Fome
Certas pessoas têm paixões. Algumas pessoas têm paixão pela musica, arte, gostam de animais, outras de aventuras, viagens, ou ainda ler um bom livro, ver um filme. A paixão de Evandro era por comida.
Evandro sofria de uma doença conhecida como binge, ou compulsão alimentar. Porém, apesar de sofrer da doença, Evandro gostava mesmo de comer, na verdade adorava. Ele se sentia bem, comer era satisfatório, compensava todos os seus pesares, era um lance quase orgástico.
Com apenas 25 anos, Evandro já passava dos 145 quilos, e a cada vez que se pesava, o mostrador subia alguns gramas. Isso para ele não significava nada, não tinha qualquer tipo de compulsão sexual por mulheres ou homens, ele só se importava com comida, e comida não ligava para quanto o cara pesava.
Durante todos os momentos do dia, Evandro estava sempre comendo alguma coisa. Mastigava o tempo inteiro, independente da atividade que estivesse exercendo no momento, o que quase sempre consistia em ficar deitando vendo TV ou jogando vídeo-game. Não trabalhava. Sua mãe, uma aposentada que também adorava comer quase tanto quanto seu filho, o sustentava e o enchia de comida, pois para ela Evandro não era doente, era apenas “saudável demais e um pouquinho acima de seu peso”. Viúva á muitos anos, dedicava sua vida a cuidar e encher o único filho de mimos e, claro, de muita comida. Preparava pra ele todos os dias, inúmeros pratos de tudo que ele mais gostava, e sua dispensa estava sempre cheia de doces e guloseimas para que ele nunca passasse vontades.
Acontece que um dia, Sonia como se chamava, caiu dura e morreu. Teve um infarto fulminante e morreu nos braços de Evandro, numa tarde fria enquanto esticados juntos no sofá, assistiam uma comédia meia boca na TV, comendo pipocas e tomando refrigerantes. O sorvete que seria a sobremesa derretia na mesa de centro da sala, enquanto Evandro chorava balançando a mãe já sem vida nos braços.
O enterro foi dois dias depois. Evandro durante toda a cerimônia comeu três pacotes de batatas fritas, bebeu duas garrafas de coca-cola, e na padaria em frente ao cemitério, comeu dois lanches de X-Tudo, tomou algumas latas de refrigerante e como sobremesa, comeu alguns pães doces e tomou sorvete. No caminho para casa, foi chorando e mastigando um pacote de MM’s tamanho família.
Alguns meses se passaram desde a morte de Sonia. Evandro então ia de mal a pior. Nesses poucos meses engordara mais de 30 quilos e se tornara mais taciturno e arredio que de costume. Não se relacionava com ninguém, não possuía amigos ou parentes próximos, os poucos vizinhos mal viam sua cara, pois passava o dia trancado em casa comendo e lamentando a perda da mãe. Só saia para ir até o supermercado reabastecer a dispensa e a geladeira, pagando as contas com o pouco que recebia da pensão de seu falecido pai.
Aos poucos algo estranho foi acontecendo com Evandro. A comida comum não o satisfazia mais. Por mais que comesse e comesse, ainda sentia uma fome imensa, devoradora. Comia pizzas, massa, arroz e feijão, lanches, doces, sorvetes, ás vezes tudo junto, misturando doces e salgados de uma só vez, mas nunca era suficiente, sempre queria mais, sempre e sempre mais. Certo dia comeu tanto, que acabou com todo seu estoque de guloseimas e doces. Quando abriu o refrigerador para ver o que poderia comer, se deparou com uma travessa com enormes pedaços suculentos de carne crua. Estava guardando para comer no jantar, mas não podia mais esperar. Sua ânsia de comer alguma coisa o devorava e na geladeira ele já tinha acabado com quase tudo, menos a travessa de carne e algumas batatas que juntaria com a carne, para um ensopado.
Sem pensar muito, o estomago roncando, clamando por qualquer coisa comestível, pegou um enorme pedaço de carne, molhada e gelada e enfiou inteiro na boca, mastigando ruidosamente. Adorou. O sabor era incrível, o gosto acre, ferroso e meio agridoce do sangue era inigualável. Nunca tinha comido carne assim, crua, e se arrependeu de não o tê-lo feito antes. Era maravilhoso, e espantosamente quando acabou com toda a travessa, sua fome foi aplacando aos poucos e inacreditavelmente cessou por completo. Pela primeira vez em muito tempo, tanto tempo que ele mal se recordava, seu estomago não clamava por comida com uma urgência feroz.
Foi para o sofá e se deitou, relaxando um pouco. Estava se sentindo tão bem, como a muito não se sentia. Seu rosto ainda melecado de sangue exibia um sorriso sereno quando adormeceu por 5 horas seguidas sem precisar levantar para comer, um fato inédito. Seu estomago sempre clamava por comida a cada no máximo 30 minutos. Não se lembrava de já ter dormido por tantas horas seguidas na vida.
