Sangue e mistério
Continuação de “Mau presságio”.
Era mais de uma hora da noite quando a senhora Giovana Pereira e Vasconcelos achou que estava ouvindo ruídos em sua cozinha. Ela se levantou e, pé ante pé, deixou o marido roncando tranquilamente, embolado nos cobertores. Fazia um frio danado, por isso ela vestiu um robe longo, cor-de-creme, sobre a velha camisola de algodão e foi ver o que estava produzindo os sons estranhos.
Não se surpreendeu ao encontrar o Geraldo, o gato da família, revirando uma porção de restos de comida espalhados pelo chão da cozinha. Giovana bufou igual a um felino e o gato gorducho compreendeu que havia feito coisa errada. Deus o ajudasse, ele não queria ser castigado, seus pêlos das costas ainda não haviam deixado de doer.
Giovana pegou um punhado do couro peludo do lombo do gato, fazendo-o protestar a altos miados. Sacudiu-o impiedosamente, dizendo:
- Para já com esse barulho, seu feioso!
O gato entendeu o recado. Suportou o resto da tortura estoicamente, biquinho bem caladinho.
Depois de soltar o bichano, Giovana encarou o monte de lixo como se este fosse um monte de cocô, espalhado pela sua cozinha.
Recusou-se a limpar a bagunça provocada pelo estúpido gato e após beber um bom gole de água mineral da geladeira, começou a voltar para o quarto.
Foi aí que ela notou algo estranho, lá fora, na rua.
Havia um grande carro preto parado na entrada da casa do seu vizinho da frente.
A cortina da sala voava com o ventinho gelado e Giovana podia notar o brilho lustroso do carro sob a luz do luar. Ela se aproximou da janela e, usufruindo de sua longa experiência como bisbilhoteira, espichou o olhar na direção da casa do seu João Athayde de Paula, doida para descobrir algum podre do escritor.
Ela ficou lá, mudando o peso de uma perna para a outra, talvez durante uns quinze minutos, até que a porta da frente se abriu e o tal escritor saiu para o quintal. Acompanhado de uma mulher que ela nunca vira por aquelas bandas.
Giovana se achatou contra a parede, tomando o cuidado de se ocultar muito bem atrás da cortina, mantendo apenas os olhos a vista.
A mulher era estranha. Podia ser filha ou neta do escritor. Giovana sorriu, imaginando uma porção de coisas ilícitas e sórdidas.
De repente, a mulher parou. Para o seu profundo horror, Giovana notou os olhos da mulher voltando-se em sua direção. Eram pretos e enormes. Rapidamente, a dona de casa escorregou pela parede, indo se esconder sob a moldura da janela.
- Jesus, acho que ela me viu! – sussurrou para si mesma, sentindo o coração disparado dentro do peito – Mas, não é possível, ela olhou diretamente para mim... como se soubesse que estou aqui...
Giovana pestanejou, abanou a cabeça negando-se a acreditar numa bobagem dessas. Estava ficando paranoica.
Resolveu dar mais uma espiadinha.
João entrava no carro, mesmo na pouca claridade era possível ver que o homem estava mais pálido do que o normal. A mulher ajudou-o a se abaixar para entrar na... limusine...? O que uma limusine estava fazendo ali?
Giovana mordeu os lábios, os neurônios trabalhavam a mil por hora.
O que é aquilo?
A mão do motorista da limusine jazia para fora da janela aberta, mas dentro do carro havia apenas escuridão. Tudo o que era possível identificar dessa pessoa era que se tratava de um homem. Havia um grande anel de rubi no dedo anular, do tipo que os homens ganham quando se formam em importantes e tradicionais faculdades metidas a besta.
Um advogado dirigindo uma limusine?
Giovana varreu da cabeça a ideia estapafúrdia, mas sabia que alguma coisa muito estranha estava acontecendo ali.
