existia. Tanto observou que não passou despercebido, a moça correspondeu com um sorriso, mas Jair ficara tão sem graça que disfarçou e saiu andando, pois era muito tímido. Foi para casa, e estava ansioso para assistir o espetáculo do Le Monde Bizarre, mas estava ainda mais ansioso por rever aquela bela figura.
Era noite, Jair estava alinhado e embebeu-se com um perfume barato. Após conferir os dentes e o cabelo no espelho ganhou a rua e juntamente com boa parte dos outros moradores, dirigiu-se para o circo, que já se encontrava com as chamativas luzes a piscar, marcando o contorno da lona. Procurou apressar-se queria um bom lugar. Enquanto caminhava nos arredores do circo, olhava para o lado incessantemente, como se estivesse sendo seguido, no entanto estava apenas procurando aquela moça, tinha grande esperança de revê-la em algum lugar. Acomodou-se bem na primeira fileira, estava de cara com o picadeiro, sentiu grande emoção e seu coração pulsou forte quando os tambores soaram, anunciando que o espetáculo começaria.
Os números apresentados levaram mais horror ao inexperiente público do que admiração, a mulher barbada fora considerada um monstro, algumas crianças agarravam-se a seus pais, enquanto os homens e mulheres olhavam com enorme repulsa. O Homem Vulcão, como era chamado, deixou a todos apreensivo quando brincou com o fogo sobre sua pele e cuspiu centelhas, sem falar do Homem de Ferro que arrastou um enorme peso apenas com os dentes. Aquele povo nunca havia visto nada do gênero. Já no final do espetáculo, o apresentador anunciou o último número.
- Senhoras e senhores! Abram bem os olhos, pois agora vocês presenciarão a mais bela mulher, que voará sobre suas cabeças! Segurem seus queixos, pois vem aí... Lady Asa Negra!
Sem perceber que a trapezista já se encontrava no alto, todos se espantaram quando a mulher iniciou suas piruetas e vôos. Usava uma roupa branca, mas com acréscimos de tecido negro esvoaçantes nas costas que representavam suas asas. Jair ficou admirado com a destreza da trapezista, mais admirado ainda ficou quando percebeu que Lady Asa Negra era a bela moça que vira mais cedo. Após o espetáculo, a trapezista olhou novamente para Jair que desta vez criou coragem para retribuir o sorriso. Ao fim do espetáculo, todos os artistas circularam o picadeiro para receber as palmas, e Jair que estava bem próximo, pode ver a musa de perto e de fato era extramente linda. Quando o público se dispersou, Jair tentou encontrá-la, mas sem sucesso. Voltou para casa e não parou um instante de pensar nos sorrisos e olhares trocados, mal dormiu a noite. De manhã era tarde demais, percebera que estava apaixonado. Mas o que uma mulher tão linda ia querer com um chucro lavrador de terra? Pensava Jair. Tentou esquecer, mas era impossível, e quando a noite chegou, foi novamente ao circo para vê-la. Os outros números já haviam perdido toda a graça, só queria ver a trapezista, e com ansiosidade aguardou até o fim. Ficara em êxtase ao ver novamente o número de Lady Asa Negra e mais uma vez trocaram olhares, ela parecia estar correspondendo a sua tímida paquera, criara até coragem para parabenizá-la após o espetáculo como motivo para aproximar-se. E assim o fez, enquanto as pessoas dirigiam-se para fora dos limites do circo, procurou entre os trailers. Encontrou um que trazia na porta os dizeres "Lady Asa Negra". "É aqui mesmo!", pensou respirando fundo e criando coragem para chamá-la. Antes que pudesse bater à porta, ela se abriu de súbito.
- Oi! - Lady Asa Negra apareceu e esboçou um cativante sorriso.
- O... Oi! - Jair ficara pálido com o susto e teve dificuldades em falar.
- O que faz na minha porta?
- Eu... Eu só... Eu...
