A Loira do Taxi ( O Início )
Quando a cidade se biparte à meia-noite, garis fazem a coleta do lixo, as mariposas revoluteiam à luz das lâmpadas, movimenta-se nas ruas o submundo. Praças desertas faíscam, prédios macabros margeiam calçadas com bêbados estirados, passeiam as assombrações. Vagam duplos de celerados e há larápios encapuzados pelas trevas. Nas largas alamedas, os bruxos feito arbustes agitam as vassouras de folhas.
A ditadura age na madrugada. Carrascos, com um Cristo metálico acorrentado ao pescoço e o demônio nos corações, arrancam gritos de estertor dos torturados.
Surgindo dos becos escuros, mirando-se na lua, a Loira Fantasma revela a face oculta do mundo. A Curitiba adormecida não vê o crime, a cidade sangrando na madrugada. A cidade que de dia sorri, chora refletida pelo espelho da noite. Ainda bem que há seres, talvez anjos, zelando pela paz dos inocentes.
Wilmar não era sonâmbulo, porém presa fácil. Moço pálido, de olhos claros, tinha ponto de taxi na Praça Osório e, até quando o sol raiava, fazia corrida para as bailarinas e os freqüentadores de boates e inferninhos. De volta do “Gogó da Ema”, passara pela funerária e sentira um calafrio ao fixar os olhos na grande cruz roxa iluminada sinalizando a morte. Começou a sentir o peso da sua cruz quando parou para apanhar a passageira loura, de cabelos luminosos, que vestia um casaco negro de pelo sobre o qual pendia reluzente colar de pérolas de várias voltas. Os dentes brilhavam como as contas do colar. Versão oficial.
- Siga até o cemitério do Abranches.
- Sim, senhora – respondeu sem saber se falara ou se transmitira o pensamento.
Wilmar drogava-se para dirigir acordado, mas desconfiou que estava sonhando ao ver a passageira sumir e reaparecer para, finalmente, evaporar-se no ar. Trêmulo de medo, retornou ao centro em alta velocidade e relatou o fenômeno aos agentes João Cunha e Artigas, que o ouviram espantados na viatura policial.
- Vamos para lá – decidiu Artigas, após comunicar a ocorrência ao Centro de Operações.
- O taxi na frente. Se “ela” aparecer, dá sinal de luz – disse João Cunha a Wilmar.
Wilmar dirigia alucinado, estremeceu ao virar-se para trás e ver a bordo a mesma passageira.
- Siga até o cemitério – repetiu-lhe ela.
Embora submetido ao domínio da aparição, ainda assim Wilmar acionou o pisca-pisca, alertando a polícia.
Entretempo, na funerária do restaurador de cadáveres Diamond, a bomba d’água explodiu misteriosamente e a urna mortuária mais luxuosa caiu do suporte, partindo-se no chão.
E na viatura que perseguiu Wilmar, os agentes viram que a árvore defronte ao prédio 2.362, na Mateus Leme, onde a passageira embarcara na primeira vez, deslocou-se para longe, voltando depois ao lugar. Ao perceberem o sinal, também teriam visto a loura a bordo do taxi.
- Olha “ela” dentro do “fuque”!
Subitamente, a loura atirou-se gargalhando sobre o pobre Wilmar. Quis esganá-lo, agarrou-lhe o pescoço, tentando arrancar-lhe a alma. Fora de si, Wilmar se achava ao volante de um bólide a ponto de penetrar num outro plano de vida, porém pisou no freio, e o taxi derrapou, corrupiando na pista. João Cunha desceu rapidamente do carro policial e abriu a porta do táxi.
- Saia! – gritou, puxando a loura violentamente pelos braços, sem poder salvar o sufocado Wilmar. Incontinente, com o revólver atingiu-a com três tiros à queima-roupa. O último, no meio da testa, fez o sangue cobrir-lhe o rosto.
Desmaiado, Wilmar foi arrastado pelos agentes à beira da Rodovia dos Minérios.
Cundiberto, sonhando à janela do quarto, detrás de sua fabriqueta de móveis e sua vizinha Bastiana ouviram a bulha, os estampidos, mas não foram doidos de saírem de dentro da casa.
- Nossa, quanto sangue! – exclamara um rapaz que chegara num automóvel.
De repente – contavam – a loura estava “desaparecida” e sem deixar nenhum vestígio de sangue! Boquiabertos, três notívagos entreolharam-se estarrecidos.
Quando as viaturas do Centro de Operações chegaram, só acharam uma bala amassada no chão do táxi. Então policiais e repórteres vasculharam o bairro e o cemitério, mas sem encontrar sinal algum de mulher baleada. Não podendo desvendar o mistério, já as nove horas da manhã, o delegado Adelmar declarou que a polícia não tinha condições de operar sobre fatos abstratos.
A cidade concreta, fundida pelo sol, amanheceu apavorada.
A notícia da Loira Fantasma alastrou-se pelo País, anunciada com mais estardalhaço que o nascimento do “bebê-diabo” de São Paulo. Manchete de primeira página, precedia outros títulos nos jornais: “Morreu Massacrada nas Mãos do Marido Bêbado”, “Atriz Morta Nua”, “Rasgou Irmão à Faca”, “Estradas Mataram 93 Pessoas em 25 Dias”, “Disputaram Mulher à Bala”. As denúncias sobre mortos e desaparecidos, ou torturas, eram desmentidas ou tinham pouca repercussão.
