A Lata
“Maravilhosa!” - pensava Antenor, diante da viúva Loranei, o olhar indiscretamente pousado nos seios fartos que teimavam em exibir-se no decote do vestido negro. Difícil concentrar-se na documentação que ela lhe mostrava para o inventário do marido, morto há algumas semanas, enquanto seu perfume se espalhava por todo o escritório.
Quando ela se despediu, Antenor deu uma desculpa para permanecer sentado, ao invés de acompanhá-la até a porta, constrangido por uma indisfarçável ereção.
Naquela noite, permaneceu insone, fantasiando possuí-la de todas as formas imagináveis.
No dia seguinte, inventou um pretexto para tornar a vê-la, uma assinatura a menos. No outro dia também. E no seguinte.
A bela mulher parecia divertir-se com este assédio e com a criatividade dele em encontrar desculpas para procurá-la, conquanto negasse a pretenção de envolver-se com alguém em viuvez tão recente. A cada negativa dela mais excitado ele ficava e, ao cabo de um ano, estavam casados.
Foram tempos de êxtase para ele... Felícia, este era seu nome, realizou todas as suas fantasias, imagináveis e inimagináveis. Dona de um apetite voraz, era impossível acreditar que aquela mulher pudesse ter vivido tantos anos com o velho, decrépito e doente senhor Nicanor e Antenor começou a suspeitar da fidelidade dela ao de cujos. E, embora ela sempre parecesse sinceramente pesarosa à memória dele, recusava-se a alongar qualquer tentativa de diálogo sobre o assunto, agravando ainda mais as suspeitas do marido.
Com o passar dos anos, o vigor de Felícia mantinha-se o mesmo, enquanto, em Antenor, o fogo já começava a se arrefecer. Para piorar, enquanto ele via no espelho, as marcas do tempo sulcarem-lhe a pele e branquear-lhe os cabelos, ela permanecia tão linda e fresca como quando entrou em sua sala pela primeira vez. Ainda que ela continuasse dedicada a ele, amorosa e gentil, ele já se corroía na certeza de também carregar na testa uma frondosa galhada. Antenor passou a vigiá-la, segui-la e vasculhar suas coisas à procura de provas da traição. Numa dessas suas incursões, observou que um dos armários dela tinha um engenhoso mecanismo de fundo falso e, ao abri-lo, encontrou uma velha lata amarela, meio arranhada e com alguns amassados, os delicados desenhos que a ornavam já muito gastos e esmaecidos.
- Enfim, você a encontrou... - disse a esposa, surpreendendo-o.
Ela se aproximou. Tomou-lhe a lata das mãos e a recolocou no armário, cuidadosamente, fechando o compartimento em seguida.
- Agora, peço-lhe que a deixe aqui e jamais pense em abri-la.
- Mas, afinal, o que é isso? - perguntou ele.
- Nunca se perguntou por que eu continuo jovem?
- Sim! Claro! E o que tem a...
- A lata! Guarda nosso tempo...
- Guarda nosso tempo? Mas como, se eu estou envelhecendo tão rapidamente?
- Ela guarda os meus dias já vividos, enquanto guarda os seus por viver.
- E, enquanto eu envelheço dois anos em um, você permanece...
- Sim!
- E como paramos isso?
- Quando você morrer...
- Ah! Não! Isso é que não! - disse ele, irritado, empurrando-a para o lado.
Abriu novamente o armário, pegou a lata.
- Não faça isso! - ela implorou.
Ele fez. Abriu a lata, ansioso por ver os dias dela e dele retornarem aos seus devidos lugares.
- Nããããão! - ela gritou, cobrindo o rosto com as mãos.
De repente, ele se deu conta. Quantos anos ela realmente teria? Certamente, mais de cem, talvez duzentos, se considerasse a cadeia possessória da maioria dos imóveis que compunham seu patrimônio...
Tentou fechar novamente a lata, mas lhe era impossível, as mãos completamente sem forças para isso... Olhou para elas e observou, horrorizado, que elas se pareciam cada vez mais com tecido putrefato. Felícia disse, em meio a uma tétrica gargalhada:
- O tempo pertence a quem abre a lata, seu tolo!
Viu-se, no espelho, a pele morta desmanchando-se como se já tivesse vivido...
- Quinhentos e quarenta e três anos, sete meses e cinco dias... Todos seus! - ouviu ainda, antes de desaparecer numa mísera camada de pó, que ela recolheu à velha lata amarela.
Diante de uma chorosa Felícia, o inspetor Ednardo tentava se conter. “Maravilhosa!” - pensava, o olhar indiscretamente pousado nos seios fartos que teimavam em exibir-se no decote do vestido vermelho. Difícil concentrar-se nas fotos que ela lhe mostrava, do marido desaparecido há dois dias, enquanto seu perfume espalhava-se pela delegacia. Mais difícil ainda acreditar que uma mulher daquelas pudesse ter vivido tanto tempo ao lado daquele velho decrépito.
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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Na Velha Lata Amarela
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