Páginas de Sangue - Parte Final

7 dias depois...

Tudo corria bem, o sucesso do livro até saíra no jornal. Uma excelente aceitação. E eu então começava a ganhar dinheiro. Até cogitavam um prêmio. Julia finalmente havia sido contratada pela nova revista. Estávamos ambos empolgados profissionalmente. Eu até já pensava em lançar mais alguma coisa. Mas dessa vez sentia que a inspiração fluiria normalmente. O homem da maleta não havia mais aparecido e nada mais pedira em troca. Os jornais ainda falavam do colecionador de corações, mas com menos ênfase, pois a polícia já estava quase desistindo do caso devido à completa falta de pistas. O que eu devia ter feito estava feito. E um lago de sangue agora já seco estava esquecido. De volta à rotina. Era fim de tarde, Julia e eu tomávamos um café na cafeteria abaixo de nosso apartamento. Mas obviamente era diferente, pois começava a receber um certo reconhecimento do público e muitos me cumprimentavam. As crianças em agradecimento, os pais por agradecimentos em nome das crianças.

-Nossa! Está ficando popular. – argumentou Julia, após uma mãe agradecer-me de coração, dizendo que seu filho tornou-se até mais educado após ler meu livro e que todos seus sobrinhos e filhos de amigas também o fizeram. – Devia se candidatar a prefeito.

Ambos rimos.

-Tenho uma nova sessão de fotos marcada para amanhã. – acrescentou Julia, ironicamente. – Um dia vou chegar lá. Aí então, meu querido, as pessoas viram me cumprimentar também.

-Por quê? Está com inveja? – alfinetei-a carinhosamente.

-É claro que não, amor. Não agüentava mais aquela sua cara de louco em frente à máquina de escrever suplicando por idéias. Estou tão feliz quanto você.

-Sabe de uma coisa? – perguntei-a.

-Não. O quê?

-Amo você.

Julia sorriu amavelmente. Mas nosso momento de romantismo foi interrompido por seu celular.

-É Amanda. – ela disse, olhando o visor antes de atender. Amanda era sua irmã mais velha. – Alô...

Mas não pude ouvir a conversa, pois três meninas logo pararam em minha mesa. Curiosamente, eram trigêmeas. E ambas carregavam uma cópia do livro. Deviam ter uns 10 anos.

-Olá, garotinhas.

-Olá, senhor. – elas disseram juntamente, em uma sincronia invejável. Fui obrigado a rir.

-Nossa! Que coro, hein? – logo acrescentei.

-Queríamos agradecer-lhe por sua obra, senhor. Muito obrigado!

-Querem que autografe?

Ambas balançaram a cabeça positivamente e os entregaram a mim. Puxei uma caneta do bolso e postei uma carinhosa dedicatória àquele engraçado trio de ruivinhas.

-Aqui está, meninas. E como se chamam?

E com aquela espetacular sincronia, responderam:

-Vanessa.

-As três têm o mesmo nome? – perguntei curiosamente.

Novamente balançaram a cabeça positivamente.

-Meninas! – chamou a mãe, que as aguardava na porta. – Vamos! Deixem o moço tomar seu café.

-Obrigada, senhor. – finalizou o coro, antes de dirigir-se à mãe, a qual lançou-me um simpático aceno com as mãos.

-De nada, garotas. – falei, correspondendo ao cumprimento. Depois, elas se retiraram. Quando virei-me novamente para Julia, ela já estava desligando o celular.

-Viu só aquilo? – perguntei-lhe.

-Vi, sim. Por quê?

-Que espécie de mãe coloca o mesmo nome nas filhas trigêmeas?

-Vai saber...

-O que sua irmã queria?

-Brigou novamente com o ignorante do Ricardo.

-De novo?

-É. Ele saiu de casa e a deixou chorando. Ela pediu para eu dar uma passada lá.

-E você vai?

-Tenho que ir. É minha irmã. Quer ir também?

-Não, acho que vou ficar em casa.

-A propósito... – acrescentou Julia – Meus sobrinhos adoraram seu livro.

-Que bom.

-Viu só. – ela continuou carinhosamente. – A família está conquistada. Logo podemos casar. E não pense que...

Subitamente, fomos surpreendidos por um violento brecar de um caminhão na rua. Todos na cafeteria olharam assustados para fora e saíram para ver.