Os dias se passaram, semanas e depois meses. Evandro desenvolveu por completo sua necessidade de ingerir carne vermelha crua nesse decorrer de tempo.
Porém, acontece que como a comida no geral, a carne sangrenta já estava deixando de satisfazê-lo, como era no inicio. Depois da primeira vez em que experimentou o prazer de comer carne crua, conseguiu ir se aprimorando até que suas refeições começaram á serem feitas em intervalos regulares e normais. A única divergência era que ao invés de comida cozida e caseira, o que ingeria era carne crua, sempre vermelha, sangrando e em grande quantidade. As vezes comia algo diferente, só para seu organismo absorver vitaminas e minerais não contidos na carne. Emagreceu consideravelmente.
Mas agora, sentado diante de um prato cheio de pedaços de alcatra frescos, sentia que algo lhe faltava. Toda carne que comia, por maior quantidade que fosse não o saciava mais como antes e ele precisava fazer alguma coisa, pois também não conseguia mais voltar a comer comida comum com regularidade. O gosto era horrível e a necessidade intensa por outro alimento, um tipo diferente de carne, carne pingando sangue ainda quente, pulsando...carne de gente? Porque não? Talvez...
Se a carne vermelha o tinha satisfeito por tanto tempo, o que poderia esperar de uma boa porção de carne humana fresca, cheia de vitalidade, com um sabor ainda misterioso? Nunca tinha comido carne de gente, claro, mas isso não o desmotivava, ao contrario, parecia provar que era por isso que sempre em sua vida procurava por algo que saciasse sua fome insana, mas nunca encontrava. Algo que estava diante de seus olhos, bem debaixo do seu nariz, caminhando por toda parte, só esperando para ser abatido e servido em pratos gotejantes de sangue fresco e saboroso.
Começou a caminhar nervoso com passos incertos de um lado para o outro na cozinha, pensando, seu estomago se revoltando e clamando por carne, por sangue fresco. Sentia sede, mas não de água.
Abriu a porta e foi até a garagem, pegou o velho sedã de sua saudosa mãe e saiu, indo em direção ao parque municipal, três quarteirões adiante de sua casa.
Chegando ao parque, estacionou o carro próximo a um banco, saiu e sentou observando o movimento. Era uma tarde ensolarada e calma no meio da semana, e o parque estava relativamente vazio, salvo por algumas mães empurrando seus filhos nos balanços ou os ajudando a descer no escorrega no parquinho que ficava mais a frente do banco onde se encontrava, próximo ao seu ângulo de visão. Do lado oposto ao parquinho, em um banco distante, se achava uma garota, talvez de uns 14 ou 15 anos. Estava sentada com a mochila da escola abandonada no chão entre as pernas, um livro de anotações na mão, um fone de ouvido nas orelhas. Balançava a cabeça ao som da musica que só ela ouvia, vez por outra batendo os pezinhos no chão, enquanto fazia anotações, provavelmente alguma lição de casa. Pelo horário, ou algum professor faltara e ela tinha saído mais cedo, ou cabulara aula.
Evandro sentiu um arrepio de satisfação. Nunca tinha sentido tesão na vida, e não sabia dizer se a sensação que o estava percorrendo era isso, mas provavelmente era algo parecido. Estava excitado, não por luxuria, mas sim por fome, por um prazer antecipado de algo que ainda não conhecia. Não sabia como, mas tinha certeza que a carne dessa menina era muito mais saborosa que qualquer outra carne que já tivesse comido na vida. Antecipou o prazer de sentir seu sabor, seu cheiro, a maciez da carne da menina em sua boca. Saliva escorria pelo seu queixo e ele se deu conta de que babava. Estava faminto.
As poucas mães que brincavam com seus filhos estavam agora conversando animadamente entre si. As crianças pulavam e gritavam como se espera que façam todas as crianças sadias. Evandro se levantou e dirigiu-se lentamente ao banco onde se sentava a garota, olhando a volta para ver se tinha possibilidades de não ser pego. Como era sua primeira vez, tinha medo de agir impulsivamente e fazer com que tudo fosse por água a baixo. Acontece que também não podia demorar, pois a menina não iria ficar ali para sempre, poderia ir embora a qualquer momento. Suas pernas tremiam, seu coração pulava a ponto de estourar no seu peito, mas ele nem notava. Só notava uma imensa fome avassaladora o devorando por dentro.
Conforme se distanciava mais do parquinho, foi olhando para traz como quem não quer nada, vibrando ao perceber que não tinha como as mães no parquinho verem a menina sentada no banco, devido ao ângulo em que o banco se encontrava, bem no meio de uma curva. Ver a pessoa sentada no banco era impossível para quem estava no parquinho, porque alem da distancia, próximo ao banco tinha uma arvore que bloqueava a visão.
