O Mendigo e o esgoto, ou a sabedoria da sarjeta (O horror da vida real)

Por Ramon Bacelar

BUUURRRRP !!!!

Impulsionado pelo vento vindo da boca de lobo exposta, de odor nauseabundo acentuado pelo intenso calor vespertino, o arroto do esgoto tirou o mendigo de sua siesta sem ceia - uma ausência faminta - obrigando-o a acariciar a pança vazia como se confortasse um carente bichinho de estimação.

-Boçal. – Balançou a cabeça. – Não basta se empanturrar e me acordar, ainda me humilha com essa educação árabe. – Pressionou o estômago. - Que fome meu Deus!

-Árabe? – Perguntou o esgoto.

-Finge que não sabe? – Arqueou as sombrancelhas em questionamento. - É sinal de educação para com os anfitriões, os convidados arrotarem como demonstração de satisfação gastronômica.

-Mas eu não sou seu convidado, muito menos anfitrião! Sou um mero... esgoto.

O mendigo mordeu o lábio inferior enrugando a testa.

-É verdade; pelo contrário, sou um... Intruso? Penetra? – Refletiu antes de continuar. - Não tenho casa, amigos nem família. – Esmurrou o estômago. - É a fome meu caro; ela, sempre Ela, nublando meus julgamentos, embotando meu raciocínio!

- Como deu para perceber, minhas condições não permitem que eu seja lá muito hospitaleiro, mas pode ficar aqui o quanto quiser, pelo menos tenho... – O esgoto pausou. - ...Pelo menos “temos” companhia.

-Obrigado. O odor e umidade nem me incomodam tanto, já fiquei em lugares piores, mas como você mesmo observou, companhia alimenta o espírito e enriquece a alma, mas não enche barriga né? - Quero dizer... A minha. - O som oco preencheu o espaço como o ribombar de um tambor desafinado. - Pelo menos você come.

O esgoto refletiu antes de responder.

-Em teoria sim. Se você considerar sobras de bebida, comida... – Mediu as palavras como se adentrasse um campo minado. - ...líquidos, resíduos e “otras cositas más”, como... re-fei-ções. – Assoviou constrangido.

-O fato é que você está satisfeito, enquanto eu... – Murchou como uma bexiga flácida.

-Você não gostaria de trocar de lugar comigo, além do mais... – Pausou como se engasgasse com a própria saliva - ...Merda de queimação, outro refluxo, quando chega na garganta é uma droga. – Da boca do ralo jorrou um liquido ácido e esbranquiçado.

-É... Pelo menos minha fome não causa azia nem refluxo. – Falou reflexivamente.

-Ainda quer trocar de lugar?- Explodiu em gargalhadas.

-Engraçadinho.

-Com tanto lixo descendo goela abaixo, minha flora intestinal está mais dolorida que o fígado do Zeca Pagodinho... Mais enrugada que saco de velho. – Lamentou.

O mendigo examinou as paredes laterais: uma manta esponjosa de musgo e lodo úmido, entrecortada por erupções fungóides, colorações comatosas e aglomerações de cogumelos de textura leprosa e palidez ártica, engessaram-no momentaneamente em um iceberg de surpresa e espanto.

-Fiiuuuuu... O negócio tá brabo. O cheiro vem daí né?

-É, mas pelo menos “eu” faço refeições diárias. – Respondeu em tom defensivo.

-E de que adianta... Na pior das hipóteses eu... eu...

-Sim?

Silêncio.

-E aí? Vamos continuar remoendo o remoível?

-Conjeturando o conjeturável?

-Pensando o impensável?

-Justificando o injustificável?

-Racionalizando o irracionalizável?

-Eu não.

-Nem eu.

-Estou com sono.

-Eu também.

-Então?

-Então...

ZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZZ...

***

Por volta da meia noite, um baque surdo retirou o mendigo do seu pesadelo de fome, arremessando-o ao Sonho dos Sonhos: Ao lado do ralo, um saco rasgado sorria para seus olhos com uma profusão de frutas frescas, bebidas geladas e frangos assados; por um momento achou se tratar de algum resquício onírico vindo de alguma irrealidade gastronômica , tornado material pela fome, desejo e imaginação.

Olhou, atentou, contemplou, estacou:

“Não pode ser”, tocou.

“Um peito de frango.”, pegou.

“Não acredito.”, cheirou.

“Meu Deus!”, degustou.

“Hummmm!, abocanhou.

“Huuuuuuumm!!”, devorou.

Não sonhou nem idealizou, simplesmente acreditou.

“BUUURRRRPP!!!!”, arrotou.

Mal o eco nauseabundo reverberou, outro som, não menos sonoro e igualmente cavernoso, se fez ser ouvido.

-Que barulho é esse? Tive insônia semana toda! – Explodiu o esgoto.

-Ora, ora... Quem meu amigo? Educação árabe! – Acariciou a pança como um obeso sheik.

-Você... Arrotou? – Pausou . – Mas para arrotar, primeiro ...

-Claro. – Interrompeu. – Frango assado, suculento e quentinho!

-Como?

Olhou para o céu estrelado pela boca de lobo antes de responder.

-Providência divina... Ou terrena.

Silêncio.

-Está com inveja? Franguinho delicioso e agora para rebater frutas frescas e espumante gelado!

-E eu?

-Você? – Assoviou em tom de chacota. – Você olha né? – Gargalhou.

-Nadinha de nada?

-Huuummm... – Refletiu enquanto selecionava as frutas. - Quando terminar de descascar as laranjas e bananas, posso pensar nas cascas...

Antes de concluir, foi acometido por súbitas contorções e dores estomacais que o obrigou a liberar a refeição no ralo em jatos de vômito quente, porém antes que a acidez da bile invadisse sua garganta, um som semelhante a uma sucção rouca vindo do ralo penetrou em seus ouvidos.

O silêncio do silêncio.

-Maravilha irmão.

O mendigo, ofegante e de mãos nos joelhos pelo esforço, não soube o que responder, o esgoto continuou.

-Providência divina, só pode ser. Satisfeitíssimo!

-Como?

-Não basta uma deliciosa refeição líquida fresquinha, ainda por cima se dá o trabalho de servi-la QUENTINHA !!!

Ao ouvir tão lamentável conclusão, o mendigo deitou-se no chão, olhou para o céu com ar questionador, e sem nada entender, sonhou mais um sonho de fome.

FIM

Ramon Bacelar
Enviado por Ramon Bacelar em 18/06/2011
Código do texto: T3042088
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