A mulher estava outra vez olhando em sua direção. Giovana manteve-se firme no lugar, sem desviar os olhos, crente de que era impossível que alguém pudesse vê-la àquela distância e ainda mais no escuro.
A mulher sorriu um sorriso de gelar os ossos de qualquer um. Seus olhos brilharam como estrelas e, num instante, Giovana tombou no chão de sua sala, ofegando como um peixe fora d’água.
Um tumor havia se formado em sua garganta, do tamanho de um melão. Ela arregalou os olhos até quase expulsá-los das órbitas, abriu a boca até que o maxilar se desprendeu da cabeça expondo a língua que começava a ficar roxa. Tudo numa tentativa vã de sorver o precioso ar.
Andhromeda, parada ao lado da limusine, sorria divertidamente, fazendo o escritor dentro do veículo ter calafrios.
Faby Crystall. Vampira. Mulher fatal.
Deixou o cadáver do homem escorregar de seu abraço, indo parar direto no meio-fio. Limpou os cantos da boca, onde ainda podia sentir o sangue do homem, quente, salgado e delicioso. Lambeu os dedos e pulou o morto, graciosamente, os sapatos de salto agulha mal tocando o cimento.
A noite nunca pareceu mais maravilhosa e agradável. Perfeita para um passeio sob a luz da lua cheia. Só de pensar nisso, a alegria dentro do coração da vampira aumentou incrivelmente.
- Meu Pituquinho... – ela murmurava, sem parar, saltitando pela rua deserta, invulnerável – Meu Pituquinho, eu vou te ver!
Em sua mente, o rosto de Mauro ganhava tonalidades que apenas favoreciam suas feições divinas. Faby tirou o smartphone de dentro do sutiã (kkkkkk) e começou a teclar uma mensagem cheia de carinhos para o seu amado com uma agilidade característica apenas da sua espécie. Enviou o e-mail, seguindo imperturbável na sua condição de imortal.
Pensava fazer mais uma vítima. Era bom estar saciada quando se encontrasse com o Mauro. Todo cuidado é pouco. Ela não queria que nenhum tipo de “acidente” acontecesse. Deus sabe como sua sede às vezes era insuportável.
E Mauro era a coisa mais valiosa na sua “vida”.
Com seus dons telepáticos, Faby ouviu a festinha que um grupo de adolescentes góticos estava fazendo num cemitério que ficava bem no seu caminho. E, despreocupada como a Chapeuzinho Vermelho andando no bosque, ela se dirigiu até lá. Adorava essa juventude mórbida do século XXI.
- Olá, crianças!
O pessoal se espantou com o seu surgimento abrupto bem no meio das sepulturas. Ela adorava o efeito que provocava nas pessoas.
- Posso participar também? – perguntou ela, andando sinuosamente, como se estivesse em sua casa. E não é que ela estava?
- Oi, moça – disse um deles, um rapaz alto e forte, bêbado feito um gambá, provavelmente estava vendo um trio de Fabys dançando diante dos seus olhos – Quer um gole de vinho, é do bom, quer?
- É lógico!
Faby enlaçou o rapaz com seus braços brancos e muito fortes e bebeu do melhor vinho já produzido pela raça humana.
- Opa – disse ela, encarando o resto da turma vestida de preto -, acho que o amigo de vocês bebeu um pouquinho demais!
Largou o cadáver seco. Ninguém notou que o rapaz não estava mais respirando.
Não estava saciada. Queria mais. Sempre mais. Mais do sangue. Queria tudo que havia no mundo. Queria poder, queria ser uma lenda imortal, queria tudo entre o Céu e o Inferno.
Bebeu até o sangue começar a escorrer da boca, sujando seu vestido de três mil paus (roubado), bebeu até cair sentada sobre um túmulo, zonza de tão bêbada.
Sozinha, cercada de cadáveres em lenta putrefação, Faby Crystall desatou a gargalhar.
Queria tudo. E teria tudo. Não importando o que tivesse que fazer para alcançar isso.
Prossegue em “Sequestrado pelas trevas”.