Na Rua das Flores só se falava em casos de almas de outro mundo. Num grupinho, Rei, que fora goleiro do Vasco da Gama, contava que ao pernoitar no estádio da Portuguesa Santista via um jogador de basquete que já havia morrido há mais de vinte anos; noutro, o jornalista Amatuzi se gabava de haver sido o primeiro a enamorar-se da Loura Fantasma, porém a seguira e ao encontrá-la sentada num muro, correu quando viu tinha o rosto de caveira. Nas casas, nos bares, em toda parte havia gente assustada. Na Delegacia de Trânsito, dois guardas diziam que, tempos atrás, seguiram uma loura bonita que desaparecera nas proximidades do cemitério municipal.
À tarde, o Secretário de Segurança declarou à imprensa: “A Secretaria da Segurança tem competência para o esclarecimento de fatos policiais e não sobrenaturais”.
Wilmar, além de perder cinqüenta cruzeiros da corrida, foi despedido pela “Rodotaxi”, convidado a mudar-se da casa em que morava e ameaçado de abandono pela esposa.
- Estou sem ajuda e sem dinheiro. – queixou-se aos repórteres que o fotografaram no bairro Estribo Ahú. Vestia calça faroeste, blusa de lã aberta ao peito sobre a camiseta, desleixado e com ar de quem morre em breve.
O táxi de prefixo 30 não se locomoveu durante o dia. Manfredo, que tem três filhos e mora na Vila Guarani, ficava no meio da aglomeração de curiosos. Desabafou, narrando o que acontecera ao seu genro:
- À noite, vou numa sessão de saravá, porque o negócio anda demais. O rapaz estava dirigindo o carro para mim e pegou um passageiro no Bairro Alto. Perto da igreja, meu genro olhou pelo retrovisor. Não havia mais ninguém. Perdeu oito cruzeiros da corrida.
Pouco a pouco, os fatos abstratos se esclareciam. Vinha à lembrança a loura que cortara os pulsos, outra que bebera formicida, ou a que fora estrangulada na pensão noturna da Praça Tiradentes. Dizia-se que os automóveis pareciam bordéis sobre rodas à noite, porém as pensionistas e as bailarinas deixaram de se aventurar sozinhas pelas ruas.
A cidade assombrou-se com a revelação do mistério. Quem o desvendou foi Diamond, o restaurador de cadáveres. Sentado ante a mesa funerária, sob o quadro de um gato branco, ladeado por dois caixões mortuários de luxo recostados à parede, relatou a verdade na entrevista. Os olhos mórbidos brilhavam no rosto cheio e circundado pela cabeleira negra e solta sobre os ombros. As palavras soavam metalicamente:
- Ela já falou duas vezes comigo depois que morreu e, na próxima, vou apanhá-la. O nome dela é Claudia Regina. É loura, encorpada, e morreu atropelada por um carro na Avenida República Argentina. Fui eu que restaurei seu rosto mutilado no acidente. Ela foi enterrada como indigente, junto com outros defuntos no cemitério Santa Cândida.
Três dias após baixar à cova, Claudia Regina procurara Diamond lá mesmo na funerária:
- Vim agradecer o trabalho feito no rosto de Claudia.
- Conhece a indigente morta? – perguntou-lhe Diamond.
- Sou eu mesma – respondeu, desaparecendo.
Outra vez, foi Ogacir, um dos empregados da empresa, que se encontrou com Claudia Regina, a qual lhe perguntou:
- Já foi descoberto o nome do motorista que me matou?
Quando eram realizados sepultamentos, Claudia Regina aparecia subitamente no coche fúnebre da funerária.
Diamond recuperou-lhe o rosto no necrotério, quando estava de plantão. Ela vestia um conjunto branco e tinha no dedo um anel muito gasto, com o nome gravado de baixo de uma pedra vermelha. Ficando com o anel, Diamond noivou com a morta.
O coveiro João Cruz fez o enterro de Claudia Regina num dia de muita chuva. Artur, da funerária, auxiliou a descarregar o esquife que, escapando das mãos dos dois, bateu no chão, abrindo-se a tampa.
- Um pouco antes de tirar o caixão do necrotério, ela me passou a mão gelada dentro do carro – disse Artur.
Logo em seguida, chegou o ajudante José dos Reis e então a colocaram na cova. Mas no livro do cemitério, o nome dela sumiu da página número dez. E José dos Reis já a viu entre os túmulos, à tardezinha.
Levaram meses as discussões sobre a existência da Loira Fantasma. Tratava-se de uma reencarnação incompleta, disse um médium muito conhecido. Há tempos ela aparecera em Belo Horizonte, quando Carlos Drumond de Andrade lhe dedicara um poema. Artigos de parapsicólogos e do Instituto Wing Chong concluíram que o caso não era do Além, porém do Aquém.
Quanto a Wilmar, que chegara a pedir para ser preso, tentando livrar-se do mundo, da polícia e de Claudia Regina, já não era o mesmo de antes. Vivia assustado, falava gaguejando. Se era reconhecido ao volante de taxi, a passageira pedia que parasse, pagava a corrida e fugia. Tinha vontade de chorar – queixava-se.
De Diamond, restaurador de cadáveres, despedido da funerária, nunca mais se soube. De Claudia Regina, sabe-se que um rosto, metade carne, metade gesso, relampeja quando a cidade de biparte à meia-noite.