Páginas de Sangue - Parte III

01h39min. Era um local um tanto escuro. Há algumas quadras de meu apartamento. Um jazz tocava sutilmente enquanto a fumaça de cigarros formava uma nuvem no teto. Pude reconhecer a canção. Prelude to a Kiss, de Duke Elington. Clássico. Uma de minhas prediletas.

Pedi um whiskey ao barman. O primeiro gole desceu rasgando, abrindo minhas entranhas e produzindo uma respiração extremamente confortável. Logo tomei outro.

-Me paga uma bebida? – ela perguntou. Uma ruiva. Linda. Monumental. Um decote fantástico. Seus seios pareciam implorar por vida própria. Estava um tanto embriagada.

-O que você bebe? – perguntei.

-Gim com tônica.

-Um gim com tônica para a moça. – pedi ao barman. Não pude deixar de perceber a protuberante marca de batom vermelho que ficara em seu copo. Parecia uma provocação. Um convite. De repente a imaginei morta.

-O que faz aqui? – perguntei.

-Sabe aquelas noites em que parece que vai enlouquecer?

-Claro, e como.

-Pois é. Não há nada melhor do que enlouquecer ouvindo um bom jazz.

-Gosta de jazz? – perguntei.

-Se gosto? John Coltrane me faz viajar.

-Coltrane é bom. Mas prefiro Duke Elington.

-Duke Elington? Adoro Warm Valley.

-Sério? É bom encontrar uma amante do jazz.

-Pois é. E o que você faz por aqui?

-Apenas arejando a cabeça.

-E o que você faz?

-Sou escritor.

-Sério? Que legal! E o que escreve?

-Contos. Poemas. Mas agora estou escrevendo um livro. Algo novo para mim. Diferente.

-E do que se trata?

-Se trata de...

-Espere, espere. – ela interrompeu. – Não precisa me dizer. Meu ex-marido era escritor e também não gostava de comentar sobre seus projetos. Mas tenho certeza de que será algo grandioso.

-Já foi casada?

-Sim. Aquele canalha!

-E por onde ele anda agora?

-Me trocou por uma adolescente ninfomaníaca.

-Que droga, não?

Dei um último gole em meu whiskey e paguei o barman.

-Vamos? – perguntei a ela, levantantando-me.

-Nossa! Que direto. Isso é um convite? – ela indagou, com uma voz extremamente sexy e excitante.

-O que você acha?

-E aonde vamos?

De repente coloquei a mão em meu bolso e senti uma chave, a qual segurei em minha mão por alguns segundos. Nunca a havia visto antes. Foi quando percebi. Era para ela estar lá. Eles a colocaram lá. Pude avistar mentalmente o local ao qual pertencia aquela chave. Sabia que era para lá que deveria ir. Mesmo sem nunca ter estado no lugar, meus passos automaticamente saberiam para onde guiar-me. Pude avistar mentalmente o local. Escuro. Perfeito. Era lá que um novo sacrifício deveria ser consumado. Mais um banho de sangue. E de idéias.

-É para lá que vamos? – ela perguntou. Mas estava muito distraído para responder.

-É para lá que vamos? – repetiu.

-Como?

-A chave. É para lá que vamos?

-Ah, sim. Vamos?

Ela se levantou e caminhamos em direção à porta. Tudo era vermelho nela; cabelo, batom, vestido. Só faltava o sangue. Aí assim o ciclo unicolor estaria completo. E tudo então faria sentido.

02h01min. A porta estava um tanto emperrada. Precisei forçá-la para que abrisse. Realmente. Era como havia visualizado. Escuro. Perfeito. Móveis cobertos por lençóis brancos marcavam mais ainda os ares de morbidez. O cenário perfeito para um grito na noite.

-É aqui que mora? – ela perguntou, estranhando um pouco o lugar.

-Me mudei ontem. – inventei – E ainda não deu tempo de arrumar tudo.

-Ah, sim.

