Atrás do espelho

“Se há espectros que o chamam no fundo de um copo, beba-o e sorria.”

Era solitária a cidade, seu mundo, sua vida. Sempre.

Wendy ia e voltava do trabalho, nada novo, nada aprazível.

E todo santo dia era o mesmo, pendurava a bolsa, ligava a TV e o rádio para preencher o vazio da casa.

E terminava o dia na sua garrafa de conhaque.

Quebrava mais uma vez um copo, todo dia mais um, mas consertá-lo nunca poderia, como não poderia consertar sua alma despedaçada.

Mais um ruído, dessa vez o telefone.

Mel, seu amado ex, pedia que guardasse suas coisas, pois passaria para pegar futuramente.

Ela sabia que era o fim.

Queria crer que ele ligara porque sentira sua falta, queria viver com essa ilusão.

[...]

Na mesa cheia de marcas d’água, sorvia mais um copo.

Com o rosto e olhos inchados.

Por que tudo fora de forma tão intensa e rápida que não pudera manter?

A separação lhe separava em duas.

Outro dia chegou, despertava para começar seu pesadelo de vida, já iniciava o dia com um copo de sua bebida favorita.

- Não vou trabalhar hoje, - decidiu em total desânimo.

De repente, uma voz, um aroma, e parecia que a aura de sua casa não era mais a mesma.

Wendy não se sentia pertencente a esse mundo.

Uma sensação totalmente nova a acometia, irreal.

Uma voz ecoava no corredor:

- Olha como é lindo.

Surpresa ao ouvir aquele timbre, se aproximou do quarto curiosa.

- Tem alguém aqui?

Um som totalmente incipiente se apresentava aos seus ouvidos.

O cheiro era de uma complexidade sem fim, algo refrescante e fortificante que não sentia há muito tempo, que talvez nunca sentira.

Andou pela casa errante procurando aquilo tudo, ansiosa pelo que poderia encontrar.

Será que bebera tanto assim?

Subiu as escadas, virou o corredor.

O som, a voz e o aroma, ficavam mais perto.

Adentrou o quarto, uma enorme borboleta azul pairava perto de sua cama.

Foi então que presenciou, seu grande espelho oval na parede.

Uma linda paisagem estava projetada dentro dele, como se ele abrisse uma porta a outra dimensão.

A glória.

Maravilhada Wendy só pode fita-lo, e nada mais teve coragem de fazer.

Era um lindo lugar, mais palpável que muita imagem de seu passado, mesmo aprisionado no espelho, incrivelmente lindo.

Um riacho, um pomar, uma vegetação de um verde sem fim, lindos animais.

As cores muito mais vivas e surreais como se lá guardasse a vida unicamente.

Flores, as mais raras, pássaros, de todos os tipos, frutas maduras, e...

Uma linda menininha de vestido branco rodado corria de um lado a outro e parou estática, parecia vê-la.

- Ei, venha. Venha comigo.

- Eu?

Ela se sentou na grama, pardais voavam ao seu redor.

- Não quer vir?

Estendeu-lhe a mão, sua pequena mão ultrapassou o espelho chegando até Wendy, que com receio se afastou.

Era possível?

Agora sabia que aquilo não era visão, ou miragem.

A criança voltou-se, ainda com os transparentes olhos azuis fixos nela.

Então tudo se dissipou, o som, as cores, os aromas, até as borboletas que voavam no seu quarto se reduziram a nada.

[...]

Acordava em seu mundo quase preto e branco.

Dia seguinte Wendy foi até uma loja no centro da cidade.

- Pois não? – se ofereceu uma gentil vendedora.

- Oi, gostaria de ver um espelho novo.

- Me acompanhe, temos vários modelos, qual interessa?

- Queria um de parede.

Ao ver os grandes espelhos que a loja oferecia Wendy teve um sobressalto, a cena que presenciara em seu quarto ainda estava viva em sua mente.

Se olhava num imenso espelho quadrado, pensativa, e a visão da menina piscava em sua cabeça como uma interferência repetitiva.

A criança, a cascata, o verde.

Saiu correndo sem rumo.

A vendedora observava sem compreender.

Chegou em casa, tomou café forte, evitou as bebidas.

Cobriu seu espelho com um lençol.

Aquilo tudo era transcendental, mas não queria acreditar que assistia mesmo a outra vida.

Ainda podia ouvir e sentir bem de leve os sentidos de outrora, mas estavam quase desaparecendo por completo.

Adormeceu naturalmente em seu sofá, dessa vez sem o efeito da bebida.

Resolveu não mais pensar em nada daquilo.

Decidiu que deveria esquecer.

Ao pentear seus cabelos sentiu vontade de ficar bela e se arrumar como há muito não o fazia.

Se olhou no espelho, resolveu pôr cor em seu rosto, novas roupas, se embelezar.

Até receber uma ligação de Mel com um prazo para ir buscar seus pertences.

E a dor novamente se alojou.

Ela não esperava que voltassem, mas também não queria aceitar a separação definitiva.

Por que lidar com tudo isso justo agora?

- Por quê?

Voltou à sua velha "amiga" e se afogou.

Caiu no sofá.

Dormiu, sonhou.

Achava-se em frente ao espelho, admirando seu reflexo estranhamente, até que ouviu a doce voz da menininha, baixa, e no entanto nítida.

- Venha. Venha.

Fora de si, ela esmurrou o espelho, sem freio, em vários pedaços.

Ao respirar seu alívio, notou que cada caco do chão refletia o paraíso de sua visão.

Cada pedaço era uma parte do maravilhoso lugar.

E com espanto, notou olhando ao redor que sua casa havia se transformado no tal lugar.

A menina a aguardava do lado da árvore na companhia de um belo homem que ao vê-la sorriu.

- Venha. Ele te espera.

- Wendy.

Suando em bicas acordou.

A respiração retumbante, o olhar parado, o coração palpitava, vazio, de volta a sua casa, sua triste realidade, seu silêncio.

Seu vácuo de existência.

Como era insuportável o existir.

Correu até a cozinha, bebeu, se preencheu. O mesmo ciclo.

Já podia ouvir novamente a menina, os sons, os tons.

Foi até o quarto a galope, tirou o lençol que cobria sua passagem, e tudo estava lá, esperando por ela.

- Venha. Venha.

A linda menina, o rapaz, o pomar, tudo.

A delicada mão da criança ultrapassou o lado de fora do espelho, como um milagre singular.

Estendeu sua mão, pegou no braço da garota que já estava de prontidão, e de uma vez seu corpo atravessou o espelho entrando num túnel de luz, e pairando do outro lado: uma sensação única de felicidade.

Abraçava sua nova família do outro lado, correndo pela vegetação numa ventura plena.

A vizinha a chamou, não tendo resposta entrou e procurou-a pela casa, subindo até seu quarto.

Algo jazia lá.

Entrou em choque ao testemunhar Wendy em estado decomposto, desfigurada, se via um leve sorriso no rosto, o corpo ensanguentado atravessava o espelho todo espatifado, o chão forrado de cacos, restos e sangue.

Finalmente alcançara sua plenitude abrindo mão de sua realidade?

Helena Dalillah
Enviado por Helena Dalillah em 17/06/2011
Reeditado em 09/01/2020
Código do texto: T3039862
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