O Atropelamento

UM CASO DE ATROPELAMENTO

MARIOTI ALCANTARA

Pegou o carro e saiu, riscando o asfalto. Estava atrasado, teria de chegar à cidade de Farroupilha por volta das oito horas e já passava das sete.

A distância a ser percorrida, saindo de Montenegro, era de setenta quilômetros, por isso resolveu ir por um atalho, que diminuiria a distância em dez quilômetros.

Passava pela estrada de chão batido, que lhe permitia encurtar o percurso e, como estava atrasado dirigia a mais de sessenta quilômetros por hora. Quando ia entrar em uma curva, reduziu de marcha para manter o carro acelerado. De repente surge em sua frente a figura de uma mulher velha, que, naquele momento, atravessava a estrada. A batida foi inevitável, a mulher levantou voo com a batida e passou, pelo lado esquerdo do carro, alta do chão. Completamente aturdido, não parou o carro, diminuiu a marcha, se debatia entre duas opções, parar e dar atendimento à vítima ou continuar ignorando o corrido. Foi dominado pelo extinto de autopreservação e continuou a viagem. Pensava: "algum dia todos nós morreremos, essa é a lei da vida, imposta pelo Universo, e nada podemos fazer a respeito.

Ao chegar à estrada principal que o levaria a Farroupilha, parou e foi verificar o estrago que o atropelamento havia causado no carro. Examinou e não encontrou nenhum dano, pensou: "certamente a batida foi no para-choque e este resistiu o impacto condignamente”. Nesse momento é que ele caiu em si, havia cometido um crime, atropelara alguém e não lhe prestara socorro. Sentiu um ardor no estômago e o suor começou a brotar por todos os poros enquanto sua fisionomia empalidecia.

Chegando ao seu destino, envolveu-se no trabalho, não tendo tempo sequer para pensar no ocorrido. À noite retornou sem tomar o atalho, aquela cena se apresentava em sua mente, via a batida e a mulher passar por cima do capô do carro. Um calor causticante, iniciando em seu estômago, subia até sua face, o suor brotava de seu corpo inteiro.

Ao chegar em casa, taciturno, sua mulher notou que algo de errado lhe havia acontecido, mas se ele não o quisesse falar, respeitaria seus sentimentos, resignou-se a lhe perguntar:

- Posso lhe ajudar em alguma coisa?

- Não, está tudo certo. Estou apenas cansado, o dia foi aterrador.

Tomou banho, olhou-se no espelho, a sua impressão foi de medo, de um medo semelhante ao mirar alguém que praticara uma ação enorme e monstruosa.

Jantou e foi logo se deitar. Dormiu o sono do cansaço e após três horas de sono, despertou banhado em suor, sonhara com o acidente e que a velha havia morrido. Sua mulher ao seu lado dormia tranquilamente. Levantou-se e foi para a sala de estar, ligou a televisão, não achou nada que prestasse, desligou-a e ficou ali com seus pensamentos. Sua consciência o acusava do crime cometido, jamais esqueceria o acontecido. Esperou o amanhecer, resolvera que compraria os principais jornais da região para ver se havia notícias do acidente.

Todos os jornais que comprara não noticiavam nada sobre o acidente, pensou:

- Num lugar ermo como aquele, não haveria nenhum repórter para ser chamado. De certo os parentes a socorreram, sabe lá Deus o que aconteceu após o acidente.

Não tinha disposição, alguma coisa não lhe fazia bem no estômago. Passou o dia todo se contorcendo com pontadas de dor.

Os dias foram passando e ele, cada vez mais aturdido com o acontecimento, sua consciência era implacável, acusando-o, hora após hora, dia após dia. Somente quando estava trabalhando é que não tinha sequer tempo de pensar, mas à noite não conseguia dormir um sono reparador.

Duvidava de que jamais pudesse refazer-se do choque, que jamais pudesse recuperar-se do horror da tragédia. Comia pouco, dormia menos, sentia a amargura corroê-lo por dentro. Sentia-se cansado e deprimido, até andar parecia um esforço, seus pensamentos eram, às vezes, incoerentes, parecendo que em pura abstração revivia o acidente.

Finalmente compreendeu que tinha de continuar com sua vida e seu trabalho. Estava ansioso por uma palavra amiga ou um dito que desanuviasse a preocupação que o consumia!

