Sequestrado pelas trevas

Continuação de “Sangue e mistério”.

A limusine atravessou um enorme portão de ferro fundido, coisa antiga, disso João não tinha menor dúvida. E a casa negra que ele via através do vidro escurecido do enorme carro, era ainda mais antiga. E parecia estar prestes a desmoronar. Olhá-la fê-lo ensaiar um sinal da cruz por puro reflexo.

- Não gostou, seu João? – perguntou Andhromeda, encarando-o com aqueles olhos agudos – Pertence a um amigo meu.

- Ah, é? Parece bem antiga. Seu amigo deve ser muito rico. É estrangeiro?

Ela riu, lutando para esticar os lábios sobre os dentes. Devia não sorrir a um bom tempo.

- É, é estrangeiro. Ele é da Armênia.

- Não me diga que é o...

- Conde Drácula? – perguntou ela, erguendo as sobrancelhas – Não, imagine. Conde Drácula nunca existiu.

João respirou aliviado. Entrar em um covil de vampiros teria sido muito preocupante.

- Mas o meu amigo é sim um vampiro – explicou a moça, sorrindo daquele jeito estranho enquanto o veículo atravessava um extenso jardim arborizado, onde enormes animais pretos e peludos corriam livremente.

- O que são? – perguntou o escritor – Cães de guarda?

- Lobisomens, na verdade. Estão em sua forma canina. São muito mais bonitos quando adquirem a aparência meio-humana. São também de arrepiar.

João pensou que a vizinhança devia ser barra muito pesada para alguém ter lobisomens como vigilantes noturnos. Ah, o que ele estava pensando? Nada mais merecia ser explicado. Estava com medo.

- Não tenha medo, seu João – disse Andhromeda, lendo seus pensamentos. – Vai acabar tudo bem. Com o senhor, quero dizer.

A limusine estacionou diante de uma escadaria de entrada que dava para uma porta-dupla toda lascada. Enormes aldravas com feições demoníacas pendiam dela.

Andhromeda desceu por um lado, enquanto que o motorista abriu a porta ao lado de João. Ele hesitou. Era a primeira vez que depositava alguma atenção ao empregado e era a primeira vez que percebia que este se tratava de um cadáver. O cheiro de carne podre exalava dele, adocicado, entorpecente.

Com um puxão mental, João concentrou-se no que havia a sua volta.

Uma vizinhança silenciosa. Nenhuma luz a não ser aquela da casa onde estavam prestes a entrar. Os lobisomens corriam para lá e para cá, em círculos, olhos brilhando e dentes do tamanho de canivetes despontando ameaçadoramente das bocas abertas. Nuvens tempestuosas dançando na face da lua cheia. Um vento gélido provocou-lhe um arrepio arrebatador. Estava suando frio.

- Vamos entrar, seu João?

- Claro.

Claro. Vamos ver o resto desse circo de horrores.

Mauro Alves inseriu o cd que recebera misteriosamente aquele dia. Acabava de publicar no Recanto das Letras, o site, mais um conto de arrepiar, estava ansioso para começar a ler os comentários do pessoal, seus amigos e leitores.

A caixa de diálogo executar apareceu bem no centro da área de trabalho e ele autorizou a reprodução do cd.

Um único arquivo estava gravado. E ocupava a memória toda da mídia.

A Bíblia do Inferno.

Era o que dizia o nome do arquivo de trocentos megabytes. Quem fora o doido que lhe enviara aquele negócio? Que tipo de brincadeira seria essa?

Mauro não pensou duas vezes. Clicou no arquivo, apontou em abrir com, clicou em Winrar, depois em Extract files. Cinco minutos depois o arquivo já estava no Adobe Reader e Mauro fazia a maior besteira da sua vida.

- A Bíblia do Inferno, de... como é que é? – ele socou a testa na tela, sem querer, na ânsia de ler o nome do autor – Aiai, puta que pariu!

Segundo a primeira página, o autor da Bíblia do Inferno era uma fulana. Uma tal de Andhromeda. Mauro desatou a rir. Aí estava quem estava curtindo com a sua cara! Só podia ser aquela sequelada! E ele nem conhecia a garota.

Mauro riu até começar a chorar, até sentir dor na barriga. Daí, começou a ficar encafifado. Como ela sabia onde ele morava? O troço viera pelo correio... como ela conseguiu o seu endereço postal?

Continuou a leitura da primeira página da Bíblia do Inferno, que ele tinha certeza absoluta de ser fajuta.

Ao ver a data da edição, soltou um riso curto, que soou como um latido aos seus ouvidos.

2a. Edição – 2011.

Então, aí estava. Uma brincadeira. Muito tonta. Como se ele fosse acreditar que a Andhromeda tinha ido ao Inferno, levar um lero com o Capeta e reescrever a Bíblia das Trevas.

Mauro sentiu um calafrio. Uma luz negra se acendeu em sua mente.

- Ai, meu Deus!- sua voz saiu esganiçada, aflita – Não é possível!

Há alguns dias atrás, sua vampira-chefe, Faby Crystall, escrevera um conto de terror, uma historinha inocente, em que ela condenava a alma de Andhromeda aos tormentos eternos do Inferno. Será que a história era verdadeira?

Não. Não podia ser. Pra começar, Faby não era uma vampira. Aquilo era brincadeirinha, assim como ele não era um esqueleto ambulante.

Será que era?

Ou será que não era?

Mauro continuou a leitura, apenas por curiosidade, para saber até onde a mente fantasiosa de uma escritora virtual.

Amuk nazg arkatr nazg khait!

Que merda era essa? Soava muito estranho.

Okht-á-mkhait! Nazg tanz ma- khait! UMH –TATAH!

Mauro sentiu-se estranho após pronunciar a estranha fórmula. Sua visão embaçou, olhou para as próprias mãos e viu apenas espirais de fumaça negra evolando do seu corpo.

- O que está acontecendo comigo?- perguntou-se, solitário, uma nuvem de fumaça fedorenta escapando da boca, do nariz e dos ouvidos.

Mauro Alves, digitador e escritor nas horas vagas, consumiu-se em uma coluna de fumaça preta, desaparecendo de sua casa e caindo no seu pior pesadelo, onde todo o terror que ele escrevera era canção de ninar perto do que estava por vir.

Seu smartphone, esquecido ao lado do computador, anunciou o recebimento de um e-mail. A emissora era Faby Crystall.

Prossegue em “Substituta de Lúcifer”.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 07/05/2011
Código do texto: T2955173
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