Logo sentou-se no sofá e começou a tirar os sapatos. Tanto as unhas dos pés quanto as das mãos também eram vermelhas. A mulher era praticamente uma gota de sangue viva. Que andava por aí desfilando glóbulos pela noite. Sem que eu dissesse nada, andou em minha direção. Passos silenciosos. Meigos pés sobre um assoalho empoeirado. Estava claro. Seus olhos confessavam sua vontade e a boca respirava uma só palavra: sexo. E de repente colou seus lábios nos meus, envolvendo meu corpo com os braços. Seu perfume parecia vagar por um horizonte de pornografia. Logo me jogou no sofá. Ferozmente. Tirou o vestido. Seus seios agora à mostra revelavam-se maiores ainda. Duas circunferências perfeitas perdidas em um mundo onde o acaso pode não nos ser conveniente. É impressionante a idéia de como às vezes o sexo sentencia nossas vidas. Nunca sabemos o que nos aguarda após o coito. Talvez a satisfação. Talvez o fim. E então ela sentou-se sobre mim, pondo em prática todo seu desejo por prazer, roçando seus seios em minha boca. Abriu meu zíper. E tudo começou. Quente. Úmida. Seu corpo movia-se como uma dança. Quando inclinou a cabeça para trás visualizando o orgasmo, pude observar seu pescoço. Um convite. E quando ela ia dar seu grito de êxito, eu apertei. Apertei com toda força. Seus olhos arregalaram-se em uma sensação de pavor e desespero. O rosto começou a ficar vermelho. A língua preparava-se para sair da boca e implorar por socorro. A dança corporal agora era por sobrevivência. Ela desmaiou. Mas mesmo assim a senti gozar.

02h16min. Amarrada em uma viga. Nua. Amordaçada. Debatendo-se. Sem poder se mover. Lágrimas viajavam por seu rosto, suplicando por clemência. Seus olhos verdes sobpostos por longos cílios brilhavam uma apavorante agonia. Em cima de uma mesa havia um pano enrolado. Eu o abri. Um belo jogo de lâminas apresentou-se a mim. Antes de escolher, as observei com cuidado. Sutileza. Uma mais brilhante e afiada que a outra. Escolhi. E lá estava ela. Esperando-me para o abate. Lentamente, aproximei-me. Silêncio. Apenas seus gemidos abafados. Cada passo parecia uma eternidade. Mas fiz questão de apreciar cada segundo. Cada lágrima. Como uma nota de jazz. Mesmo sem saber ela estava contribuindo para o processo de criação. Não havia porque chorar. Não havia o que temer. O sacrifício. Enterrei a faca em seu ventre. Um grito abafado de dor e desespero. Os olhos pareciam saltar da órbita. Minha mão entrou junto. Para testemunhar a mutilação de seus órgãos. Tudo pulsava lá dentro. O mesmo fervor de sua vagina. Quando puxei a faca, um mar de sangue e vísceras atingiu o chão, jorrando por todos os lados. Os lençóis já não eram mais brancos. Um último suspiro. Seu corpo estava entregue. Morta. Puxei o coração e o posicionei diante de seus pés. Afastei-me para observá-la pela última vez. Apenas o silêncio. E gotas de sangue que mergulhavam ao chão. Uma pintura. O testemunho da morte diante do caos.

Na manhã seguinte, tomávamos café em casa. O dia estava um pouco acinzentado.

-Onde esteve ontem à noite? – Julia perguntou-me.

-Como assim?

-Ontem de madrugada acordei para tomar água e percebi que não estava.

-Saí para arejar a cabeça.

-No meio da madrugada?

-E daí. Existe horário propício para arejar a cabeça?

-Não. Só fico preocupada em saber que sai de repente no meio da noite.

-Sei cuidar de mim.

-Não estou falando isso. Apenas gosto de quando está em casa. Faz eu me sentir segura.

-Nunca estamos seguros.

-O que há com você?

-Nada. Só não gosto que me encham de perguntas.

-Está bem, “senhor não gosto de perguntas”. Vou ficar calada se é o que quer. – ela acrescentou com ironia.

-Não acredito que vamos brigar só porque resolvi dar uma caminhada de madrugada.

-E quem aqui está brigando?

-Você.

-Calma, querido. – ela consertou, abraçando-me por trás para evitar uma briga. – Só acho que em vez de sair por aí, poderia estar na cama com sua noiva. Não é pedir demais.

-Certo. Desculpe-me. Da próxima vez eu aviso.

-Todo bem. Agora vamos tomar café. Não quero me atrasar para minha própria exposição. – ela acrescentou, sentando-se à mesa.