-O que aconteceu? – perguntou-me Julia.

-Não sei.

Acompanhando os outros, também nos retiramos para verificar o que havia ocorrido. Lá fora, uma multidão aglomerava-se diante de um caminhão brecado. Dava para ouvir os gritos desesperados de uma mulher.

-O que aconteceu? – perguntou Julia a um dos transeuntes que observavam de longe.

-Atropelamento. – ele respondeu. – Parece que foi uma criança.

-Meu Deus! – exclamou Julia.

E quanto mais nos aproximávamos, mais alto e desesperado ficava o grito da mulher:

-Meu filho! Meu filho! Acorda!

Quando chegamos perto para realmente ver o que havia acontecido, choquei-me imediatamente. E Julia abraçou-me apavorada. A mãe ajoelhada segurava o que sobrara de seu menino, pois agora uma de suas metades reduzia-se a um pedaço de carne. O pequeno intelectual simpático da livraria repousava estraçalhado nos braços da mãe. Metade do corpo encontrava-se de baixo do caminhão. Mas em seu rosto, os óculos ainda lhe davam aquele ar de pequeno intelectual. A não ser por uma das lentes que, ao quebrar, rasgou uma de suas vistas. O caminhoneiro chorava desesperadamente ajoelhado ao chão:

-Meu Deus! Ele se jogou na frente! Eu juro! Ele se jogou!

-Realmente ele tem razão. – comentou uma transeunte a outra. – Não teve culpa de nada. Nem estava correndo. Eu vi tudo. A criança simplesmente largou a mão da mãe, desceu da calçada e se jogou na frente do caminhão.

-Meu Deus! – comentou a outra. – Pobre mãe.

E por entre gritos de dor e agonia em uma rua coberta de lágrimas, arrepiou-me a espinha ao ver o que o garoto segurava desesperadamente nas mãos, com os dedos contorcidos de tanta força. Meu livro.

Chegamos em casa atordoados pela tragédia, torturados por um silêncio perturbador. Após eu dizer a Julia que o garotinho havia ido à noite de autógrafos, ela impressionou-se mais ainda. E chorava discretamente, apavorada pela mórbida coincidência. Mas acho que ela nem percebeu o livro. Eu não conseguia sequer piscar, pois inúmeros pensamentos diabólicos sufocavam minha mente. Por que ele se jogou diante do caminhão? E por um instante lembrei-me dele na livraria. Cheio de vida e empolgação. Para depois, a apunhalada da morte. Fria e violenta. No banheiro, Julia tentava se recompor da maldosa e atordoante visão que acabávamos de ter. Apenas permaneci sentado no sofá, em uma espécie de estado de choque.

-Meu Deus! Que tragédia. Acho que nunca vou me esquecer daquela cena. – disse Julia, saindo do banheiro e secando as lágrimas. – Os gritos daquela mãe. Que dor.

Não falei nada, apenas continuei a observar hipnoticamente o nada.

-Tenho que ver Amanda. – ela logo lembrou, um tanto zonza. – Deve estar preocupada. Você vai ficar bem?

Não a respondi. As palavras não saíam. Estava engasgado. Mudo. Louco.

-Não demoro. – completou Julia, pegando sua bolsa e saindo.

Logo após ela fechar a porta, corri ao banheiro. Precisava vomitar. Para tentar pôr para fora aquela agonia que corroia minhas entranhas. De dentro de mim pareceu jorrar um mar de desespero e indignação. Voltei para a sala, ainda enjoado, para então sentar-me novamente como um vegetal no sofá. Um vegetal podre, enterrado nas profundezas do acaso. Por que ele se jogou diante do caminhão? A única coisa que me ocorreu foi ligar a televisão. Estavam passando umas propagandas. Troquei de canal, na busca de algo que mente pudesse absorver, para livrar-me um pouco da loucura. Um jornal local. Previsão do tempo.

-Agora uma notícia impressionante. – alertou a apresentadora. – Em uma pequena cidade no interior do estado, quatro irmãos cometem um assustador suicídio durante a madrugada. Ao acordar, os pais depararam-se com os quatro deitados em suas devidas camas e os pulsos cortados.

No quarto dos garotos, sentada em uma das camas, a mãe dava um triste depoimento ao repórter. Dava para perceber que estava dopada por pesados calmantes.

