TOCO DE ENCHENTE
Um dia o Maroca se cansou de carregar uma existência vazia, pesada e sem sentido e resolveu arriar o fardo. E fez isso da forma mais triste que alguém pode imaginar. Nas águas de um rio. Simplesmente entrou na corrente densa e pútrida do Rio Tietê e deixou-se levar, como um toco de enchente carregado por uma enxurrada.
Era um dia triste, em que uma chuva forte e intermitente havia começado a cair nas primeiras horas da manhã e continuou até o início da noite. Um daqueles dias em que as pessoas só saem á rua para cumprir compromissos que não podem ser adiados.
Dias assim já são aziagos por natureza. Parecem que nos tiram a motivação para viver. Inspiram sentimentos de desconforto e inquietude que a gente não sabe de onde vem. Só sabemos que incomodam. Talvez nós sejamos, realmente, como dizem os filósofos espiritualistas, um espelho do próprio mundo. Quando ele se fecha por fora, nós também nos fechamos por dentro. Se o sol não passa, as sombras cobrem a face da terra, e o nosso espírito entra nessa zona cinzenta, onde o fluxo vital que nos impulsiona à ação parece sofrer uma espécie de drenagem.
É possível imaginar o que o Maroca estava sentindo naquele dia. Ele abriu a janela do quarto pela manhã e ficou olhando para a rua úmida, silenciosa e vazia. Não divisou ninguém no horizonte dos seus olhos. A rua parecia triste, hostil, cinzenta. Ele ficou lá, olhando, durante intermináveis minutos a paisagem inútil e constrangedora. Ninguém apareceu para dizer um alô que fosse. Quem sabe se pelo menos uma viva alma passasse por ali naquele momento e lhe dissesse “bom dia” tudo acontecesse de modo diferente.
Mas não foi assim. Parecia que o mundo havia se acabado. Pelo menos, é o que aparentava ser aquela solidão silenciosa e angustiante que ele presenciava da sua janela. Há muito tempo que já se sentia um morto vivo, enterrado no túmulo do seu quarto, vendo o mundo através de uma vidraça embaçada por suspiros. Não se lembrava da última vez que tinha saído de casa para fazer coisa diferente do que ir ao banco receber a pensão do INSS e passar no supermercado para comprar as coisas que necessitava. Pais mortos, irmãos todos casados e morando em outra cidade, nenhum amigo, nenhuma mulher.
Ficou olhando a rua onde uma pequena enxurrada levava, aos trancos e barrancos, uma garrafa de plástico que teimava em enroscar-se num canto ou em outro, como querendo resistir à torrente que tentava, á força, levá-la embora. Viu a vida como ela fosse um rio e ele um toco de enchente, que a torrente arrasta, mas que incidentalmente se agarra aqui e ali, tentando lutar contra a força que a leva, buscando terra firme, onde possa, quiçá, plantar raízes e até florescer.
Lembrou-se da sua infância, feliz e segura na pequena cidade onde nascera. Lá era só ir à escola pela manhã, jogar futebol no campinho de terra á tarde e á noite, brincar com os colegas na rua. Jogar taco, brincar de bandeirinha, garrafão, queimada. Sentia-se uma árvore jovem, com raízes profundamente fincadas nas terra, que enxurrada nenhuma seria capaz de arrancar. Nela poderia florescer e frutificar.
Depois a família se mudara para esta cidade onde ele vivia agora, lugar bem maior, onde ele demorou algum tempo para se adaptar, mas logo encontrou amigos e pode continuar a acreditar em futuro promissor.
Mas ai veio a tempestade., na forma daqueles desmaios. Desde criança isso acontecia. Era uma coisa que vinha de repente. Ele estava bem, brincando, andando ou fazendo alguma coisa e de súbito empacotava. Simplesmente apagava. Seu pai o levou várias vezes ao médico e um deles diagnosticou labirintite. Nada que merecesse uma preocupação maior. Era coisa que desapareceria com o tempo e com adequado tratamento. Mas com quinze anos, ele teve um apagão feio e começou a espumar pela boca e seus pais resolveram levá-lo a um especialista. Foram feitos vários exames e o diagnóstico veio como um raio que de repente desaba na cabeça da gente e nos deixa completamente grogues. Era epilepsia. Uma doença, que naqueles tempos era considerada incurável. A notícia caiu na sua mente como uma chuva forte, formando uma enxurrada que o arrancava da terra firme onde pensava estar plantado, e o jogou na torrente da vida.