Após o café, Julia foi tomar banho e eu sentei à mesa para escrever. Nada me impediu. Um mar de sangue e vísceras agora transformava-se em palavras. E os pequenos seres que aguardavam minha criação logo poderiam por as mãos no fruto de meu sacrifício, para beber um pouco do sangue que derramei. Crianças do mundo inteiro poderiam regozijar-se diante de minhas páginas. Pois era para elas que eu escrevia. Quem poderia imaginar que daqueles gritos de agonia sucumbiria uma obra infantil? Mas era o que me vinha à mente e então era isso que precisava escrever. Pelo menos era melhor do que passar minutos de sufoco diante de uma parede branca em minha cabeça. E eu sabia. Sabia que com aquele livro meu nome seria reconhecido, pois no momento em que peguei aquela maleta, foi o que senti. A anulação em prol do propósito. Sentia que meus passos já não pertenciam mais a mim. Mas era gratificante ver cada página sendo preenchida, juntando-se umas as outras para assim formarem o interior do contexto. Enquanto escrevia, Julia saiu do banho, aparecendo na sala de toalha e secando os cabelos.

-Precisa mandar alguém consertar aquela droga de chuveiro. A água esquenta e esfria o tempo todo. – ela chegou dizendo.

-Segunda eu ligo para o encanador. – À que horas é sua exposição? – perguntei-lhe enquanto dirigia-se ao quarto.

-4:30. – ela gritou – Você vai, não vai?

-Sim, é claro.

-Sabe aqueles editores daquela revista da qual lhe falei? – indagou empolgadamente – Eles vão estar lá.

-Não está feliz com a Hell Porn?

-Não é este o caso. – respondeu, caminhando novamente ao quarto. – É que a Porn & Blood é outro nível. Todos a almejam. Falando em almejar... – ela trocou de assunto. – Como vai seu livro?

-Bem. – respondi-lhe com notável entusiasmo.

-Acha que falta muito?

-Acho que não. Logo eu termino.

-Nossa. – ela exclamou – voltando à sala, agora vestida. – Não acredito que já está terminando?

-Acho que mais alguns dias apenas.

-Você é mesmo uma máquina. – afirmou com aquele rostinho de malícia que somente ela sabia fazer. Fui obrigado a rir. Logo ela também.

Então voltou para o quarto para terminar de se arrumar. E eu continuei com meu ritual, letras sucumbidas de mares de sangue. Do jeito que o ritmo ia, realmente não demoraria para terminar. Talvez apenas mais uns quatro ou cinco dias. Quatro ou cinco mortes. Obviamente, precisaria de mais uma ajuda. A qual eu buscaria através da dor.

-Nossa! Preciso ir. – disse Julia voltando à sala.

-Já?

-Sim, temos que terminar os preparos finais. – respondeu, pegando sua bolsa e dando-me um beijo. – Vê se almoça hoje, está bem? Não vai dormir em cima da máquina de novo. Espero você na galeria.

-Pode deixar. Vou estar lá.

E depois bateu a porta. A sós com meu monstro, dediquei novamente a palpitação de meu ser a escrever por horas a fio, lembrando apenas de respirar. E de vez em quando um cigarro. Para respirar melhor ainda, enquanto dava vida aos personagens do livro; crianças roubadas por um malfeitor que ambiciona a idéia de usá-las para seu próprio interesse. Mas elas libertam-se ao encontrar um quebra-cabeça no qual continha todo o segredo de seus maiores prazeres. E nele elas entram, para que do âmago de seus seres e livres do malfeitor, elas possam marcar o início de um novo mundo. Um tanto complexo, mas elas o entenderiam. Precisavam entender. Após algumas horas ininterruptas de completa dedicação, senti que as juntas de meus dedos já imploravam por um pouco de sossego. Os nervos pareciam contorcer-se em um degradante estado de clemência. Realmente, tive de assisti-las, pois não agüentava mais. Deixando de lado qualquer espécie de exigência orgânica e tomado por uma completa ausência de fome ou sede, percebi que havia passado a hora do almoço, pois já eram 4:00 da tarde. Meu corpo simplesmente não precisava de instintos de sobrevivência perante as rotinas básicas do ser humano. Bastava apenas que tudo fluísse. De dentro para fora. Como um ciclo. Ajeitei delicadamente as folhas em cima da mesa, como se fossem parte de mim. E cuidando para que tudo permanecesse em seu devido lugar, fechei portas e janelas e sai, emaranhando-me por entre a selva de corpos que caminhava pelas ruas. Tristes e solitários. Como uma pintura de Van Gogh.

Quando cheguei à galeria, no saguão já se encontrava uma grande parte das fotos de Julia. Morbidamente sexuais. Viscerais. Continuei adentrando por entre falatórios e risadas até avistá-la conversando em uma roda de gente, as quais eu não fazia a mínima idéia de quem eram. Logo Julia me viu e caminhou em minha direção.