-Realmente não sei o que aconteceu com meus meninos. Eram crianças normais. – ela disse, e começou a chorar. – Quando eu os vi, eu... eu... Eles estavam deitados em suas camas, lendo. Felizes. E depois foram dormir. De manhã, quando abri a porta eu os vi. – o choro aumentou: – Eles... Os pulsos... Os rostos...

Rapidamente desliguei a televisão.

Os cabelos de minha nuca contorceram-se de pavor. Enquanto a mãe desesperada escarnava sua depressiva agonia, eu vi. Em cima do criado mudo. Quatro exemplares repousados alinhadamente um sobre o outro. Como corpos. Um para cada irmão. Um para cada morte. Minhas páginas de glória derramaram mais sangue inocente. Cuspido com raiva na face do mundo. Como uma ironia. Uma piada diabólica. A mão gigante do comediante divertia-se com o acaso. E atirava corpos ao chão. O ar tornou-se pesado sobre minha cabeça, esmagando meus olhos com fúria. Precisava respirar. Andei cambaleando vagarosamente à sacada, procurando por uma brisa de tranqüilidade. Vento melancólico. Sutil. Soprou meus cabelos. Mas algo de diabólico vagava junto a ele. Como um ruído. Um corte agudo de dor intensa. Para depois eu ser acometido por um susto tenebroso. Lá embaixo. 7 andares abaixo. Na calçada. Estagnadas e envoltas pela penumbra, em meio a transeuntes alheios, as trigêmeas olhavam-me nos olhos. Pareciam espectros perdidos desesperados. Observando. Imóveis como o silêncio. Apavorado, logo saltei para dentro, afastando-me lentamente da sacada. Por Deus, não queria olhá-las novamente. Por Deus! Inúmeras lembranças do que vários me falaram me ecoaram pela mente: “Obrigado, senhor!” “Minha filha adorou seu livro.” “As instituições educacionais também o estão promovendo.” “Estavam deitados em suas camas. Felizes. E depois foram dormir.” “Meu Deus! Ele se jogou na frente!” “A propósito, meus sobrinhos adoraram seu livro.”

Do ímpeto de minha agonia comecei a suar. Desespero. Medo. Culpa. Lágrimas. A respiração tornou-se ofegante. Era preciso descobrir a verdade. O que estava acontecendo por entre este pesadelo. Saí correndo do apartamento como um louco. E era realmente apenas isso que me restava no momento. A loucura. Nem peguei o elevador. Mas os degraus da escada pareciam multiplicar-se por mil. Minhas mãos suavam encharcadas. No último lance, cruzei com uma mulher, que carregava o filho pelas mãos. E a criança apertava o livro contra o peito. Passei correndo por eles. Guiado pelo desespero. A mãe olhou assustada. A criança assustou-me ao olhar. Visão sem vida. Lancei-me à rua correndo feito louco. Procurando. E ao mesmo tempo não querendo achar. Toda criança pela qual eu passava segurava meu livro. Parecia um pesadelo. Mas não conseguia acordar. Meus olhos sequer conseguiam piscar para buscar um pouco de alívio. Tudo era medo febril. Continuei correndo. Apenas correndo. Até chegar à praça. Onde o encontrei pela primeira vez. O homem da maleta. Ela estava vazia. Silenciosa e escura. Altamente aturdido, olhei para os lados procurando o improcurável. A única coisa que rodeava-me era o nada. Sempre o nada.

-Apareça! – eu gritei feito um louco. – Vamos! Onde está, seu grande filho da mãe desgraçado! Vamos! Está com medo?

De repente uma neblina fria começou a dissipar-se lentamente, surgindo dos bueiros e contornando o ar. Meu corpo cobriu-se por um arrepio gélido e assustador. Como uma apunhalada.

-Procurando por mim? – ele disse atrás de mim, coberto pela fumaça e com aquele debochado cavalheirismo. Não dava para enxergar nada, apenas um esboço de seu rosto perdido em meio à fumaça.

-O que você fez, seu desgraçado?

-O que eu fiz? – ele indagou calmamente. – Devia rever seus conceitos. E tomar cuidado com o que fala.

-Apareça, Demônio!

-Demônio? Por que insiste em classificar-me como uma fantasia?

-O quê? O que disse?