Maroca tinha uma excelente família. Pai e mãe amorosos, irmãos e irmãs compreensiveis e bons colegas no bairro. Por isso, de início não sentiu o peso da barra e achou que poderia superar tudo. Mas logo se viu confrontado com o fato de que nunca seria uma pessoa normal. Mesmo que todo mundo lhe dissesse que um epilético não é, necessariamente, uma pessoa limitada, ele se sentia castrado da possibilidade de uma vida normal. Sabia que não poderia, por exemplo, tirar uma carta de motorista; que jamais conseguiria um emprego fixo, pois não passaria nos exames médicos; que não poderia trabalhar em profissões que demandasse determinadas aptidões físicas, pois as crises que sofria poriam em perigo sua vida e as de outras pessoas eventualmente vinculadas, que não poderia ter filhos, pois eles poderiam herdar a sua doença. Se isso não era limitação, então o que era, respondia ele, com amargura, quando lhe diziam que ele poderia viver uma vida normal.
Nem o consolava o fato de saber que grandes vultos da história do país e do mundo sofreram dessa doença. Listavam-se, entre outros, nomes como os de Alexandre, o Grande, Caio Júlio César, Napoleão, Dom Pedro I, Lenin, os cientistas Alfred Nobel e Von Helmholtz, os escritores Fiódor Dostoievski, Gustave Flaubert e Machado de Assis, o pintor Van Gogh, o roqueiro Eric Clapton, o grande filósofo Sócrates. Etc. E dái? Eles eram eles , ele era ele. Ali, naquela janela para o mundo, nenhum lenitivo ele encontrava nessa companhia de vultos mortos. Eram apenas nomes. Ele precisava mais que esses argumentos para recuperar a confiança no futuro.
A garrafa de plástico tinha se enroscado numa saliência da calçada. Ele ficou olhando para ela e tentando adivinhar quanto tempo ela se agüentaria ali, até que uma onda mais forte a arrancasse daquele refúgio. Seus pensamentos voaram até os dias da sua juventude. Chegara a ser um bom jogador de futebol. Fizera bons amigos naquela época. Principalmente o Samuel e o Toninho. Com eles podia sair, passear pela cidade, conversar, jogar bilhar. Sabia que quando tivesse as convulsões eles o amparariam, o levariam para casa, fariam o que fosse preciso. Com eles sentia-se seguro. Foram os únicos e verdadeiros amigos que tivera. Mas o Samuel mudara de cidade e o Toninho casou-se. E ele se viu sozinho. Tentara fazer novos amigos, e chegou mesmo a estabelecer alguns bons relacionamentos, mas eles duravam muito pouco. Quando tinha as convulsões todo mundo se assustava com aquele rapaz no chão, se contorcendo e espumando pela boca, como se estivesse recebendo um espírito maligno. Logo se afastavam dele e pouco a pouco, não sobrou mais ninguém para sair com ele.
Sim, nos dia da sua juventude o futebol fora um daqueles momentos em que ele se sentiu pelo menos partícipe de alguma coisa. Fazia parte de uma equipe, chegou a ser um bom zagueiro, comemorou inclusive um título de campeão varzeano. Foi, talvez o seu momento de maior resistência como toco de enchente na corrente da vida, pois naquele momento em que gritava ‘É campeão”, ele sentia que podia sim, levar uma vida normal, e até criar raízes, florescer e frutificar, como os seus colegas de time.
