Role Playing Game

- Você sabe que horas começa? – perguntou uma moça, aparentando não mais do que dezessete anos, usando uma maquiagem pesada, e roupas inteiramente negras.

- Disseram, que deveríamos estar aqui ás nove – respondeu o rapaz, que usava um sobretudo e uma camisa carmesim – já deveriam estar aqui, estão atrasados.

- Sabe ás vezes acho que você se preocupa demais com a pontualidade, deveríamos ter vindo mais tarde. Alias, só estou aqui porque alguém insistiu muito...

- Você disse que queria aprender a jogar, e estamos aqui. Se vai começar a reclamar, da próxima vez você faz a sua ficha sozinha.

- Você não me disse que iríamos a um cemitério, ainda mais esse aqui – sentiu um arrepio percorrer o seu corpo, não gostava de cemitérios – que de consolação, não tem nada. Eu mudaria o nome para desolação.

- Por favor, fique quieta, se não os guardas irão nos ver. – se esgueiravam pelas sepulturas.

- Estou com fome, quando o live terminar iremos ao Macdonalds?

- Iremos se calar a boquinha irmãzinha. – disse o irmão mais velho, já impaciente pelo atraso dos amigos, que a cada quinze dias combinavam o encontro para jogar, dessa vez, escolheram um local um pouco mais ousado.

Ao longe avistaram um homem que caminhava entre as lápides, usando uma lanterna que lhes ofuscava a visão.

- Quem esta ai? Identifique-se! – percorria os corredores a procura da voz que ali estava.

- Fique quieta... – o irmão sussurrou, tapando os lábios da menina. Olhou ao redor e havia uma cripta esquecida, da qual o musgo já cobria as paredes. A porta feita de algum tipo de metal estava entreaberta. Arrastou a irmã para dentro, e fechou. A lamina de luz aproximava conforme os passos do policial, estava próximo demais, os dois jovens prenderam a respiração, e os olhos da menina estavam arregalados, afinal, o que seus pais iriam pensar se fossem pegos em um cemitério, sendo que o irmão havia dito que iriam ao cinema, iria ser uma noite longa, com muitos sermões para ouvir. E tudo começaria com um simples – Quando tinha a sua idade, tinha mais responsabilidade..., o discurso não mudava, independente da ordem das palavras, o teor do discurso paterno era o sempre o mesmo.

Teriam de sair daquela situação o mais rápido possível, se não quisessem que aquele guarda noturno descobri-se seu paradeiro. Ouviu-se um crac, os pés se moviam entre algo pegajoso em algumas partes, a menina pediu a Deus que não fosse um defunto. Seu pé, havia se afundado em uma tampa de madeira, o concreto que cobria a sepultura havia rachado, e a perna mergulhava até o tornozelo na escuridão. Com as mãos nos lábios, ela abafou um grito agudo. O rapaz pegou um isqueiro e iluminou o interior da cripta, tentou disfarçar o olhar de horror, quando a luz tímida do fogo iluminou um cadáver em decomposição, úmido com a boca escancarada, exibindo a fileira de dentes pontiagudos e brancos, no peito uma estaca velha estava presa e as mãos do morto a seguravam com força. Os olhos inexistentes, eram apenas buracos negros, o nariz reduzido a apenas duas pequenas aberturas ressecadas. Ele evitou que sua irmã o olha-se, seria melhor assim. Pois provavelmente o grito de horror da menina seria ouvido a quarteirões de distância, e assim seu esconderijo seria revelado.

- Não olhe, esta bem, faça o que eu mandar e não olhe. – tentava disfarçar o nervosismo em sua própria voz, estava assustado mas não queria que ela notasse.

- Oh, meu Deus... o que é isso? Diga que não é um... – não queria dizer, apenas absorvia o odor quente que subia até as suas narinas, o suor escorria pela testa lisa e as mãos tremulas agarravam com força o casaco do seu irmão.