Decidiu que não pensaria, não calcularia. Aquela era à hora, aquele era o lugar, aquela era a vitima,o seu alimento.
A menina, alheia a sua aproximação, concentrada nas suas anotações, continuava balançando a cabeça, sua boca se mexendo silenciosamente acompanhando a letra da musica que escutava. Nem percebeu quando a poucos metros ele passou pelo lado do banco, indo parar atrás dela, as mãos levantadas, no rosto um olhar desvairado, febril. Sentiu do nada que mãos grandes e muito fortes apertavam seu pescoço por traz, sufocando-a com todas as forças, e mesmo se debatendo, tentando gritar mas emitindo apenas ruídos sufocados, ninguém a viu, ninguém a socorreu, ninguém a percebeu.
As mães continuavam brincando com seus filhos, fofocando da vida da vizinha ou reclamando de seus maridos ausentes, alheias ao fato de que a poucos metros, um doente sufocava uma menina inocente, para fazê-la de seu alimento. Somente um pássaro na arvore ao lado foi testemunha daquela cena, daquele horror. Como que se padecendo da menina, o pássaro piou tristemente e voou, quando finalmente ela desfaleceu.
Sem perder tempo ele a tomou nos braços e correu para onde o carro estava estacionado. Ninguém os notou. Em poucos minutos entrava na garagem de sua casa, a menina desfalecida no banco do carona.
Ele não a matou de cara lá no parque porque tinha um motivo. Queria carne fresca, quente, respingando sangue viril ainda com o ultimo suspiro de vida. Queria ver qual era o sabor da vitalidade, da vida se esvaindo entre seus dentes, o gosto do sangue fresco, quente.
Levou a menina pra dentro de casa, jogando ela no sofá e foi até a cozinha em busca de uma faca. Seu estomago o estava torturando de fome. Queria fazer tudo rápido, para que a menina não acordasse antes dele terminar o serviço. No fundo não queria que ela sofresse, só queria se alimentar, se saciar.
Com a fome o devorando aos poucos, cambaleou de volta a sala com a faca na mão. Pegou a menina e a jogou no chão de qualquer jeito. Levantou as mãos e cravou a faca no seu peito, no momento exato em que ela abria os olhos acordando por ter sido jogada ao chão. Mas seus olhos se abriram somente por um instante, talvez o instante único onde ela pode ver no seu ultimo momento de vida o rosto do homem que a matou para comer.
Enquanto o sangue escorria da ferida aberta, Evandro se agachou e sugava de qualquer jeito o liquido precioso. Como ele já esperava, o sabor era inigualável, maravilhoso, quente e fresco ao mesmo tempo, melhor que tudo que ele já tinha experimentado na vida. Com a faca arrancou um pedaço de “bife” que tirou de uma das pernas da garota, jogando na boca com fúria e mastigando com prazer. Que delicia, que revigorante. Ele podia sentir a cada mastigada, a vida abandonado o corpo da menina tão jovem e adentrando o seu, o enchendo de vitalidade e energia. A carne era tão macia, suculenta, doce e salgada ao mesmo tempo, um sabor divino, sem igual. Cortou e retalhou, comeu e se deliciou.
Ele já sabia que gostaria, mas não estava preparado para o sentimento que o estava arrebatando cada vez que ele engolia um pedaço da garota. Prazer, uma explosão de fúria excitante dos seus melhores sentidos, força, satisfação, adoração intensa. Sim, ele adorou carne humana. Adorou.
Agora que experimentou esse alimento sagrado, esse elixir da vida, jamais se alimentaria de um animal novamente. Sem duvida a carne abatida e ingerida na hora era bem melhor, infelizmente a força da vida abandonava o corpo logo, mas como não poderia sair matando assim gente sem levantar suspeita, teria de comer o que tinha aos poucos, guardar e congelar os pedaços para que durassem alguns meses. Claro que também comeria outros alimentos, mesmo não gostando, mesmo não querendo. Mas era preciso. Pra não levantar suspeitas e porque seu organismo precisava de outras vitaminas que não eram encontradas na carne, nem na animal, nem na humana.
Com a boca borrada de sangue, mas suspirando de prazer, Evandro levantou do chão pegou tudo que restava da menina, embalou e congelou. Limpou toda sujeira da sala, tomou um banho e se deitou pois estava exausto. Enquanto pegava no sono aos poucos, pensava que a menina ainda duraria algum tempo, talvez um mês...sobrou bastante dela, afinal, a carne humana o satisfez muito mais rapido do que carne animal e ele podia comer menos quantidade e menos vezes ao dia, fazendo com que durasse mais.
E quando acabasse a menina? Ele sairia para caçar mais. Afinal, tinha gente de sobra por ai. Um imenso rebanho.