-Já estava achando que não viria. – ela disse, dando um gole na taça de espumante que carregava em suas mãos. – Venha! Quero lhe apresentar a algumas pessoas.

E depois me puxou para o interior do formigueiro.

-Estes são Lucio Bava e Mario Fulci, os editores chefes da revista Porn & Blood. – ela foi logo dizendo, apontando para dois homens que encontravam-se na roda de pessoas na qual ela estava inserida. O primeiro era jovem e com um aspecto intelectualmente pervertido. O segundo, um senhor que carregava uma feição sisuda e assustadora, mas parecia possuir em seu âmago o estereotipo de uma submissão sexualmente doméstica.

Obviamente depois veio toda a formalidade de uma rotineira apresentação; apertos de mão e sorrisos amarelados.

-Este é Marcelo Adames. Meu noivo. – completou Julia, agora apontando para mim.

-Fiquei sabendo que é escritor, senhor Adames. – disse o mais novo.

-Sim, sou. E por favor, chame-me de Marcelo. – logo acrescentei.

-Ah, claro me desculpe.

-E o que escreve? – indagou o mais velho.

-Poemas. Contos.

-Mas agora ele está escrevendo um livro. – logo interrompeu-me Julia.

-É mesmo? E do que se trata? – perguntou curiosamente o mais velho.

-É sobre liberdade e renovação.

A este ponto o mais velho já desviara a atenção para as pernas de uma jovem alheia que observava a exposição. E o diálogo limitou-se a mim e ao “intelectualmente pervertido”.

-Que interessante. – ele logo acrescentou. – É alguma coisa épica ou do tipo.

-É para crianças.

-Marcelo está tentando atingir novas áreas. – acrescentou Julia.

-Que paradoxo. – o rapaz logo argumentou. – com uma abismada incompreensão.

-Como assim? – perguntei.

-Sua mulher faz fotos de sexo e você escreve para crianças. A demonstração perfeita da pureza diante da depravação da carne. Uma excelente parábola de Adão e Eva.

-Nossa, Lucio. – exclamou Julia. – Que radical. Assim parece que sou a culpada pelos pecados do sexo. A muita diferença entre depravação e sexo. E vamos e viemos, a serpente não é tão vilã assim.

-É claro que não. – completou o rapaz. – Sem ela não teríamos nossa revista.

E logo os dois soltaram risadas. Menos o mais velho, pois o par de pernas ainda estava ali. Menos eu também, pois mais ao fundo do salão, algo mais importante chamava minha atenção. Por entre rostos desfocados, uma familiar figura parada de costas. Mas desta vez não carregava maleta.

-Me dão licença, por favor? – logo falei, afastando-me. E eles continuaram conversando.

Parecia estar ali apenas para observar a exposição assim como todos os outros. Como se fizesse parte da grande massa. Mais um rosto espalhado em meio à multidão. Mas para mim ele fazia sentido. Pelo menos para mim. Apenas parei a seu lado e não falei nada. Pois ele já sabia que eu o havia visto e que caminhava em sua direção. Como uma energia. Um pensamento. Um lapso de ilusão diante das intersecções da mente. Percebi que observava uma das fotos de Julia na parede. A imagem em preto e branco de uma mulher nua estrangulando a si mesma com luvas pretas. Atrás, um homem beija seu pescoço, com uma das mãos escondidas. E um espelho ao fundo revela que segura uma faca.

-Muito boa esta foto. – disse o homem da maleta – sem desviar seu olhar vago da mesma. – Puro simbolismo.

-Está tudo correndo conforme o planejado, senhor.

-Eu sei, meu caro. Eu sei. Estamos gratos por sua colaboração.

-Poderia me dizer por que...

-Limite-se a seus propósitos. – ele logo interrompeu-me. – Basta apenas seguir o caminho correto. Sem cair em dúvidas existenciais e morais. Que os gritos de desespero continuem a suplicar por clemência e o sangue escorra limpo e sem restrições.

-É o que estou fazendo. Não se preocupe.

-Não estou preocupado. Como vai o livro.

-Ótimo. Tudo fluindo sem dificuldade.

-E as crianças? Prontas para a libertação dos pecados do homem? – ele indagou, agora olhando para mim.

-Como sabe a temática do livro? – perguntei curiosamente.

-Esqueceu que trabalhamos juntos? Tudo que flui de sua mente já está exposto na estrada da degradação da carne humana. E é assim que deve ser.