Foi uma época em que ele se sentiu confiante o suficiente até para arranjar uma namorada. A única mulher da sua vida. Era a filha do seu Zé Duarte, dono do armazém onde ele arrumara o primeiro e único emprego que teve. Ele estava com vinte e dois anos. Não contara nada nem para o patrão, pai da menina, nem para ela. Tudo ia bem, ele estava feliz e orgulhoso. Tinha namorada, ganhava o seu próprio dinheiro, sentia-se útil ajudando as despesas da família. Sentia-se uma pessoa normal. Levou sorte durante um ano, pois não teve nenhuma convulsão na presença deles. Ele não mentira para eles, apenas ocultara a sua verdadeira condição. E quando aconteceu o que ele mais temia, uma crise em pleno armazém, na frente do patrão e da namorada, não deu outra. Perdeu o emprego e a garota. E nunca mais conseguiu arrumar nem uma coisa nem outra. Enquanto seu pai e sua mãe eram vivos ele resistiu. Mas ela morrera cerca de três anos antes e seu pai a seguira uns dois anos depois. Seus irmãos e irmãs estavam todos casados e morando em outras cidades e pelo que sentira em várias oportunidades que passou algum tempo com eles, eles o queriam bem, mas preferiam estar longe quando ele tinha aquelas convulsões.
Sózinho no quarto, sozinho em casa, sozinho no mundo. Quarenta anos e sem nenhum trabalho para fazer. Quarenta anos anos e nenhum lugar para ir. Quarenta anos e nenhum amigo com quem conversar. Quarenta anos e não havia sequer se deitado uma única vez com uma mulher. Era mesmo um toco de enchente sem nenhum lugar mais para enroscar.
Foi então que ele saiu para a rua úmida, silenciosa e vazia. Desenroscou a garrafa de plástico da saliência onde ela havia se abrigado e acompanhou a sua trajetória pela torrente de água que descia pela rua abaixo. Ela desembocou em outra que descia por uma outra rua. Tornou-se uma torrente mais grossa, mais forte e a garrafa começou a rolar mais depressa. Logo ela caiu em outra torrente, em outra rua mais abaixo. E por fim, mergulhou no canal de um pequeno córrego. Ele seguiu a corrente do córrego até onde ele terminava, no leito viscoso e denso do rio Tietê.
Sem perder de vista a garrafa, ele entrou no rio e deixou-se levar. Não importava mais agora onde iria ser o próximo enrosco. Ele sabia que onde o seu corpo enroscasse, aquela seria a última e definitiva parada.
Um dia o Maroca se cansou de carregar uma existência vazia, pesada e sem sentido e resolveu arriar o fardo. E fez isso da forma mais triste que alguém pode imaginar. Nas águas de um rio. Simplesmente entrou na corrente densa e pútrida do Rio Tietê e deixou-se levar, como um toco de enchente carregado por uma enxurrada.
Era um dia triste, em que uma chuva forte e intermitente havia começado a cair nas primeiras horas da manhã e continuou até o início da noite. Um daqueles dias em que as pessoas só saem á rua para cumprir compromissos que não podem ser adiados.
Dias assim já são aziagos por natureza. Parecem que nos tiram a motivação para viver. Inspiram sentimentos de desconforto e inquietude que a gente não sabe de onde vem. Só sabemos que incomodam. Talvez nós sejamos, realmente, como dizem os filósofos espiritualistas, um espelho do próprio mundo. Quando ele se fecha por fora, nós também nos fechamos por dentro. Se o sol não passa, as sombras cobrem a face da terra, e o nosso espírito entra nessa zona cinzenta, onde o fluxo vital que nos impulsiona à ação parece sofrer uma espécie de drenagem.
É possível imaginar o que o Maroca estava sentindo naquele dia. Ele abriu a janela do quarto pela manhã e ficou olhando para a rua úmida, silenciosa e vazia. Não divisou ninguém no horizonte dos seus olhos. A rua parecia triste, hostil, cinzenta. Ele ficou lá, olhando, durante intermináveis minutos a paisagem inútil e constrangedora. Ninguém apareceu para dizer um alô que fosse. Quem sabe se pelo menos uma viva alma passasse por ali naquele momento e lhe dissesse “bom dia” tudo acontecesse de modo diferente.
Mas não foi assim. Parecia que o mundo havia se acabado. Pelo menos, é o que aparentava ser aquela solidão silenciosa e angustiante que ele presenciava da sua janela. Há muito tempo que já se sentia um morto vivo, enterrado no túmulo do seu quarto, vendo o mundo através de uma vidraça embaçada por suspiros. Não se lembrava da última vez que tinha saído de casa para fazer coisa diferente do que ir ao banco receber a pensão do INSS e passar no supermercado para comprar as coisas que necessitava. Pais mortos, irmãos todos casados e morando em outra cidade, nenhum amigo, nenhuma mulher.