- Não olhe, confie em mim, Ana.- puxou devagar o tornozelo da menina, que suprimiu um grito de dor. A perna estava ferida, com muitos arranhões no tornozelo, alguns com pequenas gotas de sangue. – Fique ai, não se mexa – teria de leva-la a um médico, pois o inchaço já era visível. – Teremos de ir ao pronto socorro, sua perna esta inchada.

- O que vamos contar pro pai e pra mãe, como vamos explicar isso? – apoiava um dos braços do pescoço do irmão, enquanto seu rosto permanecia na direção contraria de onde seu pé estava, não queria olhar.

- Direi que você caiu na rua, pronto... – ele parou para observar mais de perto o cadáver, notou que os caninos eram grandes e pontudos demais para um ser humano normal. Sentiu uma vontade de puxar a estaca cravada no coração do morto, esticou a mão e segurou com força a madeira úmida, a retirou devagar enquanto ouvia o som gosmento de carne em decomposição.

- O que é isso, meu Deus – olhava para o morto com fascínio, desejando que aquilo fosse apenas mais um corpo pútrido, e não de um morto vivo adormecido, afinal de contas, aquilo não existia, era fato. Em um impulso inconsciente, Ana se virou, pousando os olhos lacrimosos sobre o corpo, os músculos se enrijeceram, e um grito agudo e cortante explodiu em sua garganta, ecoando para quem pudesse ouvir.

Logo o guarda estava diante deles, com a lanterna em punho. Esses malditos adolescentes. Pensou. Antes de ouvir os sussurros, estava tranquilamente em sua cabine, agora estava a ligar para os pais daqueles dois, uma adolescente chorosa de maquiagem escura e borrada, e um rapazinho com cara de assustado. Os encontrou caminhando pelas lápides, fugindo de algo.

- O que estavam fazendo!? – tentava demonstrar autoridade em sua voz, mas no fundo não se importava, já não era a primeira vez que adolescentes faziam visitas noturnas sem autorização.

- No..nossos amigos, iríamos jogar RPG, e ai... – tentava se explicar o rapaz, mas não importava, pois para ele aquela sigla tinha a ver com alguma coisa de fisioterapia para velhos.

- Tem um corpo lá... – disse a menina.

- Você esta em um cemitério, é claro que aqui há corpos – respondeu.

- Um corpo com uma estaca, uma estaca cravada no peito – disse enxugando as lágrimas negras que lhe ardiam os olhos. – nós vimos...

O guarda sem demonstrar boa vontade foi até o lugar indicado, iluminou a sepultura, mas para a surpresa de todos, estava vazia.

- Não pode ser, estava ai...a gente viu! – disse o rapaz.

- Vocês estão tirando uma com a minha cara! – por um momento ele quase acreditou naquela brincadeira, pelas expressões de medo dos dois – Eu tenho mais o que fazer – não ele não tinha, provavelmente ficaria a noite toda ´´lendo`` revistas pornográficas – Vou ligar para os pais de vocês, quero os dois fora!...

- Mas...mas – antes de completar a frase, já estavam sendo guiados ao empurrões para a sala de segurança.

E a noite terminou, com os pais dos irmãos na porta do cemitério, a mãe aborrecida e preocupada e o pai muito mais aborrecido do que preocupado. Provavelmente o sermão da noite, seria lembrado por gerações. Quando o carro partiu, o guarda retornou a seu trabalho, caminhou ouvindo apenas os seus passos no chão, sem ninguém para incomoda-lo.

Enquanto cantarolava uma música qualquer com assovios, sentiu um vento gélido a envolver as suas pernas, os passos que ouvia agora se multiplicavam, e ele sabia que não estava sozinho. Deve ser o vento, imaginou. Mas ouviu algo se arrastar, um som de folhas secas que percorriam o chão de pedra. Quando se virou, seus olhos encontraram os olhos vazios da criatura que estendia as mãos em sua direção. As narinas se moviam como se farejassem algo, quando o encontrou caminhou em sua direção.

E na noite eterna, escura e sombria, ouvi-se um grito de horror a rasgar o silêncio dos mortos.

Taiane Gonçalves Dias
Enviado por Taiane Gonçalves Dias em 31/05/2011
Código do texto: T3006281
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