A Prova
Por Ramon Bacelar
Asfixiada pela ansiedade e expectativa da eterna espera, Júlia agora expressava seu alívio e momentânea satisfação na forma de um sorriso e de um aceleramento das batidas cardíacas que pareciam prenunciar mudanças substanciais.
Com desvelada expectativa colocou a pesada encomenda postal em cima da mesa, suspirou e só quando tocou um papel alvo de textura rugosa, teve consciência da realidade à sua frente. Abriu a carta:
Rio de Janeiro-RJ 17-05-10
Amor,
Hoje consigo respirar, meditar e tomar coragem para lhe escrever. Os últimos dias foram de tormentosa angústia, mas também de reflexões e conclusões. Os acontecimentos dos últimos meses não apenas me serviram como confirmação do caráter essencialmente imprevisível da natureza e comportamento humano, mas também como um prenúncio de mudanças cuja natureza parecem sinalizar dias melhores e talvez felicidades duradouras. Não deixo de reconhecer minha (não tão pequena) parcela de culpa no que aconteceu e nem inteiramente me desvencilhar da responsabilidade do que vou relatar. Do meu relacionamento com ela você já sabe, mas das conseqüências de tão tumultuada relação...muito pouco.
Se hoje tenho um pouco de paz de espírito, é justamente pela imutável certeza em minha mente: eu não a matei. Pelo menos não no sentido estrito da palavra. Melhor seria dizer que... não tenho definição, as palavras não encompassam a beleza, nobreza e grandiosidade do meu ato. O que eu fiz foi convidá-la para conversar no meu apartamento, proposta que ela prontamente recusou, mas lhe prometi que seria a última vez: sou um homem de palavra.
Sentada na ponta do sofá próxima à porta, degustava o vinho à medida que imperceptivelmente esmorecia.
Comecei pelos cabelos. Melhor, em firmes puxões fui o arrancando em mechas a medida que seu coro cabeludo ganhava vida com o vermelho rubro; ao mesmo tempo sua dormência, somada a ata presa à sua boca, emitia sonoridades semelhantes a um gato enfermo. Recolhi as mechas e fiz uma trança semelhante a uma corda de alpinista; enrolei-a em meu pescoço para testar sua firmeza e como um pêndulo embriagado e desconexo apresentei o resultado às suas retinas que responderam com o súbito engrandecimento do círculo negro. Coloquei-a ao lado do seu delicado pescoço, transformando-a momentâneamente numa Rapunzel desamparada; talvez para adiar aquilo que não deveria acontecer, ou criar uma enganadora noção de uma criatura frágil e indefesa a meu lado, uma pessoa cujo sorriso nada mais era que o reflexo do seu ser interior.
Quase adormecida, despertei-a do seu devaneio onírico com delicados furos de canivete nas unhas do pé: a intenção não era lhe provocar dor intensa (sou uma pessoa de ações moderadas), mas a trajetória de suas lágrimas em sua face de traços finos pareciam indicar algo... minha capacidade de auto-expressão por vezes me abandona.
Com a ata agora ensopada de baba e dor, os olhos como duas piscinas transbordantes, ela balançava a cabeça num gesto de piedade e compaixão, ela... piedade e compaixão...
Peguei a trança, enrolei-a no pulso; o líquido salgado, agora envernizando sua face com um transparente oleoso, em suas profundezas, escondiam criaturas brancas cujos sorrisos me lembraram do caráter essencialmente enganador de toda superfície: ela, puro sorriso, meiguice, lágrimas e... superfície.
Com fúria incontida desenhei em seu pescoço cada fio de cabelo e curvatura de sua trança, meu ódio e frustação traduzidos em linhas, traços e escoriações vermelho-roxo em cujo delineamento pareciam desenhar o mapa de nossa tortuosa existência. Em seu sorriso forçado e olhos vítreos enxerguei pela primeira vez sua honestidade emocional: espírito e superfície por esta vez em perfeita comunhão. Senti minhas mãos perderem a força ao mesmo tempo que seu corpo murchava como um balão sem gás.
Só tive forças de pegar o canivete e lhe enviar a prova do meu amor neste pequeno, porém pesado pacote de papel pardo.
Eu te amo. M.K.
FIM