Ficou olhando a rua onde uma pequena enxurrada levava, aos trancos e barrancos, uma garrafa de plástico que teimava em enroscar-se num canto ou em outro, como querendo resistir à torrente que tentava, á força, levá-la embora. Viu a vida como ela fosse um rio e ele um toco de enchente, que a torrente arrasta, mas que incidentalmente se agarra aqui e ali, tentando lutar contra a força que a leva, buscando terra firme, onde possa, quiçá, plantar raízes e até florescer.
Lembrou-se da sua infância, feliz e segura na pequena cidade onde nascera. Lá era só ir à escola pela manhã, jogar futebol no campinho de terra á tarde e á noite, brincar com os colegas na rua. Jogar taco, brincar de bandeirinha, garrafão, queimada. Sentia-se uma árvore jovem, com raízes profundamente fincadas nas terra, que enxurrada nenhuma seria capaz de arrancar. Nela poderia florescer e frutificar.
Depois a família se mudara para esta cidade onde ele vivia agora, lugar bem maior, onde ele demorou algum tempo para se adaptar, mas logo encontrou amigos e pode continuar a acreditar em futuro promissor.
Mas ai veio a tempestade., na forma daqueles desmaios. Desde criança isso acontecia. Era uma coisa que vinha de repente. Ele estava bem, brincando, andando ou fazendo alguma coisa e de súbito empacotava. Simplesmente apagava. Seu pai o levou várias vezes ao médico e um deles diagnosticou labirintite. Nada que merecesse uma preocupação maior. Era coisa que desapareceria com o tempo e com adequado tratamento. Mas com quinze anos, ele teve um apagão feio e começou a espumar pela boca e seus pais resolveram levá-lo a um especialista. Foram feitos vários exames e o diagnóstico veio como um raio que de repente desaba na cabeça da gente e nos deixa completamente grogues. Era epilepsia. Uma doença, que naqueles tempos era considerada incurável. A notícia caiu na sua mente como uma chuva forte, formando uma enxurrada que o arrancava da terra firme onde pensava estar plantado, e o jogou na torrente da vida.
Maroca tinha uma excelente família. Pai e mãe amorosos, irmãos e irmãs compreensiveis e bons colegas no bairro. Por isso, de início não sentiu o peso da barra e achou que poderia superar tudo. Mas logo se viu confrontado com o fato de que nunca seria uma pessoa normal. Mesmo que todo mundo lhe dissesse que um epilético não é, necessariamente, uma pessoa limitada, ele se sentia castrado da possibilidade de uma vida normal. Sabia que não poderia, por exemplo, tirar uma carta de motorista; que jamais conseguiria um emprego fixo, pois não passaria nos exames médicos; que não poderia trabalhar em profissões que demandasse determinadas aptidões físicas, pois as crises que sofria poriam em perigo sua vida e as de outras pessoas eventualmente vinculadas, que não poderia ter filhos, pois eles poderiam herdar a sua doença. Se isso não era limitação, então o que era, respondia ele, com amargura, quando lhe diziam que ele poderia viver uma vida normal.
Nem o consolava o fato de saber que grandes vultos da história do país e do mundo sofreram dessa doença. Listavam-se, entre outros, nomes como os de Alexandre, o Grande, Caio Júlio César, Napoleão, Dom Pedro I, Lenin, os cientistas Alfred Nobel e Von Helmholtz, os escritores Fiódor Dostoievski, Gustave Flaubert e Machado de Assis, o pintor Van Gogh, o roqueiro Eric Clapton, o grande filósofo Sócrates. Etc. E dái? Eles eram eles , ele era ele. Ali, naquela janela para o mundo, nenhum lenitivo ele encontrava nessa companhia de vultos mortos. Eram apenas nomes. Ele precisava mais que esses argumentos para recuperar a confiança no futuro.
