O Buraco no Cemitério (conto coletivo)
Em homenagem a um grande amigo, ótimo escritor, incrível e inesquecível pessoa, José Carlos Santana, mais conhecido como Andy Dufresne ou Charlie Saints. Amigo, sinto sua falta. Esteja em paz.
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Parte I - Por Andy Dufresne
Meu nome é Mike Saints. Vivi minha infância inteira em um bairro pobre de subúrbio, não dos piores, mas também não se poderia chamar o lugar de “o bairro dos sonhos”.
Dois quarteirões acima de minha casa havia um cemitério. Era um cemitério particular, não muito grande, desses antigos, onde quase todos os jazigos pertencem a famílias moradoras do próprio bairro. Esse cemitério era o meu quintal e o de muitas outras crianças que por ali moravam.
Muitas crianças da minha idade - na época em que tudo ocorreu, eu estava então com 12 anos - teriam medo de freqüentar um cemitério, sobretudo para brincar. Eu e as crianças do meu bairro, Andrew, Lucy, Dinah e Gabe, não temíamos nada ali. O cemitério, para nós, era tão familiar quanto a nossa própria casa.
Minha melhor amiga chamava-se Sarah Gibbs. Claro que eu gostava dela desde sempre, mas ela não sabia e, assim, não correspondia. Para ela, eu era seu amigo, seu irmão. Eu sofria com isso, mas naquela época o que me bastava era ter sua amizade. Pelo menos, podia estar sempre ao seu lado. Nós dois aprontávamos tudo e mais um pouco naquele cemitério. Conhecíamos lugares escondidos que talvez nem mesmo os coveiros soubessem da existência, inventávamos mil tipos de brincadeiras, às vezes matávamos aula e corríamos para nossa “área de lazer”.
Provavelmente, muitas pessoas não acreditarão no meu relato. Eu sei, é um absurdo mesmo. Ás vezes, eu me pergunto se tudo aconteceu realmente. No fundo, quero que tudo não tenha passado de uma horrível invenção da minha mente perturbada. Mesmo porque, muitos anos já se passaram e a lembrança vai se apagando aos poucos. Mas os pesadelos não acabam. Não, eles persistem. Eles são os mortos que voltam para me assombrar.
Por isso resolvi escrever. Escrever torna isso tudo mais fácil. É como um longo desabafo. E, talvez assim, os pesadelos terminem.
***
Mais ou menos em meados de junho daquele ano, no início das férias de inverno, Sarah e eu encontramos o buraco. Isso foi uma coisa mesmo muito absurda e singular porque todo esse tempo ele nunca esteve lá. Digo isso porque conhecia aquele cemitério como a palma da minha mão.
E poderia jurar que aquele maldito buraco nunca esteve lá antes. Não até aquele dia.
Estávamos saindo da escola, no último dia de aula antes das férias. Arrastávamo-nos aos tropeços e empurrões, em meio à confusão normal que acontece todas as vezes que o sinal toca e um punhado de crianças malucas sai correndo à procura de liberdade.
Nosso destino todos os dias ao sair da escola era sempre o mesmo. Nosso “parque de diversões macabro”, como costumávamos chamar o cemitério. Se soubéssemos o que nos aguardava, teríamos com certeza, ignorado nosso hábito de todos os dias e corrido dali a tempo. Mas, não sabíamos. Infelizmente.
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Parte II - Por Asyram
Enquanto brincávamos por lá, eu o vi e mostrei para Sarah. Encoberto por algumas folhas e galhos, lá estava ele. Claro que a curiosidade tomou conta de nós. Um buraco não aparece do nada assim da noite para o dia. Corri até ele, Sarah em meu encalço, a contragosto. Ela não queria ir até lá, estava escrito no seu rosto que aquela idéia não lhe agradava, mas mesmo assim ela foi. “A curiosidade matou o gato, mas a satisfação o trouxe de volta” não é o que dizem?
Cuidadosamente, afastamos os galhos de plantas que escondiam a maior parte dele. Por trás dos ramos, surgiram símbolos gravados numa porta de madeira arranhada, lascada nas beiradas. Forcei-a, meio sem esperança, imaginando que estaria trancada. Mas para nossa surpresa, a porta deu um estalo, abrindo lentamente para o lado de dentro, deixando escapar um cheiro de mofo e repolho estragado. Cheiro de coisas velhas e esquecidas. E de coisas mortas.
Demos um pulo para trás, surpresos com o fato de a porta ter aberto tão facilmente. E aquele cheiro horrível que nos enojou de imediato.
Nós nos entreolhamos e pude ver nos olhos de Sarah o medo misturado à excitação, exatamente a mesma coisa que os meus olhos deviam estar mostrando, uma combinação de terror infantil e curiosidade incontrolável. Andei alguns passos e me abaixei para pegar uma vela que estava acesa junto a um túmulo próximo. Sarah fez a mesma coisa. Não trocamos uma palavra sequer, não me pergunte o porquê. Parecia que estávamos numa espécie de transe.
Rapidamente, voltamos até o buraco, nós nos abaixamos, trocamos um olhar cúmplice e, de mãos dadas, começamos a adentrar aquela escuridão desconhecida.
