Mau presságio
Não é um hábito meu escrever este tipo de coisa. Mas, como algumas pessoas me colocaram em suas histórias... acho que talvez não haja mal em retribuir... não tem um pingo de sangue nesse conto, mas é claro que pretendo compensar esta falha na continuação. Isto é, se vocês não morrerem de tédio antes... apesar da brincadeira, gente, respeito muito as pessoas cujos nomes serão citados a seguir, OK?
João Athayde de Paula castigava loucamente o teclado do seu pc, quando ouviu passos no andar inferior de sua pequena casa. Era mais de meia-noite e, de repente, a ameaça de ser assaltado comprimiu-lhe o peito num aperto quase sufocante. Girou na cadeira e fitou reflexivamente o corredor escuro, além da porta de seu modesto escritório, onde ele passava grande parte de suas horas vagas escrevendo os contos de terror mais loucos que o Recanto das Letras já vira. Coisa que lhe dava grande prazer. Mas agora, as voltas com uma possível invasão em andamento bem ali no seu recanto, pensar em terror era o que ele menos queria.
Os passos eram lentos, meticulosos. Nem um pouquinho cuidadosos, no entanto. Soavam como se pertencessem a algum conhecido, alguém sem medo de ser apanhado zanzando pela sua casa àquela hora. Passos familiares, cujo registro João não se lembrava de ter guardado dentro da mente. Era impossível o que estava pensando.
- Seu João? – uma voz feminina, jovial, soou alta dentro da casa vazia. Era desconhecida, porém simpática. João levantou-se da cadeira, fazendo-se mil perguntas: que raio de pessoa que ele conhecia que o chamava de seu João? – Seu João, o senhor está em casa? Estou subindo, seu João.
Como assim “estou subindo”? Aquela era a sua casa, caramba! Não era a casa da Mãe Joana para os outros ficarem invadindo desse jeito!
Passos na escada. Lentos. Uma risada baixinha, incontida. João sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha enquanto saía para o corredor sombrio, deu uma última olhadela saudosa a sua escrivaninha, onde a janela do Word lançava sua luminescência como se fosse a última luz num mundo tomado pelas trevas.
Mais risadinhas. Havia um tom metálico ali. Frio. João estaqueou no lugar, o pé que suportava a maior parte do seu peso tremia, o outro jazia em dúvida se dava ou não o passo seguinte.
Caralho.
A garota do site. Aquela com o nome de um personagem da mitologia grega.
João sorriu, sem graça. Sem essa, meu velho, você está ficando doido! Não pode ser ela.
Seu sorriso se desmanchou.
Será que não poderia ser ela?
Seus olhos encaram o alto das escadas a sua frente, de onde a qualquer momento podia emergir uma figura envolta em sombras. Só Deus sabe que tipo de figura...
João Athayde de Paula, que não era bobo nem nada, que nunca se achou inclinado a crer em bobagens católicas, ainda mais levianamente, principiou uma oração muda, com o semblante grave, olhos atentos ao que estava prestes a se revelar diante de seus olhos judiados por anos de leitura, estudos e trabalho diante do computador.
- Seu João, aí está o senhor!
Sua mão cobriu, involuntariamente, a boca. Engoliu em seco. Cristo!
A jovem parada no fim da escada tinha cabelos encaracolados, escuros, que caíam sobre os ombros como um véu de freira; seu rosto, redondo, era pálido e animado, muito grande para ser escondido mesmo pela ausência de luz; os olhos, no entanto, eram negros como dois pedaços de carvão, penetrantes como os olhos de uma ave de rapina.
Eram os olhos que assustavam João. À medida que a garota “Andhromeda” se aproximava, a passos firmes, ele se afastava. Havia algo naqueles olhos que falava de túmulos abissais, onde criaturas sem nome, acorrentadas, uivavam maldições.
- Seu João... já sabe quem sou? – perguntou ela, perscrutando-o com aqueles olhos como se quisesse varar o seu crânio com eles – Já sabe, sim! Que ótimo! Poupará uma grande parcela do meu tempo!
Ela riu. Expondo só um pouquinho dos dentes, como se rir fosse algo muito trabalhoso e difícil.
- Andhromeda? – perguntou João, tentando fazer o coração parar de martelar no peito – Você é Andhromeda?
- Claro que não, seu João! Andhromeda é um nome de brincadeirinha! Meu verdadeiro nome é indizível.
Ela parou a menos de meio metro de distância. Não sorria mais. Parecia falar a coisa mais séria do mundo.
- Cada vez que alguém pronuncia o meu verdadeiro nome, uma das cem mil correntes que prendem o Leviatã se parte, sabia? Meu nome é maldito.
- Sei, entendo. Você é um demônio?
Ele não pode evitar a pergunta.
Parecia que seu mundo, convencionalmente desprovido de sobrenaturalidades, havia ruído de vez.
- Não. Eu não sou um demônio, seu João. O senhor anda lendo e escrevendo terror demais.
- Desculpe, é que...
- Eu sei, eu sei... é surreal, não é?
- É.
- Não quer saber o que estou fazendo aqui?
Ele não tinha certeza de que quisesse saber. Na verdade, queria apenas voltar ao pc e terminar mais um conto.
- Qual é, seu João! Escrever um conto, quando está prestes a participar de uma história de verdade?
Ela riu. Começou a gargalhar e, por um segundo, seu cabelo pareceu se mover sozinho. Como se fosse um monte de serpentes.
- Ora, seu João, vamos nessa! Você não disse que sou uma autoridade paranormal?
- Eu não sei... e se eu morrer? Você vai me matar?
O semblante de “Andhromeda” se suavizou. Ela era apenas uma moça perturbada, possivelmente dotada de algum... poder sobrenatural, que mal haveria em acompanhá-la?
- Seu João, eu não penso em matá-lo. Eu só quero me divertir um pouquinho. E me vingar, claro, afinal, pode ser que o senhor não saiba, mas a “Faby Crystall” me enviou ao Inferno.
- É sério? – perguntou João, já sentindo pena da pobre vampira – E o que você vai fazer?
- Surpresinha.
Ela conduziu-o escada abaixo, levando-o pelo braço como se ele não soubesse o caminho.
- Que cheiro é esse? – perguntou, dando uma fungada – Parece...
- Enxofre – respondeu Andhromeda, laconicamente. João assentiu e não comentou mais nada. Estava prestes a viver a maior doideira da sua vida.
Prossegue em “Sangue e mistério".