A garrafa de plástico tinha se enroscado numa saliência da calçada. Ele ficou olhando para ela e tentando adivinhar quanto tempo ela se agüentaria ali, até que uma onda mais forte a arrancasse daquele refúgio. Seus pensamentos voaram até os dias da sua juventude. Chegara a ser um bom jogador de futebol. Fizera bons amigos naquela época. Principalmente o Samuel e o Toninho. Com eles podia sair, passear pela cidade, conversar, jogar bilhar. Sabia que quando tivesse as convulsões eles o amparariam, o levariam para casa, fariam o que fosse preciso. Com eles sentia-se seguro. Foram os únicos e verdadeiros amigos que tivera. Mas o Samuel mudara de cidade e o Toninho casou-se. E ele se viu sozinho. Tentara fazer novos amigos, e chegou mesmo a estabelecer alguns bons relacionamentos, mas eles duravam muito pouco. Quando tinha as convulsões todo mundo se assustava com aquele rapaz no chão, se contorcendo e espumando pela boca, como se estivesse recebendo um espírito maligno. Logo se afastavam dele e pouco a pouco, não sobrou mais ninguém para sair com ele.
Sim, nos dia da sua juventude o futebol fora um daqueles momentos em que ele se sentiu pelo menos partícipe de alguma coisa. Fazia parte de uma equipe, chegou a ser um bom zagueiro, comemorou inclusive um título de campeão varzeano. Foi, talvez o seu momento de maior resistência como toco de enchente na corrente da vida, pois naquele momento em que gritava ‘É campeão”, ele sentia que podia sim, levar uma vida normal, e até criar raízes, florescer e frutificar, como os seus colegas de time.
Foi uma época em que ele se sentiu confiante o suficiente até para arranjar uma namorada. A única mulher da sua vida. Era a filha do seu Zé Duarte, dono do armazém onde ele arrumara o primeiro e único emprego que teve. Ele estava com vinte e dois anos. Não contara nada nem para o patrão, pai da menina, nem para ela. Tudo ia bem, ele estava feliz e orgulhoso. Tinha namorada, ganhava o seu próprio dinheiro, sentia-se útil ajudando as despesas da família. Sentia-se uma pessoa normal. Levou sorte durante um ano, pois não teve nenhuma convulsão na presença deles. Ele não mentira para eles, apenas ocultara a sua verdadeira condição. E quando aconteceu o que ele mais temia, uma crise em pleno armazém, na frente do patrão e da namorada, não deu outra. Perdeu o emprego e a garota. E nunca mais conseguiu arrumar nem uma coisa nem outra. Enquanto seu pai e sua mãe eram vivos ele resistiu. Mas ela morrera cerca de três anos antes e seu pai a seguira uns dois anos depois. Seus irmãos e irmãs estavam todos casados e morando em outras cidades e pelo que sentira em várias oportunidades que passou algum tempo com eles, eles o queriam bem, mas preferiam estar longe quando ele tinha aquelas convulsões.
Sózinho no quarto, sozinho em casa, sozinho no mundo. Quarenta anos e sem nenhum trabalho para fazer. Quarenta anos anos e nenhum lugar para ir. Quarenta anos e nenhum amigo com quem conversar. Quarenta anos e não havia sequer se deitado uma única vez com uma mulher. Era mesmo um toco de enchente sem nenhum lugar mais para enroscar.
Foi então que ele saiu para a rua úmida, silenciosa e vazia. Desenroscou a garrafa de plástico da saliência onde ela havia se abrigado e acompanhou a sua trajetória pela torrente de água que descia pela rua abaixo. Ela desembocou em outra que descia por uma outra rua. Tornou-se uma torrente mais grossa, mais forte e a garrafa começou a rolar mais depressa. Logo ela caiu em outra torrente, em outra rua mais abaixo. E por fim, mergulhou no canal de um pequeno córrego. Ele seguiu a corrente do córrego até onde ele terminava, no leito viscoso e denso do rio Tietê.
Sem perder de vista a garrafa, ele entrou no rio e deixou-se levar. Não importava mais agora onde iria ser o próximo enrosco. Ele sabia que onde o seu corpo enroscasse, aquela seria a última e definitiva parada.