As velas iluminavam muito pouco as paredes cobertas de um musgo úmido e o cheiro de repolho podre e mofado era mais forte a cada passo que dávamos. Depois de andar um pouco nos deparamos com uma escada de degraus estreitos, então, descemos. E o tempo todo aquele cheiro.
Com o tempo, nossos olhos foram se acostumando com a falta de luz ambiente e a visão parecia ficar mais nítida. Sabíamos que estávamos andando abaixo dos túmulos, raízes, dependuradas, quase tocavam em nossas cabeças.
Chegando ao fim da escada, Sarah apertava forte minha mão. Eu podia escutar naquele silêncio opressivo o meu próprio coração batendo. Não havia nenhum movimento aparente a nossa volta, não sentíamos nenhum deslocamento de ar, absolutamente nada, parecíamos estar no meio do nada. Naquela escuridão, não parecia existir nem mesmo o tempo.
Após o que me pareceu horas andando em linha reta, aquele caminho pelo qual estávamos seguindo se transformava em dois. Ficamos ali por alguns segundos tendo apenas a luz de nossas velas iluminando nossos rostos assustados. Pensei mil vezes em sair dali e mil e uma em seguir em frente.
Sobre os dois caminhos, notei que havia símbolos semelhantes aos que estavam gravados na porta do buraco, sendo que os símbolos da entrada da direita eram diferentes dos da entrada da esquerda.
Sem pensar em nada, puxei Sarah pela mão e segui andando pelo caminho da esquerda.
O caminho ali era bem mais estreito, era nítida a impressão de estarmos descendo ainda mais, como se fosse uma suave ladeira.
O cheiro fétido persistia, cada vez mais nauseabundo, e seguíamos andamos, sem trocar sequer uma palavra, imersos naquela espécie de transe, ou mergulhados nos temores produzidos pela nossa imaginação.
Finalmente chegamos a um tipo de salão circular. O teto do lugar era extremamente alto, o ambiente, enorme. De longe, não conseguimos identificar o que seriam as marcas nas paredes, mas quando nos aproximamos pudemos ver que eram gavetas que continham ossadas. Inúmeras, incontáveis. Fotos antigas de pessoas, há muito tempo já mortas e esquecidas, pendiam das entradas de algumas delas, fitavam-nos com olhares impassíveis. Aquele era um cemitério sob um cemitério.
O ambiente tinha luz própria, uma luz alaranjada que nos dava a sensação de calor, originada Deus sabia de onde. O ar era denso de tão fétido. Nossa respiração estava se tornando difícil, uma sensação de estar respirando dentro de um saco de lixo usado.
Sarah disse, sobressaltando-me:
- Vamos voltar agora. Acho que este lugar é uma imensa catacumba. Não quero mais ficar aqui.
Voltamos pelo mesmo caminho pelo qual viemos o mais rápido que conseguimos andar. Chegamos então ao fim do túnel da esquerda. Voltamos correndo desesperados para achar a porta por onde entramos. Não sei dizer quanto tempo se passou enquanto seguíamos buscando pela porta que era nossa salvação, mas, inexplicavelmente a porta havia sumido.
Eu tinha certeza que ela estava ali, no topo da escada, mas naquele local agora só existia uma parede de concreto. Impossível não termos saída, impossível essa sensação de que muito tempo havia se escoado. Impossível que aquilo estivesse acontecendo com a gente. Mas estava acontecendo!
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Parte III - Por Andhromeda
Meu coração martelava no peito, a vela em minha mão escorria cera quente diretamente sobre o lado do meu dedo indicador. Era uma dor distante, eu a sentia apenas numa parte profunda da mente, toda a minha atenção estava voltada para o fato de estarmos presos no subterrâneo.
Sarah apertava a minha mão livre com força, seus dedos suavam e eu desconfiava que era de puro medo. Ao encará-la, encontrei sombras dançando em seu rosto suave de menina. Seus olhos estavam arregalados, incrédulos.
- Onde está a porta, Mike? – perguntou-me, como se eu soubesse a resposta – Estava bem aqui, não estava?
Estava sim, pensei. Mas não adiantaria nada dizer-lhe isso, ela sabia tão bem quanto eu que coisas muitos estranhas haviam nos atraído para dentro daquele buraco. E se a nossa única saída havia desaparecido, o que poderíamos fazer? Clamar ajuda aos ossos antigos às nossas costas?
- Talvez tenhamos nos desviado do caminho certo sem perceber – a incerteza na minha voz fazia a explicação soar ridícula aos meus próprios ouvidos, mas foi o melhor que consegui na hora -, devemos voltar e continuar procurando.
Sarah encarou-me de cenho franzido, questionando intimamente se eu achava que ela era tonta.
- Isso é impossível – concluiu.
- Sarah...
- Está muito escuro aqui embaixo e você quer continuar procurando a porta que estava aqui? Mike, nós podemos morrer aqui embaixo sem ajuda!
- Sarah, o que você quer que eu faça? Estou com tanto medo quanto você, então temos que fazer o óbvio: vamos voltar, tomar o outro caminho e continuar procurando a saída.