Na sua confusa aflição, deu um passo para a definitiva solução de sua angústia.

Sendo católico, iria se confessar no sábado, contaria tudo ao vigário e pediria humildemente que Deus o perdoasse.

- Padre, perdoa-me por que pequei. Atropelei uma mulher e não parei para lhe prestar socorro, e agora minha consciência me acusa de quem sabe havê-la matado.

Com a confissão esperava ele que sua consciência o deixasse em paz, mas não foi o que aconteceu, sistematicamente acordava de madrugada coberto de suor, sem falar que de vez em quando sonhava com o ocorrido.

Tinha que, de algum jeito fazer com que sua consciência o deixasse em paz. Resolveu assumir o malfeito e foi se denunciar à polícia.

- Registrou o boletim de ocorrência e foi falar com o delegado.

Após contar nos mínimos detalhes tudo o que havia acontecido, o delegado lhe disse:

- Pois bem, senhor, Alcântara, vou proceder a diligência para verificar quem foi a vítima e apurar o que lhe aconteceu. Enquanto isso não sai da cidade.

Quinze dias depois MARIOTI ALCANTARA foi chamado à delegacia de polícia.

- Sente-se, senhor Marioti - disse-lhe o delegado. - O senhor toma algum remédio para o sistema nervoso?

- Não senhor, por que a pergunta?

- Acontece que o senhor certamente está tendo alucinações, a diligência feita no local e nas proximidades concluíram que não houve nenhum atropelamento naquele lugar nos últimos cinco anos.

- Senhor, sabe que pode ser indiciado por falsa declaração de culpa, fazendo o estado gastar em diligência de um fato que não aconteceu.

- Não é possível, senhor delegado, eu tenho a mais absoluta certeza de que tudo aconteceu como havia lhe contado.

- Tem certeza de que o senhor não imaginou simplesmente o acontecimento, sem que ele tenha acontecido realmente?

- Não, senhor delegado, eu tenho a mais absoluta certeza de que tudo aconteceu como lhe contei.

Retornando a sua casa, parecia que sua consciência o havia deixado em paz, sentia-se mais leve, como quem havia tirado um peso enorme dos ombros.

Os meses se passaram e ele teve de viajar a Flores da Cunha, e mais uma vez estava atrasado, desta feita levaria mais de uma hora e meia de Montenegro ao seu destino, por isso resolveu pegar o atalho de estrada de chão. Quando se aproximava do local fatídico, em que havia atropelado a senhora, instintivamente diminuiu a marcha e quando fez a curva, lá estava a senhora atravessando a estrada, freou o carro o máximo que pode e este parou a menos de um metro da senhora. Desceu e foi ter com a idosa, perguntou se ela estava bem. Acompanhou-a até sua casa, que ficava ali próximo.

Enquanto caminhavam, perguntou se há uns sete meses aproximadamente, havia tido ali um atropelamento, naquele mesmo lugar. A velha respondeu-lhe que nunca alguém tinha sido atropelado naquele lugar, ela seria a primeira se não tivesse parado o carro.

MARIOTI ALCANTARA, pensou, tive uma nova oportunidade, por isso nunca mais viajarei em velocidade não recomendada e nunca mais terei pressa quando estiver dirigindo.

Explicação de origem:

Caro leitor (a), você já ouviu falar em abstração? Vamos tentar explicar: abstrair e levar o nosso pensamento a um evento que poderia ter acontecido, mas que na verdade não aconteceu, por exemplo: você está viajando de carro e em dado momento há um quase acidente, você fica em estado de choque com o acontecido, nesse momento, seu cérebro forma em sua imaginação os acontecimentos que poderiam ter acontecido, então você vê a cena como ela deveria ter acontecido.

Isso já aconteceu comigo por diversas vezes. O que me levou a escrever este conto. Na verdade, nosso personagem, no momento do suposto acidente, teve uma abstração tão real que lhe pareceu ser tudo verdadeiro, o que lhe serviu em uma próxima vez para ter o cuidado necessário para evitar o acidente, ou seja, dirigir adequadamente.

Otrebor Ozodrac

Otrebor Ozodrac
Enviado por Otrebor Ozodrac em 22/05/2011
Reeditado em 21/12/2022
Código do texto: T2986830
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