O lançamento será daqui a alguns dias, apenas. E seu nome será pronunciado por muitos.

-É o que espero.

-Aquela é sua mulher, não é? – ele perguntou, apontando com a cabeça para Julia.

-Sim. É Julia. – afirmei observando-a. Ela acenou-me com um sorriso.

-Muito bonita.

-Não deixe que atrapalhe nossos planos.

-Não, ela... – eu ia logo dizendo, mas ele já se encontrava de costas caminhando lentamente com as mãos para trás. Emaranhou-se por entre corpos e rostos. Em vez de sombras projetadas pela lua, parecia fundir-se a multidão. Como se cada pedaço seu pertencesse a um deles. E após mutilar-se em sombras diante dos seres que ali estavam, desapareceu. Como um vulto em minha mente. Fiquei observando aquela simbólica fusão do espectro à carne. Até Julia distrair-me:

-Ei, o que está fazendo aí parado? – ela veio logo dizendo, olhando para o mesmo lugar que eu, tentando encontrar o motivo de minha dedicada observação. Mas nada viu além de rostos. Nada de mais. – Quem era o homem que estava conversando?

-Apenas um admirador de sua arte, querida.

-Venha. Vamos tomar uma taça de champagne.

Logo após ambos juntamo-nos aos outros, para brindar às festividades. E eu brindava meu êxito, chacoalhando espumas que estouravam boiando sobre méritos. Mas logo o sangue viria para encharcar de pêsames o infortúnio de inocentes.

Quando chegamos em casa, já era perto de umas 10:00 da noite. Exausta, Julia foi logo tirando os sapatos. Estava animada, pois os editores da revista a qual almejava prometeram-lhe entrar em contado. Minhas páginas estavam formosamente repousadas aonde as havia deixado. Já havíamos jantado e Julia foi direto tomar banho. O barulho da água do chuveiro ecoando por entre meus tímpanos era inspirador. Lembrava-me cachoeiras de sangue que foram e seriam derramadas entre a escuridão desoladora, que envolvia seres perdidos como uma luz preta.

Então, o badalar da maldade acordando o mundo: “Polícia não possui pistas do estripador.” “Mais um corpo sem coração é encontrado em uma estação abandonada.” “Jovem dilacerada é encontrada em beco no subúrbio.” “Detetives perdem-se novamente em meio à falta de provas.” “Colecionador de corações faz mais uma vítima.” “Novo detetive assume caso do colecionador de corações.” “Mulheres à beira do desespero.” “Sexta vítima jogada na penumbra. O mesmo ritual: corpo sem coração.” “Polícia suspeita de seita satânica.” “Colecionador de corações faz sua sétima vítima. E a polícia vira piada.”

Dias passaram e dos jornais jorravam pingos de sangue, fazendo com que mulheres evitassem andar pelas ruas com medo do que a escuridão as reservava. Até mesmo Julia já estava assustada. A polícia mostrava-se perdida diante de tanta falta de conclusão. Não havia como suspeitarem de nada. O acaso estava a meu lado, fazendo com que minhas digitais evaporassem como fumaça. Gritos de agonia ecoavam por minha mente assassina. E sobre as páginas brancas de desolação e medo, minhas palavras deram seu último suspiro. Finalmente meu livro chegara ao fim. O hálito da morte soprou sua risada no pescoço do mundo, causando arrepios em pensamentos alheios. O desespero dos incautos.

Logo a primeira editora a qual levei minha visceral obra aceitou-a com afetiva recepção. A mesma editora que recusara vários de meus contos. Obviamente um dedo a mais rolava a roda do processo, pois o desenvolvimento estava a meu favor. A grande noite chegara. A sessão de autógrafos de “E da Conjuração... A Pureza” finalmente acontecia. Pronto para adentrar na mente dos pequenos seres que dela inconscientemente precisavam. Como uma nova doutrina. O título de nada parecia um livro infantil, mas em seu interior repousava um mundo de beleza, onde as crianças que o lessem encontrariam sua liberdade. A sessão dava-se em uma livraria de nome. Como um sonho em minha mente, o local estava cheio. O livro já estava na livraria há alguns dias, fazendo com que muitos já o houvessem comprado.

-Minha filha adorou seu livro, senhor. – disse uma mulher enquanto eu autografava. – Ele disse que a professora do colégio chamou a obra de “uma reeducação perfeita”.

