Vultos da Noite (Parte 02)

Não sabia o que era, mas era algo profundamente medonho. Uma sombra. Oh, sim! Uma Sombra funesta trespassara o seu aposento e dirigia-se na direcção de Victor. Era a sombra tenebrosa que vira, antes daquele homem morrer, quando atravessava a estrada. Agora prostrava-se no seu quarto e detia-se atrás do corpo Victor, que lhe pesava sobre o seu. Virgínia arrancou todas as forças das profundezas dos seus músculos, e com um safanão brusco, atirou com Victor contra a janela do seu quarto, o que fez com que este trespassasse a janela e caísse lá em baixo. A sombra seguiu-o, arrancou-lhe a alma com uma ceifada violenta, desaparecendo por entre a bruma. Seguidamente, a jovem deixou de ver por uns instantes, e quando voltou a abrir os olhos, apercebeu-se que estava rodeada pelas visitas lá de casa, que se demoravam à sua volta. Ouvira um pranto, vindo do andar de baixo. Eram os Pais de Victor, que choravam junto ao seu corpo inerte. Aristides e Simone fitavam-na com uma dureza crua. - O que lhe fizeste, Virgínia?... – Interrogou Aristides com o rosto rubro de inquietação. Virgínia tentou responder e justificar a sua ira, perante a tentativa de violação por parte do seu agressor, mas não conseguia justificar o resto, e por isso preferiu ficar calada. A família Fonseca viu-se rodeada de sérios problemas, depois do incidente ocorrido naquela noite funesta. Victor era um adolescente problemático. Os pais sabiam que ele era um verdadeiro predador de rapariguinhas, mas minimizavam sempre as situações, escudando-se nos seus problemas clínicos, que eram acompanhados por um prestigiado psiquiatra da cidade. Mas agora estava morto, e a notícia tinha corrido toda a região. E não será preciso ser exaustivo para referir que os negócios dos Fonsecas tinham sido afetados, após o incidente, não fossem os pais de Victor, uns dos seus melhores e mais influentes fornecedores de matéria-prima. Um ano passou e os Fonsecas estavam a beira da ruína. Uma das suas fábricas de lanifícios abriu falência e a outra para lá caminhava. A casa estava à venda e não se afiguravam melhores dias. Numa tarde sombria, Virgínia distraía-se numa alegre “chinchada” a uma macieira que se conservava no jardim, quando deu pela presença lúgubre e inesperada de Simone, por trás dela. Tinha um rosto pálido e um sorriso mórbido. - Bom dia, Virgínia!... – Saudou Simone, com uma voz lúgubre. - Bom dia, mãe... – Respondeu Virgínia, disfarçando a surpresa. - Sabes Virgínia!... – Sussurrou Simone, que detinha ambas as mãos escondidas atrás das costas – eu já fui feliz...e agora, não sou. Aliás, eu não sei o que é ser feliz, desde que tu puseste os pés nesta casa... Simone aproximava-se vagarosamente de Virgínia, ao mesmo tempo que ia murmurando algumas frases estranhas, até que a atacou repentinamente, enlaçando-lhe uma corda em volta do pescoço. Completamente descontrolada, tentou arrastar a garota até junto do tanque, e ali arriscou empurrá-la para baixo. -Morre, maldita!...morre e leva os teus demónios contigo, miserável – Guinchou estridente, com uma voz rouca. A miúda segurou-se ao pequeno mural que envolvia o tanque, e conseguiu libertar-se, atacando-a com uma pedra que escondera na sua algibeira, para atirar aos pássaros. Depois de notar que a sua opositora a soltara, Virgínia fugiu, penetrando dentro de casa. Sem perder tempo, colocou várias peças de roupa num mala e evadiu-se da residência, fugindo pelo matagal a fora, orientando-se pela berma da estrada. Sentia-se profundamente exausta, desnorteada e triste. Ao fim de caminhar alguns quilometros, e das bolhas começarem a magoar-lhe os pés, Virgínia decidiu acercar-se da estrada para pedir boleia. De polegar esticado para trás, e de trouxa às costas, a miúda arriscou a sua sorte. A noite já ameaçava cobrir a planície quando um Fiat 127, cor de laranja abrandou a marcha e parou, junto à garota. - Para onde