Relutante, Sarah me seguiu através da escuridão que se tornava cada vez mais profunda. De vez em quando, eu a olhava de soslaio e a pegava a morder o lábio inferior. Sabia que ela estava me culpando por tê-la trazido ali e se escapássemos desse lugar em segurança, desconfiava que talvez ela não quisesse mais brincar comigo. Pensar nisso me fez desejar fervorosamente poder sair com ela dali, voltar para a nossa vida normal, na superfície.
A certa altura do caminho, nossos pés não paravam de pisar em coisas que se partiam sob o nosso peso, estalando e nos espantando, fazendo com que nos voltássemos repetidas vezes para averiguar se havia qualquer coisa as nossas costas.
Eu não me lembrava de o chão ser tão cheio dessas coisas que estalavam, na primeira vez em que passamos por ali. A ideia de que estivéssemos perdidos tornava-se, portanto, bem possível.
- Sarah, espere – falei, e ela prontamente acatou, ainda bem – só um minuto.
Eu me abaixei, aproximei a luz bruxuleante da vela o máximo que era possível do chão.
Havia uma porção de ossos de vários tamanhos, caveiras de animais, costelas, ossos que eu não era capaz de identificar, alguns poderiam até ser de cães, ou de gatos, ou de... bem, eu não tinha certeza. Eram esses ossos, muitos secos, que estalavam sob os nossos pés. Ao apanhar um que lembrava uma coxa de galinha descarnada, pude ver quão consumido pelo tempo estava. Podia estar ali embaixo há muitos anos. Apertando o osso entre os dedos, pude parti-lo em três pedacinhos, produzindo dois estalidos simultâneos.
Eu me levantei novamente, limpando as mãos na perna da calça. Sarah também estava usando a luz da vela para iluminar os ossos à nossa volta. Notei que sua mão tremia.
Estaria ela pensando o mesmo que eu? Estaria ela pensando que os donos daqueles ossos provavelmente morreram, há muito tempo, por terem ficado presos ali, como nós?
Seguimos andando. Apenas os ruídos crocantes davam vida àquele túnel medonho.
Quando comecei a achar que jamais encontraríamos a bifurcação, ela surgiu diante de nós como dois olhos imensos e vazios.
- Na última vez – Sarah começou a falar repentinamente, assustando-me – tomamos o caminho da esquerda. Vamos pela direita, então.
Ela deu um passo, puxei sua mão.
- Sarah, espere um pouco.
- Por quê?
Vasculhei o solo em busca de inspiração. Juntei um punhado de pequenos ossos e, depois de pensar durante quase um minuto inteiro, rasguei uma tira da camiseta e pendurei-os, como um pingente horrendo, na beirada do caminho da esquerda, a altura dos meus olhos.
- Pronto – falei -, para sabermos que passamos por aqui. Agora, vamos.
Enveredamos pelo caminho da direita. De volta aquele fedor de repolho podre. Sentia meu estômago se revoltar contra ele.
- Mike – disse Sarah, espremendo os meus frágeis bíceps com dedos que pareciam de aço -, Mike.
- O que foi?
Falávamos baixo, estava muito escuro e a forma urgente e amedrontada com que ela dizia meu nome parecia exigir discrição.
- Mike, você ouviu isso?
Sua pergunta me causou um terror indescritível. Senti o pânico, subindo do fundo das minhas entranhas e ameaçando parar na garganta.
Tudo bem, disse a mim mesmo, nós não precisamos disso agora...
- Não ouvi nada. O que você acha que ouviu, Sarah?
Ela me encarou, insegura, olhou para trás, testa quase encostando na minha, gotinhas de suor brotavam em seu nariz.
- Eu não sei, Mike... parece que era... o som dos ossos se quebrando, igual a quando nós caminhamos sobre eles.
Tentei ouvir o som que ela descrevia.
Nada. Nenhum ruído. Mas, era óbvio que se houvesse alguma coisa atrás de nós, ela faria de tudo para não ser descoberta.
Balancei a cabeça, descartando o pensamento.
- Vamos, Sarah, pode ter sido impressão sua.
Ela concordou com a cabeça, apegando-se a essa possibilidade como um náufrago se apega a um pedaço de madeira à deriva.
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Parte IV - Por AG Hilde
Nos filmes da TV, a iluminação de uma vela sempre era suficiente, caso o filme assim desejasse. Em outros momentos, nas películas de terror, ela não iluminava direito nem o nariz da vítima a ser devorada por uma criatura do pântano ou das profundezas. Era em uma profundeza que nos encontrávamos agora, e a nossa parca iluminação parecia seguir à risca os momentos mais terríveis que já eu vira na telinha. As inconcebíveis sombras eram amplificadas muito além do raio de luz das pequena chamas, enquanto o caminho, este sim, parecia se esconder de propósito.
Não demorou para que percebêssemos que o caminho escolhido não era o mesmo de antes. Nem para notarmos que isso não chegava a ser tão terrível assim, porque não queríamos mesmo voltar para aquele amontoado de morte antiga. Isso poderia significar duas coisas distintas. Uma, que tínhamos nos perdido. E outra, que os túneis que se ligavam a superfície através do buraco no cemitério mudavam de forma. Por mais absurdo que isso soasse, e por mais que não tenhamos sequer tocado no assunto um com o outro, ambos devíamos estar pensando a mesma coisa, ao mesmo tempo, quando vimos aquele pilar de jade no meio de uma concavidade que parecia uma sala dentro da escuridão.