E de repente, em fração de segundos, toda a neblina voltou aos bueiros, como um sopro inverso de agonia. Mas agora não estávamos mais na praça. Uma noite em um deserto escuro coberto por um céu negro e vazio revelou-se diante de minha loucura. Calei-me imediatamente após a fusão, dominado por um silêncio estridente, contemplando a beleza do vácuo. Onde nada, absolutamente nada nos rodeava. Apenas eu e o estranho, que agora mostrava-se muito mais do que um simples homem da maleta.

-Bem vindo ao grande Além! – disse-me calmamente, tão nítido quanto a falta do vento.

-Que lugar é esse?

-Meu lar, senhor.

-Lar? Então você é...

-De novo com este folclore besta? Não me ouviu? Não existe Diabo algum.

-O quê?

-E se eu lhe dissesse que tudo que supostamente sabe em meio a toda sua ignorância é mentira?

-Não faz sentido.

-Claro que não. O mundo é uma piada. Um escárnio do grande criador. Digamos que o bom Deus o qual todos louvam é um homem doente. Sofre de um grave desvio de personalidade. Uma espécie de cirurgião louco que carrega o ser humano em uma maca, e segura o bisturi em sua santa mão. O que será desta estranha cirurgia? Um pesadelo? Um milagre? Depende de como foi o dia dele. Então depois ele volta a si e vê o que fez. Mais um sangue inocente derramado. Um erro. Atordoado por sua mente, suplica por algo para depositar toda sua culpa e livrar sua consciência das maldades e tragédias do mundo. As quais ele mesmo cometera. Então ele o chama de Lúcifer.

-Mas e o inferno? As almas?

-Almas? Quem disse que elas existem? “Do pó viemos, ao pó retornaremos.”, não se lembra? Encare isto literalmente. Quanto ao inferno, está pisando nele. O qual nada mais é do que um depósito no qual ele deposita suas experiências mal sucedidas. Como eu. Um anjo sem asas. E eles. – completou o anjo, apontando para um imenso buraco atrás de mim. – Meus filhos.

E quando olhei para o interior da cratera, pude ver um aglomerado de pequenas criaturas do tamanho de crianças, debatendo-se umas sobre as outras, tentando achar uma brecha para respirar. Pareciam uma espécie de gárgulas gosmentas e sem pele.

-Veja. Ali está Gabriel, o anjo no qual Deus depositava sua maior confiança. Depois ele o transformou nisso. E o jogou aqui. – ele disse – apontando para trás de mim. Foi quando vi surgir uma figura curvada e esbranquiçadamente doente passar diante de meus olhos. O anjo Gabriel agora nada mais era do que um pálido descaso. Em suas mãos ele carregava um balde de ferro. E ao chegar à beira do grande buraco, começou a retirar corações e jogá-los lentamente para as criaturas, as quais disputavam ferozmente por um pedaço de carne. Para depois sair e caminhar de volta ao nada.

-No 6° dia, Deus criou o homem. – continuou o anjo sem asas. – No 7°, cometido por sua personalidade a qual vocês chamam de Diabo, os criou. Mas ao ver o que havia feito, abandonou-os neste buraco. E eu os crio desde então. Pobres crianças. Nunca tiveram mãe. Somente o coração feminino para manter-lhes vivos. A matéria prima do amor. Pois somente a mulher pode ser mãe.

-E as crianças? – perguntei impressionado. – O que fez com as crianças?

-Estão logo ali. – respondeu. – apontando para uma espécie de escada que eu não havia visto antes. Quando vi o que havia lá em baixo, pareceu explodir de minha boca um impressionado e desesperado grito sem som. E imediatamente uma lágrima escorreu de meu rosto. Penduradas por ganchos como carne em um açougue, milhares de peles infantis. Apenas as peles. Do corpo inteiro. Parecia um abatedouro humano. E cheio de tristeza.

-Deus não deu pele a meus pobres filhos. E a vida no buraco repleta de falta de luz os deixou doentes. Não agüentariam o calor do Sol. Mas agora eles as terão. Roubadas dos mais favorecidos. – ele disse, sendo acometido por uma crescente fúria. Enquanto eu observava aquelas pobres crianças reduzidas à simples pedaços de couro pendurados em um gancho, comecei a chorar. O domínio da culpa esfaqueou minha mente. Repleto de ódio, o anjo sem asas proclamou:

-E depois. Juntos. Eu e minhas crianças abrimeremos as portas do inferno. Pregaremos então a nossa maldade no mundo daquele arrogante. Tudo será nosso. Pois da conjuração, nascerá a pureza dos abandonados. As crianças do além terão seu lugar perante a Terra. – e gritando ele completou ao vazio: - A voz do Inferno!