vais?... – Perguntou um jovem, afectuosamente. - Para longe daqui!... – Retorquiu Virgínia, com um tom seco. O rapaz de cabelo muito claro, abriu a porta e com um aceno, convidou Virgínia a entrar. - És de onde? – Inquiriu ele, engatando a “segunda”. - Sou daqui perto... – Sussurrou Virgínia, laconicamente. - Parece que estás triste!...Tiveste algum problema? – Insistiu ele, com um ar preocupado. Virgínia reparou que o rapaz tinha uns olhos tão claros, como jamais tinha visto numa pessoa. O seu rosto era sincero. Sincero demais, diga-se! - Como te chamas? – Interrogou ela baixinho. - Gabriel! – Respondeu ele prontamente! -Como o anjo! – Afirmou ela, de modo peremptório. - Sim...como o anjo!...Estás com algum problema, não estás?...podes desabafar comigo, posso, no mínimo, ouvir-te! – Declarou Gabriel, melancolicamente. - Sabes, há uns tempos, matei uma pessoa! – Redarguiu ela, com um ar pensativo e triste. -Porquê que o fizeste? – Insistiu. - Ele atacou-me, e queria fazer-me mal... – Engoliu em seco. -...E tu, defendeste-te? – Atirou ele, como que adivinhando a resposta. - Sim...não!...isto é... – Balbuciou Virgínia, meio confusa. As imagens palpitavam-lhe pela memória, e não a deixavam raciocinar. -Há mais alguma coisa, Virgínia? - Insistiu Gabriel. Escutou-se um breve silêncio, que só foi suspendido pela voz da garota. -Eu vi uma sombra! – Foi a lúgubre resposta. -Uma sombra? – Continuou Gabriel, surpreendido. - Sim. Uma sombra. Mas não é uma sombra qualquer, Gabriel. É uma sombra, que antecede a morte das pessoas!... – A frase pareceu-lhe estranha, pois nunca tinha dito aquilo a ninguém. - Uma sombra, que antecede a morte das pessoas....e tu, vê-la... – Repetiu ele, coçando ligeiramente a testa. - Sim. Já a vi várias vezes! Primeiro sinto um tremor frio, que me trepa pela espinha. Depois, sinto a sua presença. É uma presença tenebrosa e arrepiante. Por fim, fica tudo escuro, e da escuridão sai uma sombra maligna, que trespassa a pessoa, arrancando-lhe a alma. – Ela esperava que, daquela revelação sinistra, Gabriel parasse o carro e desatasse a fugir. Mas estranhamente, ele lançou-lhe um olhar meigo e prosseguiu com o diálogo: - Tens medo dessa sombra? – Inquiriu, enquanto os seus olhos meigos procuraram o rosto apavorado de Virgínia. -Tenho. É mesmo algo assustador...nem tu imaginas o que sinto, quando a vejo. – Exclamou ela, entre soluços. - E, já pensaste, que não vês essas sombras por acaso?... - O que queres dizer? – Perguntou Virgínia, com a voz profundamente fria. -O que eu quero dizer, é que tu tens um dom. Um dom que te foi dado por Deus, para que tu, e apenas tu, possas ver a morte a aproximar-se, antes de outra pessoa qualquer. – Afiançou Gabriel. - O que achas que eu devia fazer, então? – Murmurou Virgínia, quase imperceptivelmente. - Acho que podes salvar as pessoas, antes delas morrerem. Afinal, tu vês a morte a aproximar-se!...já imaginás-te que pode ser, essa a tua missão na terra? Virgínia nunca tinha encarado o problema deste modo. Desde sempre que fora repudiada por todos, pois achavam-na Demoníaca. Uma vez, até ouvira uma das educadoras do orfanato a contar que o padre de uma paroquia tinha morrido, numa noite em que, ela ainda bebê, ficara possuída pelo Demônio. Sempre foi levada a pensar que era uma atrasada mental, com graves perturbações; mas depois de ouvir as palavras sensatas daquele rapaz belo como um anjo, sentia-se diferente. Afinal, ela tinha um dom, disse-lhe ele, e esse dom fora-lhe dado por Deus. Possuía o poder de salvar as pessoas da morte! - É aqui que eu te deixo! – Pronunciou Gabriel subitamente, enquanto encostou o carro na berma da estrada. - Hã?... – Suspirou Virgínia, meio aturdida. – Está bem! Obrigado pela boleia e... muito gosto em conhecer-te! - Igualmente, Virgínia! Boa Sorte! – Exclamou ele, com um sorriso encantador. Virgínia virou-se para observar o veículo a afastar-se, mas