- Sarah, olhe ali – disse eu, estacando o passo e quase apagando a luz da vela com minha excitação. – O que é aquilo?
Ela demorou a responder, não porque não tinha ouvido a pergunta, mas porque ela mesma não sabia o que era. Um grande pilar verde, que brilhava insistentemente contra a fraca luz, e que seria muito bonito se não fossem as diversas figuras gravadas nele, entalhadas, com aparência de antigas. – Eu não sei, Mike... Parece pedra preciosa, veja como brilha.
- Me assusta – suspirei, encerrando o assunto por hora. Realmente, era assustador. Os entalhes eram muito antigos, salpicados por terra que caíra do teto e por teias de aranha com diversos seres mortos embrulhados. Não vimos aranhas, no entanto.
Cada imagem parecia de uma época distinta. Havia carrancas com olhos esbugalhados, que pareciam mover-se sozinhos, alguns sinais dispostos lado a lado, com pássaros rústicos, cobras e homens de perfil. Parecia com escrita egípcia, isso eu sabia bem, ainda que não pudesse ler. Mais abaixo, perto do chão, desenhos de pessoas em forma de palitinhos, como as crianças mais novas desenhavam. Essas pessoas pareciam estar cercadas por ursos, ou algo do tipo. Sarah sussurrou que vira algo parecido nos livros de História da escola, na parte onde se falava sobre as primeiras tribos humanas. Mais acima, até onde a luz da vela podia chegar, imagens menos surradas pelo tempo, textos talvez, escritos em uma língua com letras que nenhum dos dois conhecia.
- Acho que devemos ir em frente, Sarah – disse, não querendo ficar mais nem um segundo perto daquele totem estranho – Há uma continuação do corredor adiante.
- Tá bem. Mas, Mike... – Sarah apertava meu braço com força, olhos fixos na obra de jade – Parece que cada um desses desenhos foi feito por alguém diferente. Veja como são. Cada um de um jeito. Me ocorreu que, talvez... só, talvez... várias pessoas já tenham passado por aqui, em épocas diferentes. Veja, aquilo parece pré-histórico – apontou para a base do pilar. – Será que não estavam querendo dizer alguma coisa? E estes outros, não são iguais aos que vimos na porta do buraco?
- Eu não sei e não quero saber agora. Só quero sair daqui antes que a vela se apague. Por favor, Sarah, vamos?
- Tá bem...
Em silêncio, caminhamos em direção à passagem que tínhamos avistado, contornando com cuidado o pilar de jade, evitando a todo custo encostar nele. Sarah olhava para trás obsessivamente, sempre lembrando do som que ouvira antes. O som de pisadas sobre ossos antigos. O som de alguém nos seguindo. Se soubesse o que era paranóia, teria certeza então que era isso o que sentia. O silêncio, no entanto, era absoluto, provando que, ou não havia mesmo nada nos seguindo, ou que naquele corredor em especial não havia nada no chão que evidenciasse um perseguidor. Era um pensamento que me deixava ainda mais nervoso do que antes.
Fui eu quem, vários minutos depois, avistei uma escada na distância. Era uma escada apertada, de degraus pequenos, mas que poderia ser uma saída. Gritei para Sarah me seguir e corri até lá com passos largos. A vela se apagou, mas não me importei com isso. Havia luz vindo da parte superior da escada. Luz do sol. Liberdade, finalmente.
Subi cada degrau como se fosse feito de brasa. Podia sentir a brisa fresca em meu rosto. Havia mesmo uma porta lá em cima, e por suas frestas eu divisava inclusive os contornos macios das nuvens no céu. Abri a porta com um estrondo, e respirei o ar puro tão forte que meus pulmões até doeram. Sorri, gritei e pulei. Afinal, havíamos apenas nos perdido. Não havia nada de sobrenatural, nem cavernas que mudavam de forma, nem criaturas nos seguindo na escuridão. Apenas crianças perdidas num buraco onde não deviam ter entrado.
Olhei em volta e vi o mesmo cemitério de sempre, o mesmo “parque de diversões macabro”. De longe, vinha o som de risos das crianças, nossos amigos que deviam estar brincando lá naquela tarde, sem saber o sufoco pelo qual nós dois havíamos passado sob o cemitério. Olhei para Sarah e percebi que ela não estava ali comigo. Eu queria tê-la visto naquele momento, risonha, respirando aliviada. Mas ela não estava ali. Em lugar nenhum. A luz do sol que penetrava pela porta ia até quase o início da escada, lá em baixo, mas nenhum sinal da minha amiga.
Chamei por seu nome. Chamei várias vezes. Não houve resposta, além do próprio eco de minha voz. Chamei por ajuda, mas ninguém apareceu. Era como se eu estivesse num cenário de teatro, como se aquela paisagem tão familiar fosse uma brincadeira.
