O diamante fatídico

Que fique bem claro desde já que Giovanni Rocco, vulgo Apolo, não era um ladrãozinho qualquer. Isso não. Especializado em furto de pedras preciosas, era capaz de avaliar um diamante assim que batia os olhos, calculando com precisão o grau de pureza, o requinte da lapidação e, principalmente, seu valor no mercado negro. Ele próprio, Apolo, era uma figura imponente: alto, rosto aristocrático, cabelos grisalhos, cintura fina, bíceps de boxeador – e mais bronzeado que um surfista. Cuidava das mãos com manicure de Paris, da massagem facial com uma especialista de Mônaco, usava ternos italianos, sapatos de cromo alemão, gravatas Hermès e relógio Patek Phillippe. Cosmopolita, Apolo hospedava-se em hotéis cinco estrelas ao redor do mundo, às vezes solicitando à sofisticadas agências de acompanhantes uma mulher de beleza clássica, possuidora de todos os atributos necessários: fluência em vários idiomas, espirituosa, culta, bem-humorada e conhecedora das mais escabrosas posições sexuais do Kama Sutra.
Isso posto, vamos ao que interessa. Naquela manhã de segunda-feira, Apolo acordou com uma irritante dorzinha de dente, olhou-se no espelho de boca aberta e, desalentado, descobriu uma pequena cárie no molar esquerdo. Para nós, pobre mortais, o assunto seria resolvido com uma simples cápsula de analgésico – mas esse não era o caso de Apolo. Meticuloso com tudo, era capaz de discutir horas com o gerente da lavanderia se uma de suas camisas de seda fosse entregue faltando um botão, era homem para debater calorosamente com o tintureiro se o vinco de suas calças não estivesse perfeito como uma equação matemática – podemos então imaginar as cobranças que ele fazia a si mesmo em se tratando da própria saúde, ainda que fosse uma cárie ordinária perdida nos recônditos da boca. Como tinha passagem comprada no Aeroporto Internacional Tom Jobim para viajar ainda naquela noite para Bruxelas, Apolo decidiu fazer tratamento bucal logo pela manhã. Nem tomou o desjejum, foi direto à gerência do hotel e movimentou meio mundo para que se descobrisse qual seria a melhor clínica odontológica do Rio de Janeiro. Demorou um pouco, mas o pessoal deu conta do recado. De posse do endereço, Apolo desceu ao estacionamento do hotel, entrou no seu BMW alugado e dirigiu-se para o bairro das Laranjeiras.

Na clínica odontológica havia três pessoas à espera de atendimento: um homem gordo de chapéu de feltro surrado e botas de cano alto; uma jovem senhora grávida e uma adolescente com aparelho nos dentes. Apolo aguardou ali, sentado numa das muitas cadeiras estofadas, tendo que suportar uma enviesada história do homem de chapéu a respeito dos direitos de usucapião numa faixa de terra que continha uma nascente de água, uma história que não interessava exceto pela complexidade jurídica envolvendo um pé de jequitibá com quarenta anos de idade. Finalmente a porta do consultório foi aberta e o dentista a segurou para dar passagem a uma senhora idosa naufragada em jóias – o pó de arroz cozinhava nas pregas das rugas e o batom vermelho-sangue aplicado nos lábios estava tão saturado que escorria pelos cantos da boca. A velha e o dentista despediram-se com amplos sorrisos – e foi nesse instante que Apolo viu o diamante de inacreditável cintilação incrustado na dentadura postiça da mulher. Apolo esqueceu-se da dorzinha inconveniente provocada pela cárie, esqueceu-se do que viera fazer naquele lugar, esqueceu-se de tudo, só tinha olhos para a pedra fulgurante. Sua mente em segundos mergulhou em cálculos matemáticos, avaliando com precisão o quanto aquele diamante renderia no mercado paralelo. O fascínio era tão grande que a velha entendeu mal o brilho ensandecido nos olhos de Apolo. Sorriu-lhe, coquete, extasiada com a possibilidade de um envolvimento amoroso com o homem mais belo que jamais tinha visto em sua longuíssima vida. Com a segurança e altivez dos muito ricos, a velha veio em direção a Apolo, estendeu a mão:
– Bom dia, eu me chamo Laurita.
Apolo levantou-se, curvou-se reverenciosamente e, pegando a mão da mulher, beijou-a delicadamente.
– Muito prazer. Eu sou o Giovanni. Alguns me chamam de Apolo.
– Que apelido mais apropriado! – ela exclamou e, por breve momento, seu rosto ganhou uma tonalidade rósea, como se estivesse naquele momento sendo operado um milagre de rejuvenescimento. Apolo dobrou o corpanzil e segredou ao ouvido de Laurita que o fazendeiro ali ao lado estava aporrinhando-lhe a paciência, será que ela não poderia ficar sentada com ele até que o dentista o chamasse? Laurita ficou deliciada, acenou vigorosamente com a cabeça. Acomodaram-se lado a lado nas cadeiras, Apolo muniu-se de paciência profissional e se dispôs a escutar a história da milionária a respeito da dentadura – a falta absurda de altura e espessura nos rebordos alveolares nas mandíbulas e maxilas impediu-a de enxertos ósseos que possibilitassem implantes dentais, e, já que tinha mesmo que usar dentes postiços, então que fosse alguma coisa de assombrar o mundo. Daí o fabuloso diamante na dentadura para deixar claro que o dinheiro podia embelezar a vida de muitas e variadas formas. Apolo, por sua vez, contou as patacoadas de sempre, dessa vez sacando de sua cornucópia de invencionices a mirabolante história de parcerias financeiras com alguns príncipes da Arábia Saudita. Era uma história difícil de engolir, se Laurita estivesse disposta a usar o raciocínio lógico, mas o diabo é que ela achava maravilhoso ser enganada com tanto requinte por aquele homem encantador. Quando Apolo finalmente foi chamado para adentrar o consultório, deixou a esperá-lo uma Laurita completamente enfeitiçada.