-É mesmo? Que bom que as instituições educacionais também o estão promovendo. Qual é o nome de sua filha?

-É Patricia.

-Patricia? Quantos anos ela tem?

-Vai completar 12 no mês que vem. – respondeu orgulhosamente a mãe.

“Abraços para a minha querida Patricia. Marcelo Adames”, escrevi no interior da capa.

-Obrigado, ela vai adorar. – disse a mãe antes de retirar-se e dar lugar ao próximo da fila.

-Boa noite, senhor. – disse um pai, repousando orgulhosamente a mão sobre o ombro do filho.

-Boa noite.

-Poderia dar um autógrafo para meu filho? Ele é meio envergonhado. – completou o pai. – Mas um dia será um grande homem. Grande homem.

-Sim, claro. – respondi com entusiasmo. – E qual é seu nome, garoto?

Não pude ouvi-lo, pois devido à vergonha, falou baixo demais.

-Mais alto, meu filho. Deixe de ser envergonhado.

-Miguel. – repetiu o garoto.

-Miguel?

-Sim. Miguel. – afirmou o pai, intrometendo-se novamente com aquele ar daqueles que se acham “o pai”, mas nem sequer deixam o filho falar.

-Obrigado. – disse o garoto, após eu devolver-lhe o livro.

Depois, eles se retiraram. E um garoto de uns 12 anos postou-se empolgadamente em minha frente. Este era mais comunicativo e com seus óculos, parecia um pequeno intelectual.

-Olá, senhor.

-Olá, meu caro amigo. Como se chama?

-Me chamo Julio. E gostaria que autografasse meu livro.

-Sim, claro.

-Eu o comprei com meu próprio dinheiro, senhor. – afirmou orgulhosamente o simpático garotinho, entregando-me o livro. – Concordo com você. As crianças precisam de liberdade. Precisam viver a vida em vez de fazerem parte da grande massa.

-Nossa, você é inteligente. Entendeu tudo sozinho

-Sim, senhor. Adoro ler. Logo vou lê-lo novamente.

-E onde estão seus pais?

-Estão por aí.

-Está sozinho?

-Não. Eles estão por aí. Com os outros pais.

-Ah, sim. E o que quer que eu escreva?

-O que você quiser, senhor. Meus amigos da escola vão morrer de inveja.

-Nossa. Que bom. – eu logo disse. – Então vou escrever algo que vai deixá-los loucos de inveja.

O garoto soltou uma simpática risada.

-Quando crescer quero ser escritor igual ao senhor.

-Assim espero. O mundo está precisando de bons escritores. – acrescentei àquela simpática conversa.

-Serei o melhor. Pode apostar, senhor.

-Vou encarar isto como uma promessa, amigão. – eu disse, devolvendo-lhe a obra.

-Obrigado, senhor. Muito obrigado. – ele finalizou, caminhando alegre em meio à multidão. E eu fiquei observando-o por uns instantes. Realmente um garotinho à parte.

-Será que o senhor poderia autografar para meus filhos? – perguntou-me uma próxima voz da fila. E quando olhei, ele estava ali. Esticando o braço para que eu apanhasse o livro. Novamente com seu sobretudo preto de sempre. O homem da maleta também viera para prestigiar minha obra. Devido à surpresa, logo fiquei sério.

-Pode, senhor? – ele repetiu, sorrindo pela primeira vez.

-Você tem filhos? – perguntei curiosamente.

-Não, na realidade, mas cuido de várias crianças. Pode colocar em nome de Gabriel, o qual não é uma criança e também não é meu filho, mas deve seu trabalho a ele. Afinal, foi quem o ajudou a, digamos, limpar a sujeira.

Então nada pude fazer a não ser autografar. Afinal, se não fosse por aquela ajuda, nada teria se concretizado. Nada. Após devolver-lhe o livro, ele simplesmente agradeceu e, como sempre, dissipou-se lentamente, caminhando por entre adultos e crianças alegres. E a noite seguiu desta maneira. Autógrafos e elogios completavam o ciclo da glória. Estava feito. Por entre alguns conhecidos, Julia lançava-me olhares de orgulho. Sentia-me gritando por dentro, mas de alegria. Gritos que ecoavam ao fim da linha de sangue a qual derramei. Mas estava feliz. O canto do cisne do lago do desespero.

Continua...

Gabriel Rosa
Enviado por Gabriel Rosa em 09/05/2011
Reeditado em 09/05/2011
Código do texto: T2959230
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