- Já sei! Veio me parabenizar?
- Eu... É... É isso mesmo! Parabéns!
- Obrigada! Nunca fazem isso, estou muito feliz! Venha, entre um pouco!
Jair espantou-se com o pedido, era bom demais para ser verdade. Entrou meio desajeitado, esbarrando em tudo de tão nervoso que estava.
- Não se preocupe, aqui é bem pequeno, também esbarro em tudo a todo instante - Lady Asa Negra demonstrou ser uma amável anfitriã, tentando amenizar o nítido papelão que Jair estava fazendo.
- Desculpe! Vou tentar não quebrar nada!
- Sente-se.
Ainda desajeitado, Jair tomou assento, era menos perigoso assim. Lady Asa Negra era extremamente simpática, e apesar de Jair não conseguir dar continuidade em uma conversa, ela se encarregara disso e não permitia que aquele silêncio constrangedor que acontece quando se falta assunto estragasse o momento.
Jair parecia hipnotizado com tamanha beleza, não conseguia prestar atenção no que dizia a trapezista, ouviu algo sobre ela ter ficado órfã cedo, de a mãe ter sido trapezista, entre outras coisas. Tão embaralhados ficaram seus pensamentos que a moça teve que parar o que dizia e perguntar "Tudo bem?". Após um sorridente "Sim!", ela continuou a conversa. Havia algo de magnético, enfeitiçador nela, algo poderoso que fazia Jair literalmente perder a cabeça, agora mais do que nunca estava perdidamente apaixonado. Tão forte tornou-se o sentimento, que subitamente pôs-se de pé e declarou-se à moça.
- Lady... Eu... Quero te dizer algo... Tenho que dizer... Eu te amo!
Lady Asa Negra ficara atônita, havia muita sinceridade nas palavras ditas.
- Mas... Como assim?
- Sim, eu te amo! Não sei como, mas te amo! E quero ficar com você!
Ela sorriu, os olhos brilharam, e respondeu:
- Mas eu sou artista e vivo no circo. É impossível ficarmos juntos.
- Eu vou para qualquer lugar que você for!
- Hum... - Lady refletiu por um instante - Faria qualquer coisa para me acompanhar?
- Sim! Sim! Faço qualquer coisa!
- Então temos que encontrar algo que você possa fazer no circo... Precisa de um talento! Venha comigo, vamos ver o que você pode fazer!
Lady Asa Negra segurou Jair pela mão e levou-o para um local atrás da circo, onde era a entrada dos artistas para o picadeiro.
- Vá por aqui e me aguarde lá no picadeiro! - Ordenou a moça.
Jair seguiu sem titubear. Havia pouca luz, mas o picadeiro era visível ao fim. Chegando lá, posicionou-se no meio, por um instante sentiu-se como um grande artista, a visão a partir do picadeiro era bem diferente da visão do público.
- Pronto! Estou aqui! E agora?
Não houve resposta.
- Lady? E agora?
Mais uma vez sem resposta. No entanto, desta vez a fraca luz que havia apagou-se e um negror sepulcral tomou conta do local.
- Tem alguém ai? - Jair tateava no escuro.