Laurita dispensou o motorista particular e tomou assento ao lado de Apolo no BMW, foram a uma delicatessen, comeram docinhos finos, beberam algumas taças de vinho, ela totalmente envolvida pelo charme de Apolo que, com ciência e profundidade, discorria sobre música erudita, árias fabulosas, esbanjava conhecimento em literatura russa, francesa, inglesa e espanhola, dissertava sobre a poesia, contava aventuras de poetas como Byron, Baudelaire, Ibn Arabi, Li Shang-yin, Walt Whitman, Maiakovski, Gunnar Harding, Eeva Kilpi, Lautréamont, Mari Kasiwagi, Rilke, entre outros. Quando viu que Laurita estava completamente seduzida, Apolo sugeriu que procurassem um cantinho discreto onde pudessem consumir-se um no corpo do outro – ela teria algum local com essa característica? Com olhos radiantes, sorriso entontecido de felicidade, Laurita não pensou muito, sugerindo que sua casa de campo seria o lugar ideal. Naquela época do ano não havia nem mesmo empregados cuidando da propriedade. Fez questão de salientar que era um ambiente muito aprazível, com uma cabana rústica, ar perfumado pela natureza, um lago piscoso e despensa abarrotada de alimentos não perecíveis. Poderiam sair naquele momento e em duas horas estariam chegando à residência campestre; depois do amorzinho – essa foi a expressão de Laurita: depois do amorzinho –, fartar-se-iam com uma saudável refeição que ela própria faria. – Eu sou uma excelente cozinheira, viu? – exclamou com entusiasmo infantil.
– Perfeito! – disse Apolo.

Apolo, até por uma questão de princípios, primeiro deu o sonhado prazer sexual a Laurita. Amaram-se na cama ampla coberta com lençóis limpos que a mulher fez questão de comprar durante a pequena viagem – amaram-se sem muitas delicadezas, mas com as apuradas técnicas de Apolo que faziam chegar ao gozo até as mais insensíveis profissionais do sexo. Laurita chegava ao terceiro gozo consecutivo quando as manoplas de Apolo abarcaram-lhe o pescoço, e num aperto viril, definitivo, deu cabo à sua vida. Laurita morreu gemendo, num misto de êxtase e terror – uma morte limpa, rápida, quase sem crueldade. Apolo tirou a fronha do travesseiro e recolheu as joias que a mulher colocara sobre a penteadeira: anéis de topázio e turquesa; brincos de safira; pulseiras compostas de pedras como ágata, água marinha, apolifilite, carnolina e dioptásio; colar de esmeraldas e rubis alternados. Feito isso, alcançou o paletó aos pés da cama, pegou do bolso interno o lenço de cambraia perfumado e retirou cuidadosamente a dentadura da boca de Laurita. Envolveu-a no lenço, colocou tudo sobre a penteadeira e começou a vestir a cueca. Então ouviu um ruído macabro, um trec-trec-trec muito estranho. Poderia ser – mas não era – o barulho de um pica-pau procurando vermes nas entranhas dos arbustos lá fora. O som tinha lá a sua semelhança, era seco, nervoso, ritmado, mas, repito, não tinha nada a ver com pica-paus. O ruído era interno, estava ali, no quarto. Os olhos de Apolo pousaram na penteadeira. E viram a dentadura tentando se desvencilhar do lenço de cambraia. Abria e fechava-se metodicamente ao ritmo do trec-trec-trec. O lenço soltou-se e a lúgubre dentadura ficou ali, sorrindo para Apolo. As duas partes, a de cima e a de baixo, pareciam estar unidas na parte de trás por alguma mola invisível. Pela mente de Apolo acorreram imagens de castanholas de dançarinas flamencas acompanhando sapateado, ostras se alimentando no fundo do mar, pregadores de roupa estalando nas mãos de crianças. Era isso. A dentadura mastigava furiosamente. Trec-trec-trec. E assim, de repente, a dentadura saltou da penteadeira – como se fosse um animal vivo: uma rã acrobata, um sapo capturando libélulas, um leopardo pulando nas costas de um antílope – e veio grudar-se na veia jugular de Apolo. Ele deu um grito ao sentir a dentada penetrar no pescoço, levou as duas mãos nas próteses amaldiçoadas e tentou arrancá-las. Lutou furiosamente, obstinadamente e, quando deu por si, havia arrancado um pedaço do pescoço, um grande pedaço que saiu grudado nos dentes assassinos. E o sangue espirrou vivo, avermelhando o lençol alvo, as paredes rústicas, o chão de ladrilho quadriculado. Em menos de cinco minutos Apolo perdeu um terço dos cinco litros e meio de sangue de um corpo humano. Sentiu as forças se esvaindo – caiu em cima do corpo nu de Laurita. Três dias depois um pescador solitário passou pela cabana, sentiu o cheiro de putrefação, olhou pela janela, viu os dois corpos e tratou de chamar as autoridades.