Chorei, ainda chamando por minha amiga. Se ela não aparecesse, eu teria que voltar a entrar naquele lugar horrível. E se eu não conseguisse mais sair? Ficaríamos os dois presos pra sempre? E se ela tivesse se perdido, ou sido capturada, e eu entrasse lá e não a encontrasse? Sem vela, sem luz, sem minha amiga. Mas eu não podia abandoná-la. Ela podia só ter torcido o pé, e estar agora mesmo lá em baixo, com dores, precisando de mim. De minha ajuda.
Entrei novamente no buraco. Respirei fundo, de terror e receio. No fundo, parecia que eu sabia que não conseguiria voltar por aquela mesma porta. E quando ela se fechou atrás de mim, com um som que também lembrava antigos filmes de terror da TV, fechei os olhos e rezei.
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Parte V - Por Asyram
De olhos bem fechados, terminei minha oração. Quando os abri, a escuridão era completa. Desci os degraus estreitos da escada, pé ante pé, com o coração aos saltos. Quando não havia mais degraus, apenas o terreno acidentado do interior do buraco, escutei aquele riso baixinho. Achei que tivesse sido imaginação, pois minha mente assustada podia estar me pregando peças e, no fundo, era isso o que eu desejava. Mas quem sabe não seria Sarah?
- Sarah! – gritei...- SARAH!
Nada. Só que não era minha imaginação. Mais distante agora, novamente aquele mesmo riso, baixinho, contido. E passos. Sim, eram passos! Mas quem quer fosse estava se afastando em direção a sala do totem de jade.
Segui em frente, me arrastando sob aquela escuridão infernal, tateando pela parede para não cair, tentando me guiar somente pelo persistente cheiro de repolho podre. Tropecei em alguma coisa que estava no chão e me estatelei. Minha cabeça acertou em cheio um pedregulho e acho que perdi os sentidos por alguns minutos. Quando abri os olhos novamente, estava enxergando com mais clareza. A luminosidade era bem fraca, de uma cor avermelhada, a escuridão não era mais completa como antes. Podia divisar uma claridade rubra vindo do corredor em frente, o mesmo por onde Sarah e eu havíamos passado minutos antes, o qual terminava na sala do totem. Olhei ao redor e nem sinal dela.
Levantei esfregando a cabeça dolorida e fui em frente, tomando o cuidado de me atentar ao menor ruído. O riso desapareceu, o som de passos também. O silêncio era total, opressivo.
Finalmente, cheguei à sala do totem. Não pude me conter e soltei um grito de surpresa, medo e choque. Havia alguém, parado, de pé ao lado do totem (que passara do verde-jade ao vermelho-sangue). A princípio só pude divisar uma figura enorme com um manto negro sobre as costas e um capuz cobrindo seu rosto. Era extremamente alto e fedia muito. Era dele que se desprendia todo aquele odor de repolho podre. Seu rosto, oculto sob o capuz, era indecifrável. De mãos dadas com essa coisa, encarando-me com um olhar frio, estava Sarah. Era ela, e, ao mesmo tempo, não era. Não a mesma Sarah que entrou comigo naquele buraco. Não. Seu rosto ainda era o mesmo, seu corpo também, mas havia algo errado com ela. Seus olhos me observavam com indiferença. A boca, no entanto, exibia um sorriso hediondo de escárnio. Quando ela falou, sua respiração desprendeu um ar fétido que pude sentir mesmo a distancia. Sua voz era sem inflexão, como a de um robô.
- Mike? Achei a saída. Shankar me mostrou. Venha até aqui, Mike. Deixe que ele mostre a saída para você também e ficaremos juntos. Não é isso o que você sempre quis? Que ficássemos juntos para sempre?
Enquanto Sarah falava, a figura levantou um dos braços de onde pendia uma mão descarnada e podre. A outra mão continuava segurando a de Sarah. Levantou o capuz, mostrando finalmente seu rosto, se é que se podia chamar aquilo de rosto. É bem difícil descrever o que vi com palavras. Era o rosto de um defunto morto há muito tempo que ia sendo devorado por vermes bem diante dos meus olhos. A pele desprendia, coberta por feridas, como as de um leproso, e a boca exibia dentes podres. Um enxame de insetos repulsivos voava ao redor da cabeça. Alguns desses insetos caiam pelo chão. A única coisa que tinha vida naquele ser repulsivo eram os olhos fundos e penetrantes. Eles brilhavam com astúcia e conhecimento milenar.
Aquele insuportável cheiro de podridão se desprendia de cada movimento seu e enquanto ele me olhava, senti várias sensações diversas e conflitantes, todas ao mesmo tempo: lembranças agradáveis e algumas insuportáveis, felicidade intensa, dor excruciante, alegria, saudade, amor, medo, tristeza, mágoa, todo tipo de sentimento bom e ruim passou por minha mente num torvelinho de imagens que quase me enlouqueceu. Queria sair dali, mas meus pés pareciam pregados no solo. Tentei correr, mas não conseguia mexer sequer um dedo. Queria gritar, mas o som não saía.