Sem aviso algum as luzes se acenderam novamente. Mas para a surpresa de Jair, ele não estava mais sozinho. Estava cercado pelos palhaços do circo, mas eram muitos, tantos que não contou, faziam um círculo a sua volta. Antes fossem engraçados... Esses palhaços tinham todos exatamente o mesmo rosto, e não era um rosto alegre e feliz, mas sim algo deformado, com uma boca enorme, que ficava ainda mais absurda com a maquilagem vermelha que a evidenciava. Os olhos demonstravam ironia, ódio, algo difícil de descrever. E ao invés do clássico nariz vermelho, havia somente duas negras cavidades, como se tivessem extirpado-lhes o nariz. Começaram a gargalhar de forma assustadora e corriam em volta do picadeiro. Em pânico, Jair tentou correr e furar o círculo, no entanto, eles o impediram e com extrema força empurram-no para o centro novamente, fazendo-o ir ao chão. Os palhaços fecharam ainda mais o círculo e sem cerimônias iniciaram uma sessão de espancamento tanto física quanto mental, que ia desde chutes por todo corpo e gritos horrendos e insultos impronunciáveis dados cara a cara, com o nariz de Jair roçando nas cavidades onde deveria ser o nariz daquelas coisas. Isso continuou por mais alguns minutos até as luzes se apagarem e tudo parar de repente. "Estou morto?!", pensou Jair, "Não estou sentindo mais nada...". Como da primeira vez, as luzes acenderam-se de repente, e o mais estranho era que Jair estava de pé, sendo que os palhaços o deixaram caído com severas dores. Embora de pé, e o corpo recomposto, a dor não cessara, diversas partes de seu corpo continuavam a latejar. Não houve sequer tempo para pensar no que estava acontecendo, tempo e espaço pareciam ter perdido totalmente o sentido, e bem a sua frente estava aquele chamado Homem de Ferro, que arrastava toneladas com os dentes.
- Você eu arrasto com um dente só! - Disse o truculento homem avaliando o tamanho de Jair.
- O... O que...?
O homem de ferro movendo-se com velocidade sobre-humana segurou Jair pelo tornozelo e levantou-o como se fosse um boneco qualquer.
- Socorro! Me solta! - Jair tentava de desvencilhar de seu algoz, mas era impossível.
- Veja como meus dentes são fortes!
A grande boca do homem abriu-se, revelando vários dentes feitos de algum tipo de metal. Estes dentes abocanharam o tornozelo de Jair com violência e este urrou de dor e começou a ser arrastado pelo chão, cuspindo a serragem que a todo instante insistia em entrar em sua boca. Foi arrastado como um saco qualquer, enquanto seu tornozelo era triturado pelos dentes metálicos. E mais uma vez as luzes subitamente se apagaram. As dores se acumulavam cada vez mais, e seu corpo novamente jazia sobre o picadeiro.
- O que é isso...? Que loucura é essa...? - As lágrimas rolavam no rosto de Jair.
As luzes se acenderam, mais uma vez a noção de tempo e espaço ficara confusa. Jair percebeu-se de pé, com o corpo restabelecido, nem havia sinal de ferimento no tornozelo, no entanto, as excruciantes dores permaneciam. Um forte calor foi sentido, ao virar-se deu de cara com o chamado Homem Vulcão, cuspindo labaredas em sua direção. Mal seus olhos enxergaram a face ígnea da criatura estranha, seu rosto foi tomado por chamas. A saliva do Homem Vulcão mais parecia querosene e incendiava onde quer que tocasse e não fora diferente com o rosto de Jair e várias partes de seu corpo. Jogou-se ao chão na tentativa de apagar as chamas, rolou sobre a serragem, mas ao invés de apagar o fogo, incendiou o picadeiro, que parecia totalmente inflamável, pois em segundos, Jair encontrou-se tragado por enormes labaredas que reverberavam muitos metros acima. Os gritos de dor e agonia ecoavam pela lona do circo, mas logo as luzes se apagaram e o fogo desapareceu, permanecendo somente a sensação das queimaduras.
- Eu não aguento mais... Não aguento... Cadê você meu amor...?
- Estou aqui! - Ouviu-se a voz de Lady Asa Negra.
- Onde...? Onde...? - Jair estava completamente desorientado.
As luzes se acenderam, Jair agora esperava apreensivo qual seria a próxima surpresa. Notou que não estava mais no picadeiro, olhou em volta e viu-se em cima de uma plataforma de trapezista a muitos e muitos metros do chão. Ficou estático, seus músculos se retesaram, tinha muito medo de altura.
- Não tenha medo meu amor! Estou aqui!