-Não. O que foi que fiz? – sussurrei a mim mesmo perante lágrimas. Para depois, gritando, jogar-me em sua direção:

-Desgraçado!

Mas minha tentativa de acertar seu rosto com um soco fora em vão. Meu corpo atravessou-o rapidamente, fazendo-me cair ao chão, como se ele fosse apenas um espectro. Uma corrente carregada de energia negativa e intocável.

-Por que eu? Por que eu?

-Ora, não seja ingrato. E o que o faz achar que é apenas você? Por que pensa ser tão especial? O que acha que são grandes nomes que viram lendas da noite para o dia dentro das passageiras febres infantis como você? Estão todos inseridos no mesmo pacto que assinou ao pegar aquela maleta e entregar seus passos a mim. A anulação dos ideais em prol do propósito: colaboradores do grande além. O meu além!

-Como pôde?

-Como pude? Veja no que ele nos transformou. Sou apenas um anjo decadente. E Gabriel agora não passa de um profanador de túmulos, que rouba peles na madrugada. Acha ainda que sou o vilão?

-Está tudo acabado. – suspirei ajoelhado, para depois cair com a testa ao chão. – Não há mais o que fazer.

-Está enganado, meu senhor. Em troca dos corações, nós lhe demos o que queria: a capacidade do domínio da mente e suas inspirações. Mas e quanto à fama e o dinheiro? Nada está acabado. Pois ainda resta a dívida final.

Quando ergui a cabeça, meu último grito de dor extrema:

-Não! Não! Ela não!

E lá estava meu maior pecado. Julia amarrada nua em uma cruz. Debatendo-se diante do prelúdio da dor. Assim como todas as outras. Chorando desesperadamente, apenas olhei em seus olhos, que suplicavam por vida. Suas lágrimas também escorriam por sobre seu rosto contorcido de clemência.

-Você está certo. – finalizou o anjo. – Está tudo acabado. Não há mais o que fazer. O mundo para sempre penará enquanto ainda for mundo. Somente a voz do inferno pode pairar sobre a salvação. Enquanto isso, o sangue corre pelas calçadas e gritos ecoam na escuridão. Corpos abertos têm seus corações arrancados para alimentar as bestas escondidas no subsolo da dor, o porão dos esquecidos. E no final não irá sobrar nada. Nada. Pois o mal triunfará.

Estas foram suas últimas palavras, para depois entregar-me a adaga, a qual segurei fortemente com as duas mãos enquanto chorava.

-Não. – suplicou Julia sutilmente.

Em meio à dor interna ergui os braços lentamente, sentido o desesperado pulsar de cada músculo. Meus olhos e os de Julia encararam-se pela última vez, dragados pelo prenúncio do desconhecido.

-Por favor. Não. – ela clamou pela última vez. Para depois sentir a lâmina fria penetrar seu corpo. Lâmina aquela que eu empunhava chorando. Bem no meio do peito. A vermelhidão intensa jorrada de seu ser tocou minhas mãos enquanto ela gritava de dor. De cima para baixo continuei rasgando seu tórax. O sangue escorreu por aquele corpo nu, que tantas vezes fora o castiçal de meu prazer, até chegar em suas pernas e finalmente escapar por entre os dedos de seus pés. Do âmago de seu desespero, puxei o coração. E entre lágrimas de tristeza e medo, ela morreu.

O buraco no peito trouxe consigo o cheiro de ferrugem. Carne recém morta. Fresca. O sangue ainda quente borbulhava hemoglobina viva. Um rasgo entre os seios confessava a falta de um coração agora arrancado. E eu o segurei sutilmente, pois ainda era possível sentir cada batida. Enquanto minhas lágrimas pingavam e misturavam-se timidamente ao vermelho abundante, aquele pedaço de carne murmurava seus últimos momentos em minhas mãos. Por um instante hesitei. Mas era preciso realizar a última entrega. Era preciso...

FIM!

Gabriel Rosa
Enviado por Gabriel Rosa em 09/05/2011
Reeditado em 09/05/2011
Código do texto: T2959241
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