Enquanto isso, Sarah continuava entoando a sua ladainha:
-Venha até aqui Mike, aproxime-se mais. Sabe o que eu descobri Mike? Que quero ficar com você para sempre! – Seu sorriso se abriu mais ainda e ela olhou com o que lembrava carinho para o ser nojento ao seu lado - Shankar me ajudou a perceber isso. Gosto de você, Mike, e para ficarmos juntos, basta que você se aproxime mais um pouco! Tudo que você tem a fazer é tocar no monumento maldito!
Sim, o totem. Meus olhos desviaram a muito custo de Sarah e da criatura e pousaram no totem. Notei que sua cor ardente, pulsante, brilhava num fulgor vermelho, e seu núcleo era claro o bastante para que se visse o que havia lá dentro. Olhando com mais atenção, consegui ver o que pareciam ser rostos humanos, todos me fitando com olhar de súplica, com expressões disformes e contorcidas de dor e desespero. Eram almas. Nesse momento, tive plena certeza de que eram as almas das pessoas que se perderam ali antes de mim, talvez séculos antes desse pesadelo acontecer comigo. E estavam aprisionadas lá dentro, desde muito tempo atrás.
Quando consegui despregar os olhos daqueles rostos flutuantes e miseráveis, Sarah me fitava com aquele sorriso debochado, esticando as mãos em minha direção. Sua voz agora era doce e convidativa.
Eu não queria ir. Mas, fui. Quando me dei conta estava andando calmamente na direção daquelas mãos estendias e daquele olhar terrível, ao mesmo tempo, atrativo. O que restava da minha mente sã tentava me alertar, gritando para que eu voltasse, fosse embora, corresse dali o mais rápido possível. Muito vagamente, notei minhas mãos se esticando na direção das de Sarah, imundas com fragmentos da carne podre de Shankar. E quando meus dedos tocaram os dela tudo ficou escuro. Não vi mais nada. Apaguei.
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Parte VI (Final) - Por AG Hilde
Quando meus olhos tornaram a se abrir, oito anos haviam se passado. Não me perguntem como, eu não sei. Segundo minha família, fiquei desaparecido por boa parte deste tempo, e depois fui encontrado em uma cidadezinha do interior por um lavrador que quase arrancou minha cabeça fora com uma enxada. Eu estava nu, mais velho e sem lembranças, comendo um rato ainda vivo, e o homem me bateu muito antes de perceber que eu precisava de ajuda. Não me lembro disso também.
Acordei em um hospital antigo e claro, com paredes frias e iluminação indireta. Não sabia se era dia ou noite, nem minha própria identidade. Tudo o que pude fazer foi gritar o nome de Sarah, e depois gritar de dor ao perceber que meus músculos estavam bastante atrofiados, meu corpo estava fraco e magro, e vários tubos se conectavam a mim, tanto intravenosos quanto por meu nariz.
Voltei para casa algumas semanas depois. Todas as minhas lembranças eram infantis, apesar de eu não o ser mais. Meus pais estavam velhos, tristes. A casa havia se tornado um santuário para mim mesmo, com velhas fotos (que para mim eram recentes), medalhas, roupas. Meu pai, principalmente, havia se tornado um homem doente, seus olhos não brilhavam mais, e até o dia de sua morte eu não o vi sorrir novamente. Minha mãe, por outro lado, sorria sempre, mas era um sorriso desesperado, como aqueles que se tenta dar para aliviar o sofrimento de alguém que perdeu uma perna num acidente, e que sempre vem acompanhado com um “Tudo vai ficar bem”. Eu só compreendi aquele sorriso quando finalmente, vários dias depois, lembrei quem era a tal Sarah que eu havia chamado no hospital.
Foi como um estalo. Como perceber que esqueceu a sua carteira cheia de dinheiro em um ponto de ônibus, quando você já está dentro dele, indo em outra direção. Quase engasguei com a emoção que aflorou em meu coração. Onde estava Sarah?
Perguntei para minha mãe, mas tudo o que ela respondeu foi um longo e agudo suspiro de pesar, e então chorou tanto que eu desisti dela. Perguntei para o que havia sobrado de meu pai, e ele disse que isso era algo que eu teria que descobrir por mim mesmo, porque ele não sabia dizer. Fiquei irado. Parti com meu corpo fraco pela cidade, em busca de respostas, e me surpreendi em perceber que já não conhecia mais ninguém, e que ninguém me conhecia. Onde estaria Louis, Andrew, Gabe, Lucy, Dinah e todos os meus amigos? E, pelo amor de Deus, onde estaria Sarah?
Corri para a casa dela, e sorri aliviado quando vi que era ainda a mesma casa, do mesmo jeito. Claro, onde mais ela estaria? Em casa! Se eu havia me perdido, torcia para que ela não, e que estivesse bem. Toquei a campainha. Uma mulher gorda apareceu na porta, segundos depois, com uma cara de degradação tão grande que quase saí correndo. Não conseguia me lembrar se aquela ali era a mãe de Sarah. Não parecia com o que eu me lembrava dela, mas de qualquer forma, aquela obesa não parecia com nenhum ser humano que eu gostaria de guardar na memória. Arrisquei:
- Sra. Gibbs? Desculpe, é a sra Gibbs?
