Morrer duas vezes

Foi uma morte sossegada, depois de seis dias de sofrimentos. Bianca estava deitada na cama de acompanhante lendo um livro – Judas, o obscuro, de Thomas Hardy – quando a respiração roufenha de Eufrásio, seu marido, cessou subitamente; um silêncio pavoroso tomou conta do mundo, o ar saturou-se de miasmas resultantes do esfíncter relaxado e surgiu aparentemente do nada uma imensa borboleta vermelha voejando desnorteada por todos os quadrantes do quarto hospitalar, era tão grande que Bianca teve a impressão de ouvir um tatalar de asas na ausência completa de ruídos, e pouco depois o bicho pousou na testa do cadáver e ali permaneceu imóvel, medonhamente imóvel – os ponteiros do relógio de pulso de Bianca indicavam duas horas da tarde.
Com aquela calma provocada pelo golpe da desgraça, Bianca apertou a campainha chamando o enfermeiro; como acontece em todos os hospitais do mundo, ninguém aparecia para atendê-la. Pressionou novamente o botão e deixou o dedo a comprimi-lo – só assim surgiu uma mocinha, mal-humorada como o Cão. Antes que a guria abrisse a boca num derrame de censuras, Bianca apontou Eufrásio:
– Morreu – disse, simplesmente.
A garota olhou-a nos olhos, incrédula, e Bianca viu que não passava de uma estagiária de enfermagem, talvez em seu primeiro dia de trabalho. A moça foi ao corpo, enxotou a borboleta, esta levantou voo e foi pregar-se na parede alva do quarto.
– É, faleceu mesmo – concordou a jovem, depois de ver o pulso do paciente. – Mas ele parecia estar melhorando...
– A morte gosta dessas coisas, filha – Bianca retrucou ácida, – a morte é uma velha e empedernida senhora com raro senso de humor. Por que diabos você não vai avisar o médico?
Foi só a garota sair e a borboleta voltou a pousar na testa lívida de Eufrásio – que invisível luz aos olhos humanos estaria fluindo do defunto, Bianca não poderia atinar, mas que o bicho estava sentindo poderosa atração, isso era um fato concreto.
O médico apareceu, espantou a borboleta, que voltou a grudar-se na parede em teimosia de noiva perdidamente apaixonada, disse algumas palavras vãs de consolo a Bianca e foi cuidar da remoção do corpo. Bianca olhou mais uma vez para Eufrásio, ali nadando na placidez da morte, e saiu para o corredor, acendeu um cigarro e foi fumá-lo no pátio interno, cimentado do hospital. Quatro ou cinco pacientes circulavam por lá, trajando pijamas, camisolas, matando o tempo à espera da cura ou do desenlace. Havia uma grande árvore no meio do pátio circundada por um banco de tijolos – Bianca sentou-se ali, deu profundas tragadas no cigarro, sentindo-se incapaz de derramar uma lágrima que fosse. Com algum remorso percebeu que aquilo que ia à sua alma nada mais era que alívio pelo falecimento do marido – com uma ponta de alegria compreendeu que, livre do beberrão, poderia voltar a florescer para a vida. Porque, verdade seja dita, a convivência com o esposo durante dez anos tinha sido um pesadelo que não se deseja ao pior inimigo. Eufrásio bebia todos os dias uma garrafa de pinga, às vezes duas, de madrugada estava invariavelmente vomitando, não raro tinha distúrbios diarréicos – e quem é que limpava aquela imundície toda? Estava desempregado há mais de cinco anos, passava praticamente vinte e quatro horas por dia estendido na cama, o litro amaldiçoado de cachaça sempre ao alcance da mão. Ela, com seu emprego de funcionária pública, arcava com todas as despesas da casa, além de manter o vício do imprestável. Estava sim aliviada com a morte de Eufrásio – e prontinha para desfrutar uma nova etapa, mais feliz, da vida.

Os agentes do plano funerário cuidaram de tudo, das exéquias ao enterro, Bianca precisou apenas assinar uns papéis. O velório ocorreu no salão comunitário do bairro, com uns poucos parentes, alguns amigos do casal e a borboleta. Pois não é que a borboleta vermelha deu o ar de sua graça? Ficou por ali, ora voejando entre as pessoas, ora grudada no teto numa imobilidade assustadora. E acompanhou o enterro, assistiu à descida do caixão na cova e depois desapareceu. Para ressurgir no quarto, à noite, quando Bianca se preparava para dormir. Pousado na cabeceira da cama, o bicho a olhava com tamanha intensidade que parecia estar querendo alguma coisa. Bianca chegou à conclusão que a borboleta estava possuída pelo espírito do finado marido.
– O que você quer, Eufrásio? – perguntou.
A borboleta vermelha alçou voo, ia e vinha até a porta do quarto, como se pedisse que a mulher a seguisse.
– Vá na frente, eu te sigo – ela disse. E a borboleta voou para cozinha, Bianca atrás. Lá chegando, o bicho ficou rondando o armário. Bianca entendeu, abriu-o, pegou um litro de cachaça, destampou-o, despejou o líquido num copo e o colocou sobre a pia.
– Pronto, Eufrásio. Pode encher a cara.
A borboleta vermelha voou ainda um instante pela cozinha, depois pousou na borda do copo, desenrolou a proboscídea e a mergulhou na cachaça – estava tão feliz que as asas abanavam acompanhando o ritmo do sugar frenético. Bianca arrastou uma cadeira e sentou-se, os cotovelos apoiados na mesa, observando com fascínio aquele incrível acontecimento. Por vários minutos o bicho permaneceu sugando a pinga, depois, saciado, levantou voo. O que Bianca viu foi uma borboleta completamente bêbada que dava encontrões nas paredes, no teto, e por fim esparramou-se no chão, as asas e patinhas se agitando tragicamente. Bianca tirou o chinelo e esmagou-a com um golpe certeiro, bradando: – Vá pro inferno, Eufrásio!
Recolheu os destroços do corpo com a vassoura e pazinha de lixo, foi ao banheiro, jogou a borboleta esmigalhada no vaso sanitário e deu descarga. Depois foi para o quarto, deitou-se e dormiu um sono tranquilo, coisa que não acontecia desde o seu malfadado casamento.