Elisabeth
Nuvens negras se avolumavam no horizonte. Hugo olhou à volta, à procura de abrigo. O vento soprava forte, uivando. Ao longe, numa região abandonada do horizonte, parecia haver uma casa. Talvez conseguisse chegar a tempo, se corresse. Amaldiçoou a mochila, que pesava nas costas. Os tênis também estavam gastos na sola, dificultando a corrida.
Atrapalhado pelo cabelo esvoaçante, ele olhou para trás: as nuvens compactas continuavam avançando como uma nave gigantesca, pronta para pousar. Houve um silêncio só quebrado pela respiração ofegante e pelo trotar da corrida . A natureza permaneceu assim, muda, até que começassem a cair os primeiros pingos de chuva.
Hugo já estava parcialmente molhado quando alcançou a varanda do casarão antigo. Encostou ofegante em uma das vigas que sustentavam o teto. A madeira rangeu. Ele respirou fundo, inspirando pelas narinas e soltando pela boca. Fez isso até que o coração diminuísse as batidas. Só depois entrou na casa.
O casarão devia ter sido construído há bem mais de um século. Talvez dois. Incrivelmente, podia-se observar ainda alguns móveis não destruídos pelo tempo. Viu uma pintura , um retrato oval pendurado na parede de uma das salas. Representava uma mulher incrivelmente branca, de uma beleza angelical. Tinha lábios pálidos e olhos de morta. Teria ficado horas lá, observando o retrato, se não tivesse necessidades mais preeminentes. Tinha fome.
Andando com cuidado, temeroso de que o chão pudesse ceder com seus passos, Hugo percorreu vários cômodos até chegar à cozinha . Havia um fogão à lenha no compartimento. Examinou-o. No meio da poeira e das telhas de aranhas achou um livro. Tinha uma parte da capa e da folha de rosto queimados, mas o miolo se conservara quase que completamente intacto. As paginas, num papel grosso, não ultrapassavam 50 e a maior parte ainda estava em branco, como pôde verificar ao acender um fósforo. Em todo caso, era providencial. O papel viria bem a calhar na confecção da fogueira.
Hugo recolheu alguns restos de madeira dos móveis e pôs ao lado do fogão. Desfez alguns, os mais podres, com um canivete. Arrancou algumas paginas do livro. Amassou o papel e rodeou-o de pequenos gravetos. Inflamou-os rapidamente com um fósforo que tirou da mochila. Continuou arrancado paginas e alimentando o fogo até que ele se tornasse forte.
Lá fora a chuva continuava. Raios tremendos iluminavam a cozinha através da janela de madeira destroçada. Hugo retirou da mochila uma raiz de mandioca, descascou-a e colocou sobre o fogo. Durante dias aquilo havia sido seu único alimento, desde que roubara as raízes numa plantação de beira de estrada. Enquanto esperava que a mandioca assasse, sentou numa cadeira. Foi quando seus olhos deram com o livro. Observou que não havia mexido na parte manuscrita. Assim, pegou-o, afim de se distrair enquanto esperava. Como já percebera antes, apenas algumas poucas páginas estavam escrita, numa letra inconstante.
Leu :
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"Conheci Elizabeth enquanto estudava na Europa . Fora-me apresentada por uns amigos. Encantei-me com ela. Sua pele era de uma brancura indizível. Tinhas cabelos negros, olhos da mesma cor e era muito magra. Mas, ah, que bela e que misteriosa que era! Ver seus lábios brancos se abrindo era um deleite para poucos. Pouco falava e dificilmente sorria.
Apesar da timidez de ambos, enamorei-me dela e decidi trazê-la comigo para o Brasil quando tive notícias da morte de meu pai. Que eu soubesse, não havia qualquer impedimento da parte de Elizabeth... Até então vivera em pequenas pensões, sozinha . Não tinha família, ou, se tivesse, deviam ter sido esquecido dela.
O fato é que alegrou-se com o convite. Estávamos apaixonados e a perspectiva de vivermos juntos nos deixava imensamente felizes. Já na viagem arrependi-me. Elizabeth enjoara com o mar e passava quase todo o tempo no camarote, de cama.
O navio em que viajávamos levava também uma carga de cavalos. Eram animais de raça, encomendados por algum rico fazendeiro do Império. Foi com eles que aconteceu o único incidente digno de nota em toda a jornada. Certa noite, agitaram-se todos no porão. Relinchavam e batiam os cascos na madeira do navio. A algazarra chamou atenção de toda a tripulação. Vários marinheiros desceram rapidamente para o porão. Quando lá chegaram o barulho diminuíra. Os animais, no entanto, ainda estavam nervosos, ao redor de um deles caído no chão. Estava morto. Os pelos do pescoço e a parte da cabeça estavam encharcados de sangue.
Foram cogitados milhares de hipóteses para a morte do animal. Talvez estivesse doente e batera no casco do navio, talvez houvesse sido atacado pelos outros... O mistério, entretanto, persistiu.
Estranhamente, Elizabeth passou a se sentir melhor desse dia em diante. Fazia até caminhadas pelo convés do navio, algo de todo inconcebível há algum tempo.