- Sim, quem é você? – grunhiu ela, me medindo de cima à baixo
- Meu nome é Mike – disse sorrindo, achando que, afinal, aquela era mesmo a mãe de Sarah – Talvez a senhora se lembre de mim. Sou amigo da Sarah. Ela está?
- Que brincadeira é essa, seu idiota? – cuspiu a gorda, vindo em minha direção – Acha que pode vir até aqui brincar assim comigo? Pois eu posso ir até aí e quebrar essa sua cara ossuda!
- Mas... por quê? Eu não sei o que quer dizer? Onde está Sarah?
- A porra da cidade inteira sabe que Sarah desapareceu há muitos anos atrás! E a porra da cidade inteira sabe que a mãe dela, minha irmã, se matou pouco tempo depois, louca de pedra, dizendo que havia visto a filha em pesadelos! Está nos jornais! Fez sua pesquisa antes de vir me tomar o tempo, ou é apenas um imbecil qualquer?
Eu recuei. Cambaleei e quase caí no chão ao colidir com latas de lixo na frente da casa. A gorda, a tia de Sarah, continuava a esbravejar, ofendendo-me com palavras que eu não conhecia. Mas eu não a ouvia mais. Sarah também havia desaparecido! Agora eu lembrava. O buraco. A criatura. O totem de jade alimentado por almas em tormento. Agora eu lembrava tudo.
Saí correndo e senti um chinelo passar raspando ao lado de meu rosto. Corri ainda mais, não queria apanhar da gorda. Senti o desespero tomar meu corpo, minhas pernas amoleceram, minha pressão deve ter caído. Mas continuei correndo, e corri mais ainda quando comecei a me sentir cansado. Não podia parar. Se para todos oito anos haviam se passado, para mim, aquela situação toda não parecia fazer nem 2 dias. Devia ser um pesadelo. Como alguém perde oito anos de sua vida assim? E onde estava Sarah durante este tempo todo? Sarah era uma menina linda. Andando desorientada por aí, pode ter sido vítima de um estuprador. Oh, Deus!
Avistei o cemitério de um lugar onde ele não podia ser visto antes, na minha época. Aparentemente ele havia sido aumentado. Entrei pelo portão novo e corri para o lado antigo, onde eu antes brincava com meus amigos, o parque de diversões macabro. Estava tudo diferente. Não havia mais covas no chão cobertas com placas, e sim enormes jazigos de cimento, edificações da morte, com placas em suas paredes e fotos antigas penduradas entre o limo e a sujeira. Ainda assim eu conhecia aquele lugar como a palma de minha mão, e consegui encontrar o caminho até o buraco.
Quando cheguei, caí no chão de surpresa. Havia um enorme buraco ali. Maior do que aquele que eu lembrava. Este, porém, era a entrada de um jazigo muito grande, com portões de ferro, que estavam abertos naquele momento. O cheiro que saía de lá de dentro era terrível. Olhei em volta. Tremi. No topo do jazigo, a inscrição entalhada no cimento dizia “Família Gibbs”, e em baixo, fotos da mãe e do pai de Sarah, e então a foto dela mesma. Olhei para as datas. Sarah havia sido considerada como morta há oito anos antes. Sua mãe e seu pai, alguns meses depois. Ambos no mesmo dia.
Ajoelhei-me diante do jazigo aberto, e independente do cheiro, chorei como uma criança. O que havia acontecido com Sarah? Minha melhor amiga, meu amor. Meu único amor.
A noite caída em minhas costas, e senti meus joelhos protestarem contra o tempo que passei ali chorando. Horas. Novamente as mãos do tempo se fechavam sobre mim sem que eu percebesse. Limpei o rosto na camiseta e pensei em voltar para casa. Mas então, ao olhar novamente para o buraco, mudei de ideia. E se Sarah ainda estivesse ali? Viva? Talvez como eu, sem memórias, perdida, comendo animais vivos, mas viva. Radiosa com seus 20 anos, precisando apenas de banho e descanso para voltar a ser bela como eu lembrava.
Porém, antes de entrar no buraco, tão repentinamente quanto um raio, o mundo ficou sem cor. Cinza. Gritei assustado, mas de minha boca nenhum som saiu. Pude ouvir, no entanto, algumas risadinhas por perto. Risadas infantis. Olhei para os lados e apenas um segundo depois percebi que o cemitério havia voltado a ser o que era no passado. Ao menos, naquela versão acinzentada de minhas memórias. Ao longe, pude ver três meninos correndo em minha direção. Sorri aliviado. Apesar de não terem cor, eram crianças, como eu ainda me sentia, e talvez eles pudessem me ajudar. Chamei-os, mas eles me ignoraram. Chamei de novo, nada. Correram até mim e pararam na frente do buraco, cuja porta de madeira, pendendo nas dobradiças, parecia tão ou mais velha do que eu me lembrava. Olhei-os nos olhos, e novamente fui tomado de pânico e terror quando percebi que um dos garotos era eu mesmo.
O outro era Gabe. Gritei seu nome, mas ele não me ouviu. Era como se eu não estivesse ali. A minha versão desbotada, o Eu-Cinza, disse para os outros:
- Vamos, entrem aí. Quero mostrar pra vocês o que tem lá embaixo. Sarah está lá. Entrem, entrem!