estranhamente, já não havia veículo nenhum. Foi como se tivesse esfumado pela bruma da noite. Começou de novo a palmilhar, dirigindo-se em direcção a umas casas que despontavam mais à frente. Precisava de encontrar um sítio para dormir. Tinha algum dinheiro com ela, pois durante toda a sua vida na casa dos Fonsecas angariara um bom pé-de-meia. Pelo caminho, recordou-se da face de Gabriel. Era uma face harmoniosa, bem como a sua voz. Recordou-se do diálogo que ambos tiveram, e agora mais a frio, atemorizou-se ao notar que durante o mesmo, nunca dissera o seu nome a Gabriel, todavia ele sempre a tratou por Virgínia! - Como poderia ele saber o seu nome. Continuou a caminhar, sem conseguir encontrar uma explicação lógica para aquela interrogação súbita, que lhe assaltara o espírito. Sentia frio e fome. Tinha penetrado numa pequena vila, e decidiu entrar no primeiro café que encontrou, pois um “cheirinho” a comida gravitara até às suas narinas, e ela não lhe resistiu. O café, que era mais uma taberna, estava cheio de homens com aspecto obsceno e nauseabundo, mas assim que ela entrou, um súbito silêncio invadiu o local! Virgínia sentiu-se trespassada pelos olhos arregalados dos homens truculentos, percebendo que não era a única “mulher” no interior do local. Atrás do balcão, uma mulher gorda, que os clientes tratavam por Dona Júlia, atendia os homens, que provavam ter-lhe muito respeito. - O que procuras aqui, pequenita? – Questionou a mulher com uma voz gutural, mas afável. - Tenho fome! – Redarguiu ela, com o rosto corado, e meia envergonhada. - Espera lá...Estou-te a conhecer!... – Afiançou a mulher, fitando o rosto de Virgínia – Tu não és aquela miúda, que...? - Sim. Sou eu... – Apressou-se Virgínia a responder. Virgínia soube naquela noite de que a filha da dona Júlia fora uma das inúmeras vítimas de Victor, ali na aldeia. E, talvez por isso, a dona da taberna, acolheu-a no seu modesto Albergue, oferecendo-lhe uma cama, roupa e comida quente. Fora uma maneira de a compensar, por Virgínia ter feito, aquilo que ela desejara fazer numa noite, mas que fora impedida pelos seus compadres, para não ter de passar algum tempo na prisão. Ao fim de algumas semanas, Virgínia sentia-se bem no albergue. Gostava imenso da Dona Júlia, que afinal se revelara uma mulher extremamente sensível e carinhosa. Num final de tarde, a mulher chamou-a ao seu reduto, e fez-lhe uma consulta: -Minha linda...Já cá estás, vai fazer quinze dias, e eu queria saber se gostavas de continuar aqui a viver comigo. Sabes, gosto muito de ti e... – mesmo antes de terminar a frase, Dona Júlia fora arrebatada por Virgínia, que se lançou de braços abertos sobre ela, apertando-a com toda a força que os seus músculos possuíam. A mulher propôs que ela estudasse na escola mais próxima, e que a ajudasse na taberna, sempre que tal se justificasse, o que Virgínia acedeu com bastante euforia, pois ela gostava do ambiente da taberna. Quando ela estava presente, os homens evitavam de ser obscenos e até eram simpáticos com ela. Numa noite tormentosa de chuva e ventania, o albergue fora procurado por diversos camionistas, que optaram por pernoitar por ali, em vez de prosseguirem caminho, uma vez que a tempestade ameaçava as condições de segurança na estrada. A taberna também estava cheia. Afinal, era ali que muitos homens passavam o tempo. Uns jogavam às cartas, outros entretinham-se a conversar, etc. Virgínia descansava na quietude do seu quarto, quando algo lhe assombrou o espírito. Algo muito Dantesco aproximava-se do Albergue. Levantou-se de imediato e assomou-se à janela do seu quarto. Estava escuro. Nem a luz ébria da lua deixava enxergar o que lá vinha. E Virgínia agourava que fosse mais uma daquelas sombras demoníacas que lhe terrificava a alma, antes de levar alguém, sabe-se lá para onde.

Panic
Enviado por Panic em 13/05/2011
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