A doce voz de Lady Asa Negra amenizou um pouco o sofrimento atroz que Jair carregava em sua mente, já que para seu corpo, nada tinha para aliviar a dor.
- Me tire daqui, por favor...
- Tenha calma, estou apenas verificando qual é o seu talento...
Ela aproximou-se, até tocar-lhe as costas, e com uma força incompatível com sua aparência lançou-o plataforma afora. Jair mais uma vez gritava de horror, mas em meio ao seu vôo de morte, um trapézio veio em sua direção e quase como por um instinto, agarrou-se à sua única salvação, e de forma desajeitada conseguiu segurar-se, enquanto o trapézio balançava-o como um enorme pêndulo.
- Muito bem! Muito bem! Acho que você tem intimidade com o trapézio. Vamos tentar algo mais complicado! - Lady Asa Negra congratulou Jair.
Lady Asa Negra, como em seu número, voou agarrada em um outro trapézio. Fixou-se a barra pelas pernas, ficando de cabeça para baixo e com os braços livres. Foi de encontro a Jair.
- Vamos fazer um salto duplo!
Ela agarrou-lhe as pernas e o fez largar o trapézio e sem cerimônias arremessou-o ao alto, fazendo-o girar duas vezes, no entanto fora impossível desta vez para Jair agarrar-se ao trapézio, e assim iniciou uma vertiginosa descida até o picadeiro. O som da queda fora abafado pela serragem, mas a dor não fora abafada e sim grandemente multiplicada. Sentia seus ossos quebrados, era impossível permanecer vivo daquela maneira, e enquanto agonizava as luzes se apagaram. Não demorou muito para que novamente as luzes voltassem e Jair encontrou-se novamente na plataforma e mal tivera chance de recuperar-se um mínimo que fosse da queda sofrida momentos atrás.
- Vamos ao segundo número! Vá!!!
A voz de Lady Asa Negra trazia agora os piores sentimentos para Jair, pois ela lançou-o novamente e como da primeira vez, agarrou-se no trapézio, mas tantas dores sentia que não conseguiu segurar e sua viagem rumo ao picadeiro aconteceu novamente. Estatelou-se no chão e mais dores foram somadas àquelas existentes. As luzes se apagaram... Era o fim? Não... Elas se acenderam novamente, e lá estava Jair no alto da plataforma. Fora empurrado novamente, mas desta vez nem sequer tentou agarrar-se ao trapézio, viajou direto para o chão. Não tinha mais forças, coragem ou ânimo para lutar contra aquilo, e deixou-se levar... As dores eram tantas, que já estava se acostumando. Como em um ritual, as luzes apagaram e logo mais acenderam. A sua volta os palhaços macabros apareceram novamente... E assim, tudo acontecia... De novo e de novo... Luzes apagam... Luzes acendem... Jair não retornou para casa naquela noite, na verdade não retornou nunca mais.
Já fazia alguns dias que o circo havia deixado Biquinha e estavam preparando o picadeiro para o espetáculo na próxima cidade. O Le Monde Bizarre era inovador, e sempre tinha uma nova atração e desta vez não fora diferente, produziram a atração mais bizarra de todas, chamavam-na de o Homem Indolor. Em cada espetáculo, repetidamente o novo artista era espancado, mordido, queimado e até mesmo arremessavam-no das plataformas de trapézio. E para o êxtase do público, ele permanecia impávido, sem emitir um único som sequer, sempre voltava a ficar de pé. Alguns diziam que o Homem Indolor não passava de um boneco, outros acreditavam que tudo o que ele sofria eram truques, no entanto, ele era bem real... E ele, somente ele, sabia que tudo aquilo nada tinha de indolor... Mas para o público, viam apenas um jovem de olhar perdido que nunca falava uma única palavra, mas milagrosamente suportava firmemente tudo o que lhe era infligido... E assim, de cidade em cidade o Homem Indolor mostrava seu talento. E vez ou outra, o Le Monde Bizarre aparecia com um novo número.