Gritei em protesto. Entrar no buraco? Porque eu estava fazendo aquilo com Gabe, meu amigo? Quem era aquele “eu”?
Os meninos entraram, mas o Eu-Cinza não. Vi seus olhos, e tremi ao perceber que eram olhos estranhos, vazios como os de Sarah, no buraco. O Eu-Cinza sorriu, fechou a porta antiga, entalhada com inscrições, deixando os garotos trancados no buraco escuro. Pude ouvir gritos. Gritos de crianças e gritos desumanos, de o que parecia um animal enfurecido, ou uma besta do inferno.
Então, um novo flash, a cena mudou. O Eu-Cinza estava ali novamente, diante do buraco, dessa vez com duas meninas. Lucy e Dinah. Estavam mais velhas do que eu me lembrava, e o Ele também estava. Tinha, talvez, 14, 15 anos. E beijava Lucy com intensidade, enquanto Dinah esfregava-se em suas intimidades. Se eu havia sumido por oito anos, como eu estava ali? Como as meninas não se preocuparam em avisar a todos que eu estava vivo? E porque eu não me recordava em nada daquela que fora provavelmente uma pequena orgia?
Eu-Cinza levantou a blusa de Lucy e lambeu-lhe os seios firmes e pequenos. Dinah, de joelhos no chão, abriu suas calças e começou a se deliciar com um pênis jovem e ereto na sua boca, de forma que não parecia ser a primeira vez que fazia aquilo. Fiquei mais horrorizado do que constrangido, gaguejei alguma coisa, mas não era capaz de produzir palavras que fizessem sentido. Fiquei apenas olhando enquanto meu eu maléfico e depravado transava com as garotas no gramado diante do buraco. Também fiquei apenas observando quando ele as convidou para descer ali, que Sarah as estava esperando. Já que estavam transando em trio, porque não convidá-la também? Afinal ficaria tudo entre amigos mesmo. As meninas toparam, e entraram no buraco. Novamente, o Ele não desceu, fechou a porta e a sinfonia desgraçada de gritos de terror começou.
Flash. Senti-me tonto. Lá estava o Eu, talvez com 18 anos, com a barba por fazer, sorridente em seu casaco de couro coberto com grãos de terra, cabelo puxado sobre o crânio. De um lado, uma versão mais velha de Andrew, e do outro, a sra. Gibbs, a irmã da gorda, a mãe de Sarah. Sra. Gibbs chorava copiosamente enquanto Andrew segurava sua mão com força. Senti ali uma ligação íntima, um elo. Andrew estava tendo um caso com a mãe de sua amiga de infância. Para mim, era óbvio. A mulher chorava o desaparecimento da filha, o que deve ter gerado uma crise em seu casamento; fragilizada, ela encontrou conforto nos braços de um jovem amante. Fiquei estupefato diante dessa descoberta, mas continuei vendo a cena sem poder reagir. Eu-Cinza abriu as portas do jazigo – sim, agora o buraco já havia se transformado no atual monumento de pedra – e apontou para dentro, dizendo:
- Ela está lá.
Pude ouvir então, de dentro do buraco, uma doce voz de menina:
- Mamãe! – chamou a voz de Sarah, provocando em mim um arrepio sobrenatural -Mamãe, socorro!
Gritei para que a Sra. Gibbs não seguisse aquela voz, mas foi inútil. Andrew a seguiu. Os portões de ferro se fecharam e o meu mundo dissolveu-se em lágrimas infernais.
Eu-cinza olhou para mim, percebi, aterrorizado, que ele podia me ver. Ele sorriu e o flash desapareceu.
Voltei ao mundo colorido e escurecido pela noite, ao cemitério que havia mudado tanto desde que estive ali pela última vez. Ou desde a vez que me lembrava de ter estado diante daquele templo maldito.
Psicólogos haviam tentado me tratar. Psiquiatras, idem. Dizem que passei várias horas gritando pela cidade que eu havia matado Sarah e sua mãe, e que havia matado todos os meus amigos que sumiram, um a um, nos anos seguintes ao meu próprio desaparecimento. Hoje faz exatamente cinco anos que estou internado nesta instituição para doentes mentais. Hoje faz treze anos que vi Sarah pela última vez. Muitas pessoas não acreditarão no meu relato. Eu sei, é um absurdo mesmo. Muitos anos já se passaram e a lembrança vai se apagando aos poucos. Mas os pesadelos não acabam. Não. Eles persistem. E sei, por Deus, sei que Sarah ainda está lá no buraco. Tanto quanto sei que meus amigos, a Sra. Gibbs e mais um sem-número de almas, também estão por lá, presos naquele maldito totem. Esperando por mim.
E, como Sarah disse, ficarei com ela para sempre. Agora, revendo os fatos que escrevi, tenho certeza que ficarei.
*** Este conto foi escrito por 4 escritores, sendo 3 delas do RL. Obrigada AG Hilde e Andrômeda por me ajudarem a terminar este conto, ficou maravilhoso, vocês são ótimas.
Pra você, Andy.