Desembarcamos no Rio de Janeiro e levamos ainda algum tempo viajando até esta fazenda. Minha mãe, vestida de luto, esperáva-nos. Menti para ele que havia me casado com Elizabeth em Portugal, mas nem isso foi capaz de convencê-la. Tinha uma estranha aversão por minha esposa. Persignava-se sempre que a via. Talvez já adivinhasse a própria morte. Eu desci ao túmulo um mês depois de ter checado à fazenda.
Tinha temores de que Elizabeth lhe seguisse o caminho. Comia pouco e estava cada vez mais magra.
Foi por esses tempos que ocorreu um incêndio revelador. Um dos escravos se rebelava contra o capataz, atacando-o . O pobre homem teria morrido, não fosse a providencial ajuda de outros empregados. Achei que fazia bem em dar uma demonstração de força e garantir minha autoridade.
Mandei prender o escravo ao pelourinho e fiz com que o chicoteassem. O negro aguentou firme, mas, à medida que as tiras de couro começaram a arrancar espirros de sangue, entrou a gritar de dor. Elizabeth assistia a tudo impassível , embora seus olhos brilhassem como se estivessem grande interesse no episódio.
De madrugada, eu estranhei que Elizabeth não estivesse do meu lado. Procurando por ela, assomei à janela e percebi um vulto branco se movimentando lá fora. Apressei-me. Desci as escadas e abri as portas da frente da casa-grande.
O que vi me deixou paralisado! Elizabeth estava lá fora, junto ao pelourinho. Lambia as feridas ensanguentadas do negro. Senti nojo. Dominando meu ciúme, lembrei-me do episódio do navio, com os cavalos, e de como ela se sentira bem no dia seguinte. Antigas lendas me vieram à mente. Historias de pessoas que necessitavam de sangue ... Algum tempo depois ela voltou para casa. Fingi que estava dormindo.
Minhas suspeitas se confirmaram no dia seguinte: Elizabeth estava exultante, como se tivesse renascido.
Esperei até que anoitecesse. Quando nos preparávamos para dormir, retirei da gaveta uma adaga e cortei próximo ao pulso. Aproximei-me de Elizabeth, estendendo-lhe o ferimento. Ela inicialmente fingiu repulsa, mas seus olhos brilhavam. Como que dominada por um instinto indomável , Elizabeth puxou meu braço e passou a lamber o corte. Jamais a vi tão feliz, com o liquido rubro a escorrer-lhe da boca. Nos amamos como nunca.
A parti de então, todas as noites realizávamos o mesmo ritual. Entretanto, o que para ela era vida, ia se tornando morte para mim. Percebi, assim, que meu sangue jamais seria suficiente.
Embora a medida me causasse repugnância, passei a ordenar que toda noite me fosse trazida uma escrava ou escravo. A pobre criatura era amordaçada, amarrada e vendada. Eu fazia uma incisão em seu braço e Elizabeth lambia até que a pequena fonte cessasse.
Tais coisas fizeram com que os negros tomassem um medo místico da casa grande.
Hoje, quando escrevo estas palavras, já se passaram anos que chegamos aqui. Estou assustado. Os negros andam dominados por um medo incontrolável. Aguardo a revolta. No meio da noite, de qualquer noite, isso acontecerá. Talvez nos matem, talvez destruam o casarão. E estou impotente. Boa parte dos feitores já se foi e não consigo mais convencer outros a trabalhar para mim.
Enquanto aguardo o fim, lembro de um tempo que se perdeu na memória. Uma era de felicidades e belezas sem fim. Isso não poderá ser queimado ou destruído.
Gostaria apenas de estar certo que Elizabeth sobreviverá, como tem sobrevivido até aqui... Mas, mesmo que meu corpo seja destruído, o meu amor por ela jamais morrerá e talvez isso a salve. É O QUE PEÇO A DEUS."
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Hugo fechou o livro e cerrou os olhos . Havia ainda algumas palavras borrados ou queimadas. Mas já bastava. Lá fora a tempestade diminuíra. Agora podia-se ouvir o barulho das goteiras e da lenha estalando no fogo. Estava assim, absorto, quando imaginou ouvir gemidos. Abriu os olhos, assustado. A luz vermelha do fogo tingia de sangue as paredes. Nada. Nenhum som estranho.
Levantou-se. Usou o canivete para retirar a mandioca do fogo. Então ouviu novamente o gemido alto e forte vindo do porão. O susto fez com que tocasse na grelha, queimando a mão.
Hugo levou a mão à boca. Permaneceu assim algum tempo, tentando identificar o som. Ao sair da cozinha, o canivete na mão, percebeu que os gemidos aumentavam. Descobriu, ao lado do armário, um buraco.
Recuou até a cozinha, incomodado pela dor da ferida, e retirou da mochila alguns trapos. Enrolou-os num pedaço de madeira e aproximou do fogo. Depois voltou para o buraco. Iluminando-o com a tocha, percebeu que havia uma escada.
Desceu os degraus levantando a tocha acima da cabeça e segurando na borda de madeira. O chão, de terra batida, era firme. Os gemidos continuavam, agora mais fortes. Pareciam, agora, formar palavras. Ratos guinchavam, correndo de um lado para o outro.
Houve um movimento atrás de uma pilastra. Um vulto branco se encolhia no chão. Aproximando a tocha, Hugo percebeu a pele alva e os cabelos negros. Elizabeth levantou os olhos e implorou:
— Sangue!...