TURNO DO CEMITÉRIO

Eles iam e vinham...pareciam, sei lá, formigas? Sempre na mesma linha, o mesmo trajeto, iam e vinham...sempre...

No início, acho que nem me notavam...passavam reto, seguindo seu caminho, fosse qual fosse, para retornarem, silenciosos, como velhos barcos em um porto a muito abandonado. Alguns tinham feições humanas, outros nem tanto, alguns tinham corpos inteiros, outros...

Mas todos singravam aquele maldito corredor, passando levemente pela minha mesa, sempre ignorando ostensivamente minha presença, e, cara, isto já era bem, bem ruim...mas, como todo mundo sabe, aquilo que é bem ruim, pode perfeitamente piorar, e creia, piora pra valer...Um trabalhinho mole, diziam, turno do cemitério no morgue,

as vezes chega um corpo, outras, liberação de outro, barbadinha, diziam...

Só que ninguém lembrou de falar neles. A primeira vez que vi um deles, surgindo através daquela porta de aço, acho que me borrei nas calças, sério mesmo, tudo tranquilo num momento,e então aquela...aquela coisa começou a aparecer aos poucos, atraves dos vinte centimetros daquela porta...eu lembro de pensar: è isto cara, ferrou geral, tu já era, o bicho papão ali vai te comer...ou coisa assim...mas a coisa simplesmente passou...e outras tantas, depois dela...e, cara, se alguem te disser que eles parecem ser de fumaça, ou meio transparentes, esqueçe...as coisas pareçem com a gente, sabe? dá pra ver sangue, ou orgãos internos,quando faltam pedaços...

mas eles caminham meio que normalmente, mesmo que lhes faltem as pernas...é sinistro...mas eles me ignoravam, e fui ficando...

De uns tempos pra cá, teve meio que uma mudança,sacou? Algumas daquelas coisas começaram, Deus sabe porque a, tipo, me notar...

Alguns chegavam a virar a cabeça e me encarar, sabe? Cara, tomar uma encarada duma coisa morta...isto sim é MUITO ruim mesmo!

Aqueles olhos parecidos com leite, credo, furam a gente...dá uma tremedeira cara...eu até, tipo, vomitei de medo...

Se eu tivesse algum juizo, ou alguma grana, pra falar a verdade, tinha raspado fora naquela hora mesmo...mas eu não tinha nenhum juízo e menos grana ainda, daí fiquei...

Sei lá se aquelas coisas acharam que eu tava, tipo, gostando, mas que eles foram ficando cada vez mais abusados, ah cara, lá isto eles foram ficando...era um tal de cadeira arrastando, de gaveta da mesa abrindo, do meu cafézinho sagrado sendo derrubado...uma zona, cara...e eles começaram a me tocar...como é que uma coisa que morreu pode tocar em alguém? e dói, cara, de tão gelado...chega a marcar a pele, sabe? e eles pedem ajuda, cara, pra que, não tenho a menos idéia, mas pedem...e eles dizem que se não posso ajudar vou ter que pagar...como é que vou pagar algo pra estes troços que estão, tipo, mortos, cara? Eles falaram que querem o meu calor...que diabo de coisa é esta de meu calor?

Pronto,lá vem aquela garota de novo, acho que é a pior deles...ela meio que pisca, sei lá...tipo tá ali, some, aparece mais perto, some, mais perto, some, mais perto...ela tá virando pra mim, mais perto, ai meu Deus, ela tá sorrindo pra mim, mais perto, o frio, o frio...

lhmintem

lh mintem
Enviado